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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.12 n.1 Brasília  1992

 

ENTREVISTA

 

Helena Antipoff: o espírito científico da Psicologia

 

 

Entrevista: Pedro Parafita Bessa

 

 

 

Era uma pessoa inteligente, muito criativa, exigente com ela e com todos os que a cercavam no ambiente de trabalho e de um senso de responsabilidade social muitíssimo desenvolvido. Esses são alguns dos adjetivos, aos quais o psicólogo Pedro Parafita Bessa recorre para traçar um perfil substantivo de Helena Antipoff. A bagagem cultural e as experiências que acumulou ao longo de sua vida, até desembarcar no Brasil de 1929, fizeram ainda dessa mulher uma fonte de sabedoria e conhecimento que se destacava entre os mais cultos da da pequena Belo Horizonte e, ao mesmo tempo, encantava pela sua absoluta simplicidade e humildade, ao lidar com as crianças e os menos favorecidos.

Pedro Bessa foi aluno da única turma de Didática da professora Helena Antipoff, no curso de Filosofia e, foi ela também, a sua orientadora, na primeira pesquisa que realizou sobre "O Conteúdo dos Jornais". Nessa entrevista, Pedro Bessa fala do trabalho de Helena Antipoff e da sua importância para o desenvolvimento da Psicologia no Brasil.

 

 

Helena Antipoff chegou a Minas Gerais convidada pelo então secretário de Saúde Pública e Instrução, Francisco Campos, para trabalhar na Escola de Aperfeiçoamento dos professores da rede primária de ensino, em 1929. Qual foi a sua contribuição para a Psicologia nesse período?

Helena Antipoff instalou nessa escola o Laboratório de Psicologia, o primeiro nos moldes clássicos instalado no país. A partir daí, iniciou o trabalho de formação dos profissionais dentro dessa matéria, introduzindo um espírito científico ao estudo, que ainda não havíamos experimentado. No ensino primário, ela introduziu inúmeras técnicas renovadoras, entre elas, a homogeinização de classes, as medidas objetivas, tanto de cunho psicológico, quanto pedagógico e ainda a escala de medida psicológica, construída e por ela adaptada, para atender às características do nosso meio.

Esse trabalho teve uma continuidade?

Sim. Com a criação da Faculdade de Fisolofia de Minas Gerais, em 1939 , Helena Antipoff foi indicada para assumir a cadeira de Psicologia Educacional, como professora catedrática, fundadora da instituição. Naquela época, só havia duas cadeiras dessa disciplina na universidade: uma no curso de Filosofia e a outra, de Psicologia Educacional, no curso de Pedagogia e Didática. Em 1944, ela lecionou o primeiro curso de Didática da Faculdade de Filosofia, usando as instalações do laboratório da Escola de Aperfeiçoamento. Suas aulas duravam pelo menos duas horas, sendo que, na primeira parte, ela apresentava uma exposição teórica e, na segunda, que podia se prolongar, orientava os alunos nos trabalhos práticos em laboratório. Cada aluno deveria fazer um relatório sobre as atividades práticas, que depois era discutido com a turma. Ela procurava mostrar as dificuldades da observação no campo da Psicologia e ressaltava a necessidade de os alunos perceberem, nas experiências cotidianas, as questões que seriam problemas da Psicologia. Nao admitia opiniões que não tivessem justificativas pertinentes. Era muito crítica e exigia que os alunos também o fossem.

O seu encontro com Helena Antipoff se deu nessa época, não foi?

Entrei para a Faculdade de Filosofia com a idéia de me tomar pesquisador. Fiquei bastante frustrado durante o curso, porque os professores eram pessoas muito competentes do ponto de vista teórico, mas não tinham experiência nem capacidade para orientar pesquisas no seu campo de trabalho. Ao iniciar o curso de Didática, percebi que ali estava alguém que poderia me ajudar. Vencendo minha timidez, conversei com a professora Helena Antipoff e disse-lhe do meu desejo de ser pesquisador e de tê-la como orientadora. Esse foi o meu primeiro contato com ela. A professora, então, me convidou para ir até sua casa, numa determinada noite, para discutirmos o que faríamos.

Nesse encontro tem uma passagem interessante que o senhor poderia nos relatar.

É verdade. Quando cheguei lá. Helena Antipoff me convidou para entrar e pediu-me que aguardasse alguns instantes, até que terminasse um serviço que já começara. Sobre a mesa da sala, havia um livro de arte, com reproduções de pintores famosos. Comecei a folheá-lo e, quando ela retomou, estava vendo um retrato da fase cubista de Picasso. Ela observou um instante e perguntou-me o que achava do que estava vendo. Respondi-lhe que havia gostado. Ela, então, me disse que uma pessoa de nível superior não poderia limitar suas respostas a impressões de tipo sincréticas: gostei, não gostei, é bonito, é feio; mas que tinha obrigação de fundamentar o que dizia. Pediu-me que fizesse isso em relação à figura que estava vendo. Essa postura, que foi a fala inicial dela, manteve-se durante toda a realização da pesquisa que iniciei sobre sua orientação. Era uma pessoa muito exigente, quando lidava no nível universitário e cobrava das pessoas que também demonstrassem dedicação ecompetência e que se esforçassem para suprir quaisquer falhas em sua formação prévia. Nesse mesmo dia, perguntou-me quantas línguas era capaz de ler e entender. Quando lhe disse que dominava bastante bem, além do português, o espanhol, francês e inglês e, com dificuldade, era capaz também de ler o italiano, ela não se surpreendeu. Apenas disse que deveria, necessariamente, aprender também o alemão, porque não era admissível que alguém se tomasse um pesquisador competente na área da Psicologia e, mesmo da Ciências Sociais, sem dominar esse idioma.

Como foi a repercussão do trabalho de Helena Antipoff na Belo Horizonte de 1929?

Durante todo o tempo que Helena Antipoff trabalhou sobre contrato do Governo do Estado de Minas Gerais, de 1929 até 1945, havia dois grupos políticos que se chocavam: de um lado, estavam as pessoas que compreendiam seu trabalho e as inovações que ele introduzia e se encantavam com a sua alta formação intelectual, com a sua invulgar capacidade de liderança, seu idealismo e simpatia por nossos problemas. De outro lado, principalmente dentro da burocracia, estavam os que ofereciam enorme resistência a tudo que ela pretendia fazer. Mesmo o seu trabalho em prol dos deficientes mentais, encontrava, entre os altos funcionários da Secretaria da Educação e em muitas lideranças da comunidade, forte oposição. Julgavam um investimento inútil de recursos financeiros e um trabalho sem maiores serventias, visto que não era possível normalizar esses deficientes. Mas ela persistiu na sua pregação, de que essas crianças eram titulares dos mesmos direitos à Educação, Saúde e ao pleno desenvolvimento de suas capacidades, por menor que essas fossem, já que o Estado reconhecia tais direitos às crianças normais.

A Igreja também se opôs, inicialmente, ao trabalho de Helena Antipoff?

A entrada de Helena Antipoff no nosso acanhadíssimo meio de 1929 provocou muitas resistências e, de fato, até mesmo de algumas lideranças religiosas, que se opunham, por exemplo, à utilização de testes mentais, que ela introduziu no nosso meio, alegando ser impossível medir a alma de quem quer que fosse. Essas dificuldades, que persistiram por muitos anos, foram se atenuando na medida em que as pessoas foram sendo informadas de que a Psicologia Científica, que se desprendera da Filosofia no final do século XIX, não pretendia medir a alma de ninguém, mas estudar fenômenos ligados ao funcionamento mental e emocional das pessoas.

Qual a contribuição de Helena Antipoff para o desenvolvimento da Psicologia no Brasil?

Pode-se dizer que a Psicologia, enquanto ciência, surgiu em Minas Gerais com a vinda de Helena Antipoff. Antes havia estudiosos autodidatas, que não tinham dessa ciência a visão abrangente e completa que uma pessoa formada nos melhores centros europeus da época necessariamente teria, como era o caso de Helena Antipoff. Ela introduziu em Minas, e no Brasil, o estudo da Psicologia dentro da metodologia clássica. Vale dizer, observações sistemáticas a partir de hipóteses bem formuladas,coleta controlada de dados, uso de instrumentos de medida, explicitação de cada passo do trabalho, com as razões das escolhas feitas, crítica do material e de sua organização para tirada de conclusões e crítica dessas conclusões. Treinava os alunos na observação, na utilização dos instrumentos de laboratório, na precisão do uso dos aparelhos. Nessa época, outras pessoas tiveram contribuições importantes, mas Helena Antipoff teve uma importância fundamental para o desenvolvimento da Psicologia no Brasil.

O embrião dessa ciência no Brasil foi a Psicologia Educacional. Hoje, as escolas e mesmo pesquisadores estão mais voltados para a Psicologia Clínica. Como se deu esse deslocamento?

No Brasil, a Educação é uma área que vem sendo, sistematicamente, posta de lado. Sempre que o presidente de plantão precisa adotar uma política de contenção, os cortes são mais profundos nas áreas da Educação e Saúde, porque a alta cúpula do governo independe das políticas públicas para ter acesso a esses bens. Então, esse redirecionamento do ensino da Psicologia no Brasil pode começar a ser entendido por aí. Depois, a meu ver, fomos penalizados por um erro de concepcção ideológica das esquerdas, acirrado a partir dos anos 60. Para esses grupos, a solução de todos os problemas passa única e necessariamente pela via do Social, omitindo o indivíduo nessa visão. A luta de classes é a explicação para todos os obstáculos. Mas nós não nascemos classe, nascemos indivíduo. Apesar disso, todos os trabalhos voltados para o atendimento individual foram marginalizados. Sem prioridade para o Governo , a Educação ainda começou a ganhar um perfil eminentemente feminino, e, assim, mesmo diante dos graves problemas que esse setor enfrenta, prevalece no seu espírito as características femininas, de tolerância e passividade -características moldadas e reforçadas pela educação tradicional - contra uma atitude mais reivindicatória. Com a decadência da Educação, regride também os trabalhos na área de Psicologia Escolar. Mesmo os professores e administradores não estão conscientes sobre o que os psicólogos podem fazer nesse área.                                           

 

Daniel Antipoff

Fizemos um paralelo entre Pestalozzi e Helena Antipoff, mostrando suas semeIhanças: ambos despreendidos, ambos preocupados com o bem estar alheio tanto do rico como do pobre. Julgavam mais importante o saber viver, do que o saber propriamente dito e assim preconizando o aprendizado do trabalho manual, a ocupação da oficina artesanal. Ambos preferiram o campo, como meio ambiente mais apropriado para esses seres carentes e ambos tornaram-se personalidades carismáticas.

Na década de 1950 d. Helena já falava em Ecologia, quando somente 20 anos depois a palavra tomou sentido no Brasil. Influenciou o Interior a dar valor a sua produção folclórica, artística do homem do campo, que não precisaria ir para a cidade, confinando-se em favelas: vendendo aos turistas as colchas multicores, bem como caixinhas de madeira, entalhadas com rodelas de cipó, ou ainda peças de cerâmica, esculpidas na argila, reconstituindo cenas da vida do campo. (Trecho extraído do depoimento de D. Antipoff.)

Daniel Antipoff - Psicólogo

 

Paulo Rosas

Lourenço Filho escreveu que a Psicologia Aplicada no Brasil se originou nas práticas médicas e pedagógicas. Médicos. educadores, médicos-educadores, psicólogos. Muitas wzes, as duas vertentes se confundiram. Helena Antipoff representa a vertente pedagógica. A motivação educativa é a que mais se aproxima da idéia de "importuno estímulo" de que fala Arthur Gates.

Mas, o conteúdo psicológico de suas práticas e iniciativas é igualmente importante. Compreendia que a educação da criança diferente - deficientes, superdotados, com problemas de conduta - exigia cuidados também psicológicos: terapêuticos e preventivos. Esta, a meu ver, mais do que as pesquisas que realizou, os testes que construiu ou adaptou - sem minimizar a importância dessas contribuições- a principal herança de Helena Antipoff para a Psicologia Aplicada, que entre 1930 e I960 estava em formação no Brasil.

Paulo Rosas - Psicólogo, professor da UFPE