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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.12 n.3-4 Brasília  1992

 

Interrogando a deficiência

 

 

Elizabet Dias de Sá

Contribuição ao Seminário "Qualidade de Vida da Pessoa Portadora de Deficiência" (Belo Horizonte, 8, 9 e 10 de junho 1992)

 

 

Sob o impacto da diferença

Ao longo de minha vida pessoal e profissional, estou sempre em contato com situações dramáticas de centenas de pessoas desprovidas de recursos para suprir necessidades decorrentes de restrições de natureza físicaou mental. Sou procurada por pessoas portadoras de diversos tipos de deficiência, seus familiares, professores e especialistas emocionalmente fragilizados e desinformados diante de suas dificuldades. A casuística da falta de visão é a mais frequente porque converti minha própria deficiência em objeto de estudo e de trabalho.

São mães apavoradas diante da fatalidade de um filho que nasceu desprovido da possibilidade de enxergar, ouvir ou falar, ou então, nasceu "perfeito", tornando-se paralítico; evidencia retardo em seu desenvolvimento ou manifesta sinais de distúrbios ou de formações inesperadas. Entram em pânico, buscando, ansiosamente, ajuda e respostas para suas indagações perturbadoras:

Como se relacionar com essa criança tão diferente do filho imaginado? que tipo de brinquedos e de brincadeiras são apropriados? Conseguirá interagir com outra criança? Aprenderá a ler? Qual é a escola indicada? Conseguirá trabalho? O que será de seu futuro? O que fazer com ela ou por ela?

São professores que não sabem como agir, quando encontram um aluno cego, surdo, que não fala ou que "nunca entende". São especialistas angustiados diante da diferença, do desvio e da heterogeneidade. Reclamam da escassez de instrumental teórico e demandam especialização para compreender e avaliar cada caso ou situação atípica.

São pacientes que nada sabem a respeito de sua enfermidade que é recuperável em muitos casos e, algumas vezes, irreversível. São pessoas que perdem, abruptamente a visão, devendo reorganizar-se para se reconhecerem e reconhecerem o mundo, não sucumbindo à cegueira. Alguns conservam, apenas, um resíduo visual, podendo aprender a aproveita-lo ao máximo, através de exercícios persistentes e orientados.

Movimentos reivindicatórios apresentam demandas sucessivas de atendimento educacional especializado, remoção de barreiras arquitetônicas, acesso ao mercado de trabalho e garantia dos direitos das pessoas deficientes.

 

Da desigualdade à cidadania

A condição de "deficiente" é apontada em todas as situações como algo anormal, fora do comum, excepcional. Uma variedade de comportamentos exprimem negação, marginalização, superproteção e outros sentimentos confusos e contraditórios mesclados de ambivalência, decepção, culpa, rejeição. A deficiência modifica o enredo da família causando desequilíbrio e mal-estar. Enfim, a presença do deficiente provoca reações emocionais cujas proporções são surpreendentes.

A deficiência ocasiona efeitos importantes no desenvolvimento da personalidade e do processo de adaptação social do indivíduo.

O sentido da deficiência na vida de uma pessoa é o produto do entrelaçamento de sua história pessoal com o meio social onde vive. Sobre o indivídio considerado deficiente incidirá o estigma da "incapacidade", da "invalidez". Sobre ele recairá o peso da menos valia e da opressão. Existem aqueles que ousam desafiaras leis, ignorando supostas "inaptidões" e mobilizam recursos no sentido de pleitear e tomar posse dos espaços conquistados.

Numerosas são as pessoas que não conseguem caminhar sem as próprias pernas porque estão emocionalmente paralisadas diante dos membros inertes ou amputados. Grande é o número de pessoas surdas que se recusam a experimentar as vibrações do mundo, emudecidas pela explosão de sua própria dor. Incontáveis são as pessoas cegas, confinadas em si mesmas, temerosas de enxergar a vida com suas próprias mãos. Triste é a animalização de crianças e adultos, estagnados em seu crescimento pelas demandas de uma certa dotação física ou mental. O "ceguismo", o "mutismo", paralisias emocionais e a "imbecilização" são alguns dos fenômenos ocasionados pelo apego à concretude e à dimensão corpórea da deficiência. O acesso à dimensão simbólica ultrapassa os limites da deformidade e da privação, revelando infinitas possibilidades.

Afinal, qual é o estatuto da deficiência? Como distinguir direito de privilégio ou discriminação? Como normatizar a "eficiência"? Quais são os patamares da igualdade e da diferença? Como se localizam a individualidade e a heterogenidade nos diversos padrões de deficiência?

A aceitação e integração das pessoas consideradas "deficientes" é ainda objeto de discursos e racionalizações. A corrente máxima de que "somos todos iguais" serve antes para ocultar o preconceito e justificar a exclusão do que para reconhecer a diferença. A imposição e exposição da deficiência retrata dicotomias e ambiguidade de ações e atitudes. As intenções parecem claras e as melhores possíveis. Obscuros são os afetos e desejos que forjam uma imagem social negativa em torno da pessoa deficiente produzindo estereótipos e rotulações.

Castel (1981) compara as noções de doença e deficiência grave e conclui: "A noção de deficiência coloca em primeiro plano aperformance social. Ela depende de uma medida da deficiência do comportamento com pretensão objetivista. O deficiente representa sempre um "deficit". O deficiente é contado como diminuído, retardado, incapaz, inválido, enfermo, mutilado, inferior, às vezes, tarado". Essa concepção amplamente compartilhada pelo senso comum remete a uma imagem social ambígua do deficiente que é visto ao mesmo tempo como debilitado, frágil e exemplo do ponto de vista da força de vontade e coragem diante da vida. Ressalva feita aos deficientes mentais de quem se espera docilidade e submissão e para quem a tutela é mais abertamente declarada.

Castel questiona o espírito da lei cuja característica é tentar unificar sob um mesmo rótulo e fazer depender de uma mesma instância de decisão casos absolutamente heterogêneos. É o que presenciamos, por exemplo, no contexto escolar. Os alunos são agrupados em turmas mais ou menso homogêneas de acordo com as dificuldades de aprendizagem ou são agregados em escolas especiais condizentes com o padrão de deficiência ou tipo de excepcionalidade. O mesmo ocorre no âmbito da profissionalização dessas pessoas que são aposentadas por invalidez ou simplesmente excluídas do mercado competitivo, porque não se enquadram nos parâmetros da legislação existente.

Para Castel, "o que se esconde atrás da deficiência não é a irrupção do patológico mas o reino da desigualdade. Desigualdade que remete à deficiência de uma constituição ou desigualdade de quem lida na luta pela vida concebida como percurso de obstáculos. Remete smepre a uma inferioridade. A deficiência naturaliza ao mesmo tempo, a história da pessoa, fazendo de sua falta um "deficit" e a história social, assimilando as performances requisitadas a um certo momento histórico, a uma "normalidade natural". Por isto, é que é impossível distinguir a rigor o deficiente de certas formas de desadaptação social".

Ao examinarmos as circunstâncias que cercam a vida do deficiente, identificamos mecanismos de segregação, marginalização e exclusão, fomentados por políticas assistencialistas e filantrópicas. São concepções autoritárias, baseadas em sentimentalismo em que o deficiente é tratado como inferior, subalterno e infantil. Para retirar essas pessoas de posiçãode "apêndice inútil" da sociedade, reconhecendo sua cidadania e identidade de sujeitos desejantes, será necessário reexaminar as concepções de deficiência e seus corolários. Somente assim, será possível redefinir as políticas de reabilitação, compreendidas não mais no sentido ortopédico e sim em todos os sentidos da independência e autonomia como dinâmica de recomposição da própria vida.                                 

CASTEL R.-"A Gestão dos Riscos" - Francisco Alves - 1981.        [ Links ]