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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.12 no.1 Brasília  1992

 

Helena Antipoff: da orientação sócio-cultural em Psicologia a uma concepção democrática de Educação

 

 

Regina Helena de Freitas Campos

PhD pela Universidade de Standford, EUA. Professora de Psicologia Social e História da Psicologia no Departamento de Psicologia da UFMG

 

 

A idéia de que a inteligência humana é construída a partir da ação do ser humano sobre o meio ambiente sócio-cultural em que vive, e do impacto deste mesmo meio ambiente sobre a pessoa, é cada vez mais aceita entre os psicólogos educacionais. Pesquisas baseadas nas teorias de Piaget e Vygotsky têm contribuído para demonstrar a hipótese interacionista acerca do desenvolvimento das habilidades intelectuais nas crianças. No Brasil, o trabalho de pesquisadores como os da chamada Escola de Recife tem evidenciado a enorme influência dos mediadores culturais no desenvolvimento cognitivo, em oposição aos pressupostos nativistas das teorias da inteligência que se tornaram hegemônicas a partir do início deste século.

Naquela época, sob a influência dos trabalhos de Binet, Terman, Goddard e outros psicometristas, a maioria dos psicólogos acreditava que a inteligência seria uma atributo herdado, estável ao longo da vida do indivíduo. Esta idéia, no entanto, já começava a ser questionada por pesquisadores preocupados em compreender o papel da educação no desenvolvimento cognitivo das crianças.

No Brasil, a psicóloga e educadora Helena Antipoff tomou-se pioneira na difusão da abordagem interacionista da formação da inteligência ao demonstrar, já em 1931, o papel do meio ambiente sócio-cultural no desenvolvimento da cognição. Neste momento em que são comemorados os cem anos de seu nascimento, prestamos homenagem à mestra, revelando como sua obra como cientista e sua vida dedicada à educação das crianças marginalizadas brasileiras estiveram interligadas na defesa de uma concepção humanista da natureza humana e de uma concepção democrática de educação.

 

A vida de Helena Antipoff: uma saga fascinante

Helena Antipoff (1892-1974) nasceu na Rússia, em São Petersburgo, filha mais velha de um oficial do exército czarista. Após receber educação de elite em seu país natal, foi levada pela mãe, aos 15 anos, para continuar seus estudos em Paris.

Na França, decidiu especializar-se em Psicologia, ciência nova e instigante que encantava os estudantes no importante centro acadêmico e intelectual de Paris. Na universidade, estudou com Théodore Simon, um dos autores, juntamente com Alfred Binet, de uma das primeiras escalas de medida da inteligência a serem elaboradas no mundo. Em seguida transferiu-se para o Instituto Jean Jacques Rousseau, em Genebra, onde estudou com Edouard Claparède, mestre também do grande psicólogo suiço Jean Piaget.

Em 1916, a notícia de que seu pai havia sido ferido em uma das muitas rebeliões populares que então explodiam na Rússia, levou-a a retomar a seu país natal. Assistiu, assim, à eclosão do movimento revolucionário de 1917, e participou ativamente do trabalho de reeducação de crianças abandonadas pelos pais, seja por causa da guerra, 1914-1918, seja da própria revolução. Segundo seu depoimento, naquela época de desorganização social milhares de crianças perambulavam pelas ruas das grandes cidades russas. Abrigos foram então criados para recolhê-las e reeducálas.

Trabalhando em um destes abrigos, em São Petersburg (que passaria então a se chamar Leningrado, em homenagem ao líder da revolução), Antipoff era encarregada de examinar psicologicamente as crianças e planejar atividades de reeducação. Foi nesta época que observou um fato que iria marcar sua futura atuação como psicóloga e educadora: as crianças de rua, quando examinadas através dos testes psicológicos usualmente utilizados na França e na Suíça, obtinham resultados sempre inferiores aos das crianças normais, levando a crer que se tratava de crianças com sérias limitações intelectuais. No entanto, a observação das mesmas crianças em seu cotidiano de luta pela vida mostrava que eram espertas e ágeis na elaboração de complicadas estratégias de sobrevivência em condições extremamente adversas. Estas constatações levaram Antipoff a desenvolver a hipótese de que os testes de inteligência que vinham sendo elaborados serviam para avaliar o que ela chamou de inteligência civilizada, isto é, os testes se dirigem à natureza mental do indivíduo polido pela ação da sociedade em que vive e desenvolvendo-se em função da experiência que adquire com o tempo (Antipoff, 1931, p. 132).

A esta crítica aos testes de inteligência que se propunham medir um atributo considerado universal e estável, determinado geneticamente e independente da ação do meio sócio-cultural. Helena Antipoff acrescentaria a crítica ao próprio conceito de inteligência tal como era compreendido, isto é, como um atributo determinado somente pela natureza:

A inteligência é um produto mais complexo, que se forma emfunção de diversos agentes, entre os quais distinguimos, ao lado das disposições intelectuais inatas e do crescimento biológico, também o conjunto do caráter e do meio social, com suas condições de vida e finalmente a ação pedagógica, a educação e a instrução, à qual a criança se sujeita tanto em casa quanto na escola (Antipoff, 1931, p. 131-2).

Esta idéia, original na época, de que a capacidade intelectual das crianças pode ser em grande parte construída no contato com a sociedade e com a cultura, evidencia a perspectiva interacionista da autora. Esta perspectiva teórica traria importantes conseqüências para a visão da educação que ela defendia. Para ela, era possível desenvolver, moldar as capacidades intelectuais das crianças através da educação. Distante dos defensores de um certo darwinismo social segundo o qual as oportunidades educacionais só deveriam ser oferecidas àqueles que previamente demonstrassem as habilidades cognitivas requeridas pela educação formal (medidas através justamente dos testes de inteligência), Antipoff desejava demonstrar que o papel da escola é exatamente desenvolver aquelas habilidades. Isto seria necessário sobretudo no caso daquelas crianças cuja socialização primária, na família ou nas ruas, não houvesse contribuído para desenvolvê-las. Assim se formou, na autora, a concepção democrática de educação que iria caracterizar sua obra no Brasil.

Sim, pois a experiência na Rússia ainda não fora o ápice da carreira da psicóloga e educadora curiosa e competente. Antipoff deixou mais uma vez seus país em 1924, para se encontrar com o marido Victor Iretski em Berlim. Os dois haviam vivido juntos na Rússia, na época da revolução. Pouco depois, Iretski seria vítima de perseguições por parte do regime revolucionário e, sendo escritor, procurou abrigo em Berlim, onde se reuniam os chamados russos brancos, intelectuais e artistas não aceitos pelos radicais da revolução.

O casamento, no entanto, não durou muito. Segundo seu filho, Daniel Antipoff, nossa heroína era muito enérgica e independente, e não teria se adaptado ao ambiente conservador da Alemanha. Assim, a convite de seu mestre e amigo Claparède, Antipoff logo voltaria a Genebra, para trabalhar como sua assistente no Instituto de Ciências da Educação da universidade local, o Institut Jean-Jacques Rousseau. Ali, enquanto dirigia seminários para estudantes de várias partes do mundo nos quais divulgava a orientação interacionista e a experiência com as crianças russas. Helena Antipoff veio a ser convidada a lecionar em Belo Horizonte, na recém-criada Escola de Aperfeiçoamento de Professores do Estado de Minas Gerais.

A Escola havia sido criada pelo governo do Estado com a finalidade de atualizar as professoras primárias locais nos novos métodos e processos educativos que então se desenvolviam na Europa e nos Estados Unidos, e capacitá-los a empreender a reforma do ensino primário preconizada pelo então Secretário de Saúde Pública e Instrução Francisco Campos. Helena Antipoff foi convidada a lecionar Psicologia Educacional por dois anos, e acabou por permanecer em Belo Horizonte por toda a vida.

 

A pesquisadora em defesa dos direitos das crianças

Na Escola de Aperfeiçoamento de Professores de Belo Horizonte, Antipoff fundou o Laboratório de Psicologia. Como principal atividade do Laboratório, propôs pesquisar, juntamente com suas alunas, o desenvolvimento mental das crianças locais.

A investigação sobre o desenvolvimento das crianças belorizontinas em idade escolar permitiu verificar empiricamente a acuidade do conceito de inteligência civilizada. Já em 1930, sob a direção de Antipoff, as alunas da Escola de Aperfeiçoamento haviam avaliado o nível mental das crianças através da adaptação de três testes de inteligência: o teste da figura humana, elaborado nos Estados Unidos por Florence Goodenough; o teste Dearborn, no qual as crianças eram solicitadas a resolver uma série de quebra-cabeças gráficos, e o teste das l00 questões de Ballard, em que perguntas de conhecimentos gerais eram propostas aos examinandos. O objetivo da pesquisa era justamente estandartizar os testes para a população infantil de Belo Horizonte, isto é, verificar como se distribuiam as respostas entre as crianças locais.

Os resultados mostraram que, em média, as crianças brasileiras apresentavam uma perfomance inferior quando comparadas com as crianças européias ou norte-americanas. Além disso, revelaram que o desenvolvimento da inteligência das crianças locais seguia uma curva de freqüência irregular. A curva normal de desenvolvimento da inteligência então conhecida pelos especialistas apresentava um rápido crescimento nas idades inferiores, atingindo gradualmente uma plataforma por volta dos 12 anos. As curvas encontradas por Antipoff em Belo Horizonte eram atípicas: elas apresentavam uma plataforma em tomo dos 11 anos, ou mesmo uma queda neste ponto, e continuavam então a subir para atingir uma segunda plataforma em tomo dos 14 anos. Como interpretar estes resultados? Seria possível que as crianças brasileiras fossem mais atrasadas, do ponto devista intelectual, que suas companheiras de outros países? Para Helena Antipoff, a razão para as diferenças nas curvas encontradas estava nos altos índices de repetência observados entre as crianças em idade escolar. As crianças repetentes, em geral,

pertenciam a um meio miserável, vivendo em condições de extrema penúria, (...) não freqüentavam a escola regularmente e mudavam frequentemente de escola, por mudança de domicílio ou outros motivos (Antipoff, 1931, p. 156-7).

Os dados obtidos sugeriam, portanto, a correlação entre pobreza e baixos resultados nos testes. Para confirmar esta suposição, Antipoff calculou os resultados médios, em termos de quociente intelectual (QI), para cada escola pública da Capital, e verificou que

a ordem crescente dos QI em que são colocados os grupos escolares corresponde, grosso modo, aos níveis de bem estar socioeconômico e social dos bairros da cidade onde estes grupos estão situados (Antipoff, 1931,p. 191).

O espírito científico, aliado a uma corajosa honestidade intelectual, levaram Antipoff a fazer ainda um outro teste de correlação entre nível sócio-econômico e quociente intelectual: a correlação entre profissão do pai e resultados nos testes. Também neste caso uma alta correlação foi encontrada. Resultados mais baixos correspondiam a posições inferiores na escala das ocupações. Este fato levou a autora a concluir que

o quociente tão alto de correlação entre o meio e a inteligência parece apoiar nossa opinião de que os testes de inteligência geral medem precisamente a inteligência civilizada e não a natural (Antipoff, 1931, p. 193).

Outras pesquisas realizadas pela equipe da Escola de Aperfeiçoamento em 1931 voltaram a confirmar a influência do meio sócio-cultural no desenvolvimento da inteligência. Esta constante verificação levou Antipoff apropor que, na interpretação de resultados de testes psicológicos vários fatores do contexto fossem levados em consideração, entre eles a experiência anterior do sujeito, a cultura, o ambiente social e o estado emocional.

Apesar de todas estas precauções, as escolas primárias da época confiavam mais e mais nos testes de inteligência para prognosticar o futuro das crianças. Até mesmo o prognóstico da repetência era feito com base nos resultados de testes aplicados no início do ano letivo. Foi a partir desta época, aliás, que a repetência nas primeiras séries do ensino primário deixou de ser considerada um defeito de funcionamento do sistema para se tomar um verdadeiro artefato pedagógico no Brasil. Os responsáveis pelo sistema educacional raciocinavam de acordo com o princípio liberal de que, se o Estado deve proporcionar oportunidades iguais para todos, o aproveitamento delas dependeria das aptidões de cada um. Assim, só poderiam continuar os estudos aqueles que demonstrassem aptidão. Se a inteligência era considerada um atributo natural e imutável, distribuído desigualmente pela natureza, nada mais razoável do que supor que os repetentes eram justamente aqueles que não demonstravam as aptidões necessárias ao progresso nos estudos.

O ideal de nossos planejadores educacionais era, então, oposto ao ideal democrático dos defensores da teoria interacionista da inteligência. Enquanto para estes a educação devia ser considerada um direito, cabendo portanto à escola tratar de desenvolver as habilidades intelectuais das crianças usando os instrumentos pedagógicos adequados, para aqueles a educação era um privilégio concedido pelo Estado ao qual só deveriam ter acesso aqueles que demonstrassem capacidade para serem educados.

Antipoff concordava com os interacionistas, e defendia a idéia de que todas as crianças - mesmo aquelas que tivessem revelado limitações nos testes - poderiam ser educadas. Segundo ela,

o nível baixo nos testes de inteligência para muitas crianças de meio social inferior e crescidas fora da escola não prognostica absolutamente o futuro atraso nos estudos, pois nesta idade o organismo ainda está bem plástico e o cérebro capaz de assimilar com grande rapidez e eficiência os produtos da cultura intelectual (Antipoff, 1932, p. 16-7).

Em decorrência deste raciocínio, nossa autora se colocou decisivamente na defesa das crianças que apresentavam dificuldades. Lutava por elas nas escolas, onde queria que tivessem tratamento diferenciado, que fossem guiadas por professoras competentes. Elaborava com suas alunas exercícios de reeducação para auxiliá-las na difícil tarefa de acompanhar o programa de estudos regular, idealizado para crianças oriundas de meios sociais mais afluentes.

Estes esforços, no entanto, não tinham muita ressonância no interior do sistema de ensino público. Sua estrutura já estava definida: era um sistema competitivo, ao longo do qual poucas crianças teriam sucesso. Não havia lugar para todos no topo da pirâmide educacional, e educação primária já era um privilégio.

Desde então, a segunda série primária veio se tomando o nível mais seletivo de todo o sistema escolar brasileiro, pois as taxas de repetência na primeira série ainda hoje atingem níveis semelhantes aos observados em 1930, ou seja, entre 50 e 60%. Isto significa que de cada 100 crianças matriculadas na primeira série primária, apenas 40 ou 50 serão promovidas à segunda série ao fim do ano escolar.

Consciente desta situação, Antipoff criticava os programas escolares por serem muito ambiciosos, e as escolas por oferecerem poucas horas diárias de aulas. Seus apelos, no entanto, não foram levados em consideração. A tecnocracia educacional continuava oferecendo, como única oportunidade escolar para a maioria das crianças, a experiência do fracasso, da repetência.

Por volta dos anos 40, já um tanto desiludida com os rumos que vinha tomando o sistema de ensino público, Antipoff voltou-se mais e mais para a tarefa de criar uma espécie de demonstração de como poderia ser organizada a verdadeira escola popular no Brasil. Neste período, criou a Fazenda do Rosário.

 

A busca da harmonia social através da educação

Desde 1932, juntamente com um grupo de intelectuais e filantropos do qual participavam o Padre Álvaro Negromonte (ligado ao movimento do catolicismo social em Minas), psiquiatras como lago Pimentel, Teophilo Santos e Fernando de Magalhães Gomes (ligados à corrente da higiene mental) e professoras formadas na Escola de Aperfeiçoamento como Naytres Resdende, Yolanda Barbosa e Cora Duarte, Antipoff havia fundado a Sociedade Pestalozzi de Belo Horizonte, destinada à educação de crianças "excepcionais".

Para a Sociedade, "excepcionais" eram aquelas crianças que, seja por alguma anormalidade orgânica, seja por problemas de origem sócio-econômica ou de meio ambiente familiar, apresentavam dificuldades em acompanhar o programa escolar regular.

A Sociedade Pestalozzi era uma instituição de caráter privado, mantida por seus fundadores e por doações particulares ou públicas. Em 1935, a Sociedade estabeleceu o Instituto Pestalozzi, escola para crianças "excepcionais" que viria a se tomar modelo na educação dessas crianças no Brasil.

Os primeiros estudantes recebidos pelo Instituto foram recrutados entre as crianças abandonadas que viviam no Abrigo de Menores de Belo Horizonte, e entre crianças carentes que fracassavam nas escolas públicas locais. O Pestalozzi oferecia classes de educação especializada, e representou a primeira tentativa feita por Antipoff, no Brasil, no sentido de reproduzir sua experiência anterior com menores abandonados na Rússia revolucionária.

Mais tarde, em 1940, a Sociedade fundou uma outra instituição dedicada à educação dos "excepcionais", a Fazenda do Rosário. Na Fazenda, localizada em Ibirité, cidadezinha próxima a Belo Horizonte, Antipoff pensava aplicar os métodos da Escola Ativa - que enfatizam que as atividades educativas devem ser planejadas a partir das tendências e interesses espontâneos da criança - em um ambiente adequado. Os primeiros alunos da Fazenda do Rosário eram também crianças recolhidas pelo Abrigo de Menores de Belo Horizonte.

Após uma breve estadia no Rio de Janeiro (1940-1946), onde criou o Departamento Nacional da Criança, no Ministério da Saúde, Antipoff voltou a Minas e, daí por diante, dedicou-se principalmente à orientação pedagógica da Fazenda do Rosário, que pode ser considerada sua obra mais importante. No Rosário, procurou criar o ambiente ideal para a educação de todos os tipos de crianças, sobretudo dos "excepcionais sociais" que tanto a preocupavam.

 

A pedagogia democrática da Fazenda do Rosário

Os membros da Sociedade Pestalozzi partilhavam o ideal de que a educação pode contribuir para solucionar conflitos sociais de forma pacífica. Esta posição expressa a influência de duas vertentes ideológicas do pensamento social do século XX: a vertente científica e a vertente do catolicismo social.

A vertente científica pode ser exemplificada na obra do próprio patrono da Sociedade, o educador suíço Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827). Pestalozzi foi um dos precursores dos teóricos da Escola Ativa, corrente educacional de orientação rousseauniana segundo a qual é a própria atividade natural da criança que deve guiar o processo educativo. A preocupação social também estava presente na proposta de Pestalozzi, pois, já no século XIX, criou uma escola para a educação de crianças de baixa renda, na Suíça, onde procurou aplicar os princípios que preconizava.

Esta orientação educacional estava presente também no próprio ideário da revolução russa, no período inicial em que Antipoff lá viveu. Os pedagogos e psicólogos russos de orientação marxista viam a ciência como poderoso instrumento de transformação social. Pistrak, por exemplo, pensava que a renovação dos métodos educativos era necessária para formar pessoas desalienadas, comprometidas com opresente, que pudessem realizar os ideais de igualdade e fraternidade. Para isto, era preciso que a escola encorajasse a autonomia, o compromisso com a verdade, com a solidariedade e com atividades socialmente úteis. Em resumo, a "escola do trabalho", defendida por Pistrak, deveria contribuir para a formação de cidadãos ativos e conscientes de seu papel na sociedade socialista.

A proposta da "Escola Ativa" foi também defendida por Dewey, nos Estados Unidos, e por Claparède, na Suiça. Para Dewey, a escola primária deveria funcionar como uma pequena comunidade autogerida, para que os estudantes ali pudessem aprender as normas de funcionamento de uma sociedade democrática. Já na Maison des Petits, escola experimental vinculada ao Instituto Jean-Jacques Rousseau, em Genebra, orientada por Claparède, procurava-se deixar o ensino ser guiado pela atividade natural da criança, na expectativa de, desta maneira, possibilitar seu desenvolvimento integral como sujeito do conhecimento.

A vertente do catolicismo social, baseada na orientação da encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, defendia a idéia de que os católicos deveriam contribuir para a humanização da sociedade capitalista através da defesa da justiça social por meios pacíficos. Neste modelo, a educação era vista como tendo um papel importante na formação de cidadãos conscientes de seus direitos e comprometidos com a ética da não-violência.

O modelo educativo da Fazenda do Rosário era uma combinação da influência destas duas correntes do pensamento pedagógico. Antipoff trouxe a influência da pedagogia escolanovista e social democrata, os demais membros da Sociedade Pestalozzi, sobretudo as primeiras professoras da Fazenda, eram ligados ao movimento do catolicismo social. Antipoff soube aliar elementos dos dois modelos. Ela percebia que, na conservadora sociedade mineira da época, era importante fortalecer as convicções ideológicas do grupo. Como uma organização filantrópica, a Sociedade Pestalozzi dependia de doações de particulares e do governo. Era preciso, pois, convencer as elites e o governo local a apoiar suas iniciativas. Membros das classes mais abastadas costumavam pensar que era um desperdício de tempo e dinheiro dedicar-se à educação dos "excepcionais". A "excepcionalidade" mental, mesmo aquela que Antipoff havia demonstrado ser de origem sócio-cultural, era então predominantemente considerada uma fatalidade biológica.

O estabelecimento da escola da Fazenda do Rosário significava a realização dos ideais da Sociedade no que diz respeito ao ambiente e ao regime escolar nos quais crianças oriundas das classes populares - que "pouco ou nada progrediam nos grupos escolares da Capital" -deveriam ser educadas. Segundo Antipoff

a anormalidade mental, como certas formas de alienação mental, não são conceitos absolutos e sim relativos. O que torna o indivíduo anormal é, por mais das vezes, que ele não se ajeita às condições de sua família, de sua escola, de seu emprego, enfim da sociedade em que está vivendo (Antipoff. 1956. p. 222).

Para ela, seria precisamente o sentimento de inadequação assim produzido que traria as reações de violência e revolta observadas em crianças carentes ou abandonadas. Daí a necessidade de criar um ambiente de liberdade no qual as habilidades de cada um pudessem ser adequadamente desenvolvidas.

Como grande parte dos pedagogos progressistas da época, Antipoff também pensava que o local apropriado para estabelecer uma escola experimental para os "excepcionais", sobretudo para os "excepcionais" sociais, seria o meio rural. O campo ofereceria melhores oportunidades para o desenvolvimento das habilidades para o trabalho manual e intelectual em tarefas culturalmente signifícativas. Mais que isto, o próprio contato com a natureza ajudaria na formação do caráter das crianças e adolescentes.

Na verdade, esta ênfase na necessidade de estabelecer uma comunidade educativa no meio rural era uma resposta à própria organização da sociedade brasileira de então. A maioria da população vivia no meio rural, e esta era a origem dos migrantes que buscavam melhores oportunidades de trabalho no meio urbano. Estas tentativas, nem sempre bem sucedidas, contribuíam para aumentar a população marginalizada das cidades, de onde provinham as crianças rotuladas como "anormais" pelas escolas.

Para educadores como Antipoff, parecia natural que, levando a escola para o meio rural, seria possível não só reeducar as crianças marginalizadas, mas também evitar as migrações internas que geravam aquela situação na marginalidade. Esta era uma forma de reforma social possível através da educação.

Assim, a escola da Fazenda do Rosário deveria ser uma pequena comunidade agro-industrial, gerida em um regime cooperativo. As tarefas propostas aos estudantes deveriam evitar a mecanização, para encorajar o desenvolvimento de variadas habilidades. A mais importante delas, contudo, seria a habilidade da cooperação. Para dirigi-la, educadores com sólida cultura pedagógica deveriam ser escolhidos. Seriam eles que, como verdadeiros cientistas, iriam registrar a experiência e contribuir para a construção da ciência da educação.

O modelo proposto por Antipoff, e que foi efetivamente implantado na Fazenda do Rosário por algum tempo, era acima de tudo um modelo democrático, e nisso diferia do modelo das escolas públicas comuns. No Rosário, crianças e adolescentes eram chamados a participar de sua própria educação nos conselhos da Fazenda, nos quais decisões eram tomadas em relação à gestão da escola. Além disso, respeitava-se a autonomia individual na escolha das tarefas a serem desempenhadas, e considerava-se o trabalho manual como passo necessário no desenvolvimento intelectual.

A vida cotidiana na Fazenda do Rosário está documentada nos diários das professoras que participaram da nova experiência educativa, durante os anos 40 e 50. Elas em geral moravam na Rosário, e percebiam seu trabalho ali como cheio de dignidade. Antipoff exercia sobre o pessoa da Fazenda um tipo de liderança carismática, e assim mantinha a coesão do grupo em tomo de um projeto comum.

A questão do desenvolvimento intelectual era trabalhada através da participação dos estudantes na própria gestão da Fazenda, e nas oficinas pedagógicas. Nas oficinas, os mestres (seja de trabalhos manuais ou intelectuais) orientavam os aprendizes. Estes tinham liberdade para escolher a tarefa à qual iriam sededicar. O método utilizado era chamado de "experimentação natural": os estudantes podiam experimentar livremente as diversas tarefas planejadas para a oficina. O instrutor deveria apenas observar a atividade espontânea dos alunos. Supunha-se que o estudante se dedicaria com mais persistência à tarefa que lhe parecesse mais adequada a suas próprias habilidades e interesses. A curiosidade natural da criança a levaria a procurar tarefas cada vez mais complexas, contribuindo assim para o seu desenvolvimento integral.

As crianças também participavam das atividades agrícolas e da venda de produtos da escola. Cada atividade era realizada na forma de um "clube". O "clube" era um grupo de estudantes encarregado de um conjunto de tarefas por um tempo determinado. A divisão do trabalho no interior do "clube" era feita de acordo com o método da experimentação natural, sob a supervisão do professor. Os "clubes" funcionavam em sistema de rodízio, de forma que os estudantes, durante o período de estada na Fazenda, podiam participar das atividades de diversas oficinas. A operação das oficinas pedagógicas obedecia aos princípios pedagógicos estabelecidos para a escota rural do Rosário: aprender fazendo, respeito à atividade espontânea do estudante, importância do trabalho manual para o desenvolvimento intelectual, incentivo à criatividade e à cooperação, gestão democrática.

Todas estas características da organização educativa da Fazenda expressam a orientação pedagógica autogestionária, libertária ali preconizada. Nelas encontramos a influência dos ideais democráticos e humanistas dos escolanovistas europeus ligados ao movimento socialista. Como na pedagogia de Freinet e Pistrak, por exemplo, a orientação rosariana enfatizava a importância da experiência do trabalho como atividade consciente de transformação do mundo, e não como repetição submissa de esquemas planejados autoritariamente por outrem. Daí a importância atribuída à atividade espontânea do sujeito-aprendiz: a experiência educativa deveria levá-lo a se apropriar da capacidade de transformar a natureza e o meio cultural como sujeito, e não como objeto do processo.

Na mesma direção, a compreensão do sujeito da aprendizagem e do conhecimento como centro e núcleo em tomo do qual se organiza o processo educativo expressa a adoção da abordagem interacionista do desenvolvimento cognitivo: o sujeito do conhecimento não é nem o sujeito passivo, assujeitado às condições determinadas pelo ambiente, como queriam os behavioristas, nem o sujeito já-dado, estruturado desde o início pelas determinações biológicas, como queriam os racionalistas. O sujeito dos inte-racionistas é o sujeito que ativamente transforma e compreende o mundo, e toma a transformá-lo à medida que elabora e reelabora sua compreensão do meio que o cerca, com a ajuda dos instrumentos que lhe são fornecidos pela cultura, ou que ele mesmo cria. Por isso, a importância dada pela equipe da Fazenda à criatividade, ao mesmo tempo que os instrumentos culturais de compreensão e transformação do mundo são colocados sem censura à disposição do aprendiz.

Esta bela proposta não poderia, contudo, prescindir da gestão democrática. Os processos de tomada de decisões, na Fazenda, implicavam intensos debates e a participação de todos: professores, trabalhadores e estudantes. Quando ocorreu, por exemplo, de um dos "clubes" de estudantes, responsável pelo cultivo de um dos canteiros da horta, decidir cortar um pé de maracujá que estaria prejudicando as verduras, foi realizado um plebiscito para referendar a decisão (e o pé de maracujá acabou não sendo sacrificado). Assim, os procedimentos de autogestão comunitária eram ao mesmo tempo norma de funcionamento da Fazenda e parte do processo educativo. Ainda neste caso, a formação do sujeito autônomo e consciente, capaz de atuar na transformação e humanização do mundo, era o projeto prioritário do Rosário.

Os alunos daFazenda, em geral, eram crianças que provavelmente fracassariam em uma escola pública tradicional. Oriundas das classes populares, não teriam ainda desenvolvido as habilidades que caracterizavam o tipo de inteligência civilizada definido por Antipoff e requerido pelas escolas comuns. Na escola do Rosário, no entanto, acreditava-se na possibilidade da construção das habilidades intelectuais daquelas crianças, às vezes contra todas as expectativas. Por conseguinte, sua proposta educativa aliava uma orientação construtivista à questão do desenvolvimento cognitivo e um modelo democrático de educação: democracia como sinônimo de autogestão educativa e como opção pela abertura de oportunidades educacionais para todos. A educação como um direito, visando a solidariedade e a harmonia social.

Utopia? Pode ser. No Brasil de hoje, onde todos os anos a escola pública ainda deixa de atender um número considerável de crianças, e onde ainda se observam taxas altíssimas de repentência nas primeiras séries primárias, o direito à educação ainda pode ser considerado uma utopia. Nossa escola continua funcionando como se não fosse sua a responsabilidade pelo desenvolvimento intelectual e pela formação para a cidadania. No entanto, a luta pelo respeito aos direitos das crianças e pela construção de um novo contrato social que enfatize a vida, a cooperação e a paz com a natureza ganha cada vez mais força neste final de século. Por isso, a lição de respeito aos direitos humanos expressa na pequena comunidade do Rosário e o vigor dos ideais de Helena Antipoff devem continuar a ser lembrados e enfatizados.

Helena Antipoff viveu na Fazenda do Rosário até o final de sua vida. Um vida monástica, mas cheia de conteúdo humano. Ainda hoje a Fundação Helena Antipoff, mantida por um grupo de familiares e amigos, preserva e cuida de manter viva a memória da mestra. Nos arquivos da Fazenda, nos diários dos alunos e nas numerosas publicações de Antipoff encontramos o testemunho de seus ideais: o ideal da pesquisadora atenta aos fatos, procurando registrá-los, analisá-los e interpretá-los com agudo senso crítico, e o ideal humanista da igualdade entre os homens em um ambiente de solidariedade, liberdade e autonomia.

 

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