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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.11 no.1-2-3-4 Brasília  1991

 

O código de ética e a ética do código - algumas consideracões jurídicas

 

 

Rodrigo da Cunha Pereira

Advogado CRP-04

 

 

"As leis são relações necessárias que derivam da natureza da coisa".

Montesquieu

 

O homem não é instinto. O homem é pulsão. Talvez seja o único ser vivo animado sujeito a erro. Não é meu papel aqui questionar o porquê, mas por isto mesmo o psíquico humano precisa de toda uma estrutura e uma série de complexidade (objeto de estudo da Psicologia e Psicanálise) para se ordenar. O que rege a ordem psíquica é a LEI do PAI, razão desse salto singular do homem, da natureza para a cultura. Portanto, qualquer agrupamento social, por mais simples que seja, exige regras, normas de conduta, LEIS. Precisamos sair do lugar onipotente, de pensar que somos grandes, porque temos leis. Temos leis, porque somos menores.

Assim, cada cultura, em cada tempo, possibilitada pela inscrição comum a todos os humanos (linguagem, lei do pai, recalque) institui suas leis escritas, formando seu ORDENAMENTO JURÍDICO. Nesta ordem jurídica está o Direito. Direito à vida, à morte. O Direito e o torto. Em cada cultura o Direito normatizado de acordo com a sua ÉTICA. O Direito não é aquilo que É, mas aquilo que deve ser. E é exatamente o dever-ser que é normatizado, transformado em LEI JURÍDICA. O Direito é normatizado, contrapondo-se ao "torto". Aliás estas noções são interdependentes e complementares. Como a polarização amor e ódio. E por muito que pareça extraordinário, o Direito é essencialmente violável, e existe por graça da sua violabilidade. Se fosse impossível o torto, desnecessário seria o Direito. O sentido desta violabilidade assenta precisamente na necessidade de distinguir as ações justas e injustas, o moral do imoral, o ÉTICO do AÉTICO. A verdade é que não se pode conceber o Direito, senão em correlação com o seu contrário: o torto.

No Direito brasileiro, à sombra do Direito do colonizador e da cultura ocidental, o ordenamento jurídico se estrutura como os demais: a idéia do justo e injusto. O dever-ser, traduzido em instrumentos produzidos pelo Estado que são as LEIS. E como já se disse, LEI no sentido lato é norma geral de conduta oponível er ga omnes. No sentido estrito, LEI é o instrumento jurídico aprovado pelo Poder Legislativo. Em um ESTADO há um hierarquia de Leis: a Lei maior e mais importante que é a Constituição Federal, Leis Ordinárias (Leis propriamente ditas, votadas pelo Legislativo), Leis Complementares, Decretos, Medidas Provisórias, Portarias, Leis estaduais. Leis municipais etc. Leis, Leis, Leis. Sempre normatizando e codificando o dever-ser. Por exemplo: a Constituição Federal estabelece os princípios gerais a serem seguidos pelo Estado; o Código Civil estabelece normas de conduta nas relações civis entre os cidadãos, os contratos etc; o Código Penal estabelece o dever-ser da pessoa, definindo (tipificando) o que é crime; o Código do Consumidor define os Direitos dos cidadãos enquanto consumidores etc, etc.

O código é uma LEI. Seja no sentido de Lei propriamente dita, seja em seu sentido lato. O CÓDIGO DE ÉTICA PROFISSIONAL DOS PSICÓLOGOS, embora não seja uma Lei no sentido estrito da palavra (votada e aprovada pelo Poder Legislativo), é uma Lei Jurídica com a denominação técnica de RESOLUÇÃO. Assim a Resolução nº 002/87 da autarquia Federal do Conselho de Psicologia, instituiu, por escrito, o dever-ser da conduta ÉTICA do profissional da Psicologia. É preciso saber que trazer para o campo do Direito (normatização via código escrito) as normas de conduta do profissional da Psicologia, elencando-as em um código é algo que será sempre polêmico e polemizador. Inobstante toda a polêmica que ele (o código) possa provocar e toda lacuna nele existente, ele é uma norma imperativa, oponível a toda categoria dos psicólogos no Brasil e com força coercitiva e de sanção. Por outro lado, não sendo o código (resolução) Lei no sentido estrito, ele tem um aspecto que poderíamos denominar de dinâmico, ou seja, de acordo com a evolução das idéias e da própria profissão, alguns artigos podem ser revistos, transformados ou reeditados. Não que a Lei em seu sentido estrito não tenha esta qualidade, mas tendo ela que ser aprovada por um legislativo, ela tem um caráter mais definitivo, menos mutável.

É curioso observar, que a transposição em norma escrita da conduta ética do psicólogo, em 1987, tenha-se dado aos 18 anos de existência dos Conselhos de Psicologia. Como se sabe, esta idade, é a idade em que no Brasil se atingia a maioridade política e se adquiria por exemplo, o direito de votar (atualmente já existe o voto facultativo aos 16 anos de idade). Talvez aos 18 anos de existência, a entidade representativa da categoria - Conselhos de Psicologia - (criada pela Lei Federal nº 5.766 de 20/12/71), já se sentindo na maioridade, pôde criar um código de ética profissional. Logicamente que me expresso aqui metaforicamente, porque o país comportando um exercício profissional, tem necessidade de ter um código de ética para proteção dos usuários destes profissionais (incluindo clientes e instituições) e também para proteção do próprio profissional.

É óbvio que a ÉTICA não passa apenas pelo normativo. Aliás arriscado normatizá-la. Ademais, não é um código que instituirá a ética, ou uma ética. Ela existe antes e acima do código escrito. O indivíduo para ter uma ética ou seguir uma conduta ética escrita é preciso antes de tudo, ser um SER ÉTICO.

A moral e o Direito mudam quando muda historicamente o conteúdo de sua função social (isto é, quando se opera uma mudança radical no sistema politico-social). Por isto estas formas de comportamento humano têm caráter histórico. Assim como varia a moral de uma época para outra, ou de uma sociedade para outra, varia também o Direito. O ético transforma-se assim numa espécie de legislador do comportamento moral dos indivíduos ou da comunidade. Um típico exemplo desta variação é a revogação do artigo 5º (*) e seus parágrafos do Código de Ética do Profissional da Psicologia, que em dezembro/90, por razões de mudanças no ordenamento jurídico e social geral, ou de entendimento e interpretação subjetiva destas mudanças, desinstalou-se um juízo moral, alterando consequentemente um código de ética, que escrito traduz uma forma de conduta.

Antes de ser um ato de arrogância, o Código de Ética Profissional dos Psicólogos, é ato de humildade. Um ato de humildade ante a ciência e a pequenez humana. Os psicólogos aos 18 anos de idade profissional regulamentada se viram ante a questão que seu próprio objeto de estudo instiga, e construíram um conjunto de Leis (código) de ética (maneira reta de agir) da profissão. Se lermos atentamente a este código constataremos que não se trata de um manual a ser seguido mas um referencial a ser observado cada vez que não abrimos mão de nosso bem-estar e que portanto ficamos sujeitos a não ser éticos. A humildade está em constatar que o ser humano enquanto sujeito de pulsão, enquanto sujeito inconsciente, é assujeitado.

Se a assência coincidisse com a aparência, não haveria necessidade de ciência. Se o humano não estivesse sujeito ao erro não haveria sequer necessidade de discutir o que é ÉTICA, seríamos. Não haveria o "torto" e portanto não haveria o Direito, e muito menos necessidade de Leis Jurídicas.

O advento de um código de Ética para referencial é prova disso. Talvez as pessoas não percebam a singularidade do Código de Ética dos Psicólogos porque no próprio tratamento psicológico terapêutico se conduz por uma ética e para uma ética. Os próprios seguidores de Jacques Lacan concluíram o tratamento com uma frase que nos serve bem aqui e talvez ilustre o que eu estou dizendo aqui, ou seja, "não há clínica sem ética". O assunto clínico é muito abrangente e talvez transcenda nosso objetivo aqui neste artigo, mas ilustra que o ético é parte integrante do trabalho do psicólogo e mais que isso, é parte integrante do homem, mesmo porque, é como dizia Sartre, com seu poder de síntese de sempre: "Ainda estamos na pré-história daquilo que chamamos humanidade".

                           

Bibliografia

1  - ABBAGNANO. Nicola - Dizionario de Filosofia, tradução de Alfredo Bosi, Ed. Mestre Jou, SP, 2^ ed. 1982;        [ Links ]

2 - PSICÓLOGO, Código de Ética Profissional do, -publ. VI Plenário do Conselho Federal de Psicologia, Brasília, 1989;        [ Links ]

3 - VAZQUEZ, Adolfo Sanchez, -ÉTICA, tradução de João Dell' Anna, 6ª edição, ed. Civilização Brasileira, 1983;        [ Links ]

4  - DEL VECCHIO, Giorgio -Lições de Filosofia do Direito, vol. II, tradução de Antônio José Brandão, 3ª ed. portuguesa e 10ª italiana, Coimbra, 1959;        [ Links ]

5 - FREUD, Sigmund - El Malestar en la Cultura, in Obras Completas, Ensayos XCII al CCII, tomo III, terceira edición, traduccion del Aleman por Levis Leopez Ballesteros, Ed. Biblioteca Nueva, Madrid, Espana, 1973;        [ Links ]

6-MONTESQUIEU-DeL'Esprit des Lois, I vol., ed. Brasil Editora S/A. SP, I960:        [ Links ]

7 - SCARPA, Paulo Afonso -filósofo e psicanalista, entrevista concedida especialmente para este trabalho.

 

 

* Art. 5º - O Psicólogo, como pessoa física ou como responsável por instituições prestadoras de serviço em Psicologia, recusará emprego ou tarefa deixados por colega exonerado ou demitido por defender a dignidade do exercício da profissão ou os princípios e normas deste Código.
Parágrafo 1º - A restrição contida no "caput" deste artigo desaparece, caso se modifiquem as condições que originaram o afastamento.
Parágrafo 2º - A presente disposição aplica-se, também, às atividades de supervisão de estágio, nos cursos de Psicologia.