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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.12 n.3-4 Brasília  1992

 

A casa dos sem-casa

 

 

Elaine Pedreira Rabinovich

Psicóloga Clínica, mestranda em Psicologia Experimental - USP

 

 

"As ciências, arrastadas nessa aventura, a nossa, existem para refrescar tudo o que tocam e aquecer tudo o que penetram, a terra na qual vivemos e as verdades que nos fazem viver" (Moscovici)

Desde a década de 60, houve, no Brasil, um incremento de estudos sobre moradias populares, acompanhando o crescimento acelerado da população urbana (Taschner, 1982).Estudos tentando comparar o modo de vida e a organização psíquica já foram realizados em nosso meio (Massa, 1986). Recentemente, o Journal of Social issues (vol. 446, nª 4, 1990) dedicou a edição ao Urban Homelessness. Contudo, não temos notícias de estudos visando descrever a casa dos sem-casa, enquanto organização espacial e dinâmica, embora, conforme dados da Prefeitura Municipal de SãoPaulo (Leite, Folha de São Paulo, 09/11/91) há 4 mil "homeless" apenas na cidade de São Paulo.

O presente trabalho visa apresentar os resultados preliminares de uma pesquisa sobre a organização do modo de morar na ausência de paredes ou tetos convencionais. Tem por objetivo estudar o modo de morar das pessoas que moram "embaixo da ponte".

Este estudo derivou da necessidade de aprofundar o significado de algumas categorias descritivas do ambiente doméstico oriundas de pesquisa realizada por Rabinovich, Oliviera, Santos e Siqueira (1990). Essa pesquisa pretendeu correlacionar informações do ambiente material, relacional e social com o desenvolvimento de 60 crianças inscritas em um Centro de Saúde da Capital. Nela, o ambiente doméstico foi analisado em função de dois eixos semânticos: a organização e a coletivização, em torno dos quais pareceu-se organizar a estrutura da casa.

Estudos etnosemióticos, como os de Hall (1989) e Hoppal (1987), procuraram, pela comparação de arranjos espaciais dentro de culturas diversas, entender os projetos internalizados que pré-existem à organização desses espaços e o comportamento das pessoas que o geram e que nele vivem.

As "casas dos sem-casa" propiciam um experimento naturalístico onde, em relação a moradias convencionais, variam os aspectos estruturais: paredes fixas se tornam móveis, móveis são sucatas, moradias são acampamentos. Além disso, o espaço, suas divisões e funções são criados "livremente" por seus moradores, propiciando, desse modo, uma variação naturalística às categorias descritivas de casas mais convencionais.

 

Objetivos

A partir da descrição das "casas dos sem-casa" pretendeu-se estudar alguns fenômenos psíquicos que presidem ao modo de morar, as dimensões ao longo das quais eles ocorrem e os elementos da organização, cognitivo e emocional, que são por ele denotados.

Deste modo, concomitantemente à descrição das casas, procurou-se conhecer as pessoas que nelas moram.

 

Metologia

Foram entrevistados "moradores" de 18 "casas", num total de 61 pessoas.

Os moradores "das casas" foram abordados através de um questionário aberto semi-estruturado, visando à sua caracterização quanto a idade, sexo, escolaridade, profissão atual e anterior, tipo de relação entre os moradores, opinião quanto ao modo de vida, organização econômica (quem ganha, como se ganha, como se gasta, em que é gasto), etc.

O espaço da casa foi pesquisado com base em um "roteiro para observação de ambiente doméstico" (Rabinovich et alii, 1990), registrando-se: número de cômodos e funções a que servem; dimensões; paredes (número, material de que é feita) enfeites (quadros e objetos, número e tipos) a arrumação; móveis (o que tem, sua origem) e outras informações não previstas no Roteiro.

Foi feito um diagrama de cada casa e essas foram fotografadas e filmadas quando possível.

 

Resultados

1. Funções do morar

1.1 O dormir

Segundo se constatou, a definição básica de casa é de local de dormir pois a função do "quarto" definiu o morar dessas pessoas.

O quarto tem sido alvo de estudos como o de Debie (1988). Conforme Jouvet (1978), a segurança é fundamental para o sonho, pois só quando o animal se sente ao abrigo de qualquer agressão pode chegar ao estado de paralisia que caracteriza a fase paradoxal onde ocorre o sonho. Segundo esse autor, o sonho é fundamental na emergência do ser humano. Os moradores investigados não posuem cama, mas dispõem o local onde dormem, exatamente como nas moradias mais convencionais. Tal disposição implica a cabeça permanecer em oposição à porta, a mulher ficar deitada à esquerda do homem, e a criança ao lado da mulher. Poderíamos locar a mesma pergunta que Abrahm Moless (1978) colocou: "o recolhimento do quarto de janelas cerradas, na caverna fechada de todos os lados salvo numa direção, seriam elementos fundamentais da evolução relativamente ao sono episódico no galho inseguro?"

Nossa hipótese, a partir destas observações, é que como o sono deixa a pessoa desamparada, ela precisa se proteger; ela o faz de dois modos, pelo que aprendemos com os "sem-casa": através de abrigos construídos, e através de ações coletivas. De fato, mesmo o indivíduo solitário que dorme na "sarjeta", busca proteger a cabeça como resquício de auto-preservação. Por outro lado, o grande inimigo desse habitante na cidade-selva não são mais animais nem mesmo condições ambientais, dado São Paulo ser uma cidade de clima temperado: os inimigos são "os outros", as pessoas que ateiam fogo às suas vestes e/ou posses e que podem também atacá-los com armas brancas como porretes. Por isso muitos "sem-casa" realizam turnos, estando sempre um em estado de vigília a fim de garantir a sua sobrevivência e a dos demais.

Esse modo de viver obriga, pois, a um certo grau de solidariedade, de união para sobreviver. Esta solidariedade pode se dar em vários níveis e formas: desde organizações estáveis no tempo até uma administração coletiva dos proventos do trabalho.

Outra função do quarto de domir seria propiciar a intimidade, em geral, e a intimidade sexual, em particular.

Tal dado foi pesquisado com uma parcela dos entrevistados que se auto-denominam "selvagens". Eles referiram que procuram "casas de oração" (provável denominação para bordel) quando tinham dinheiro e desejo de ter relações sexuais. Relataram ademais dormir com mulheres "da sarjeta" "no maior respeito".

Pudemos observar que a constituição de casais, contudo, leva a uma necessidade de espaços privatizados.

1.2 O Comer

A segunda função que define a casa é o comer. Evolutivamente, aliás, a casa e a cidade parecem ter-se originado de acampamento onde o produto da caça era repartido (Leakey, 1981). Há dois tipos de sistema de alimentação dos sem-casa: ou eles se alimentam fora da casa, ou cozinham o alimento e o ingerem na casa. Os "selvagens", não cozinham, ou o fazem muito raramente: ganham ou compram o alimento. Nos demais casos, os grupos organizados tendem a cozinhar, principalmente quando é feita uma administração central da verba: o dinheiro é juntado até se ter o suficiente para comprar o alimento que é cozido e ingerido em grupo. Há um terceiro caso em que essas pessoas têm casas/barracos em favelas ou bairros distantes e estão na rua por questões de proximidade do ponto de trabalho: seja como pedinte, seja como vendedor de balas, etc. Trata-se de um local transitório de moradia, sendo que no fim de semana, por exemplo, retornam à casa. Nestes casos, não cozinham: acampam. Nos casos mais estruturados, como veremos a seguir, há a cozinha com todas as suas funções.

Enquanto "o quarto" permanece mais estável, a "cozinha" e a "sala" sofrem constantes transformações: São feitas de sucatas e, como grande parte dessas pessoas são carroceiros, eles estão sempre "adquirindo" mobílias novas que são constantemente acrescidas e rearranjadas em direção a um "modelo" de casa semelhante a uma casa convencional.

1.3 O Social

O aspecto social - a sala - variou bastante. Houve: salas e cozinhas; salas-cozinhas; cozinhas sem sala.

Pela nossa observação, essas pessoas estão permanentemente em interação social: recebem visitas, há pessoas entrando e saindo dos grupos, visitantes passageiros, parentes, etc.

Por outro lado, a relação com "outros estranhos" é problemática: os depoentes queixam-se de vizinhos inoportunos como gays, viciados, bêbados; queixam-se de olhar de desprezo; queixam-se de não ter direitos; queixam-se das "outras tribos", etc.

Como não se trata de marginais, autoridades como polícia, DSV, podem fornecer proteção. Os depoentes temem apenas a ação da Prefeitura, que é quem os expulsa de suas "casas". Têm ações pendentes, vagas e difíceis de serem compreendidas, com situações que os colocaram marginalizados. Têm uma consciência maior ou menor tanto das perdas sofridas quanto das perspectivas a eles oferecidas.

De um modo geral, contudo, pode-se dizer que eles não têm uma expectativa de interação social e, portanto, não pressupõem um espaço determinado para isto na casa. Considerando-se que sua "casa" está no espaço social da rua, talvez seria uma redundância ter uma sala na rua.

1.4 A higiene

Há casas com banheiros para o banho e para as necessidades fisiológicas. Em todas onde se cozinha, a louça é lavada no local. Quando há mulheres, a roupa é lavada e posta a secar em varais.

A água é um grande problema e a localização da "casa" geralmente pressupõe uma fonte de abastecimento de água: posto de gasolina, depósito, obra em construção, etc. Os dejetos são embrulhados e jogados no lixo. A disposição do banheiro é extremamente criativa pois ocorre na ausência de água: é feita através de tapumes, latas, jornal, etc.

1.5 A casa e o trabalho

Embora os sem-casa não trabalhem em suas casas, estas se encontram próximas aos locais de trabalho, em íntima conexão com eles. Curiosamente, as mulheres não trabalham: são "donas de casa" apenas.

2. Tipos de casa-moradores

Os moradores das "casas"foram classificados em quatro tipos fundamentais:

Assentados: (3 casos) Constroem "casas" sob viadutos, com paredes, tetos parciais e trancas nas portas. As casas assemelham-se aos barracos de favela. Foram denominados assentados porque não são nômades, isto é, estão, de certo modo, estáveis. Esta estabilidade pode ser vista, pela estrutura das próprias casas: paredes fixas, relativamente sólidas com estrutura de ripas e assoalho forrado; enfeites nas paredes; bens como rádio, fogão, cortinas, armários; casas de cachorro; pela estrutura "familiar": famílias de parentes ou de companheiros mais estáveis; pelo tipo de ocupação: ocupações diversas, podendo até ter salário, ou seja, com algum planejamento na distribuição dos ganhos mensais; por uma certa noção de "propriedade": aparentemente, se dão mais direito de ter direitos, questionam mais a própria condição de vida do que os demais tipos. Apresentam muitos enfeites na casa: quadros, objetos, vasos, etc.

Nômades: (8 casos) A "casa" dos moradores nômades situa-se sob o viaduto. Têm paredes móveis, frágeis, feitas de papelão ou pedaços de caixotes ou compensado. O teto e a parede de fundo são do próprio viaduto. Serve basicamente como "quarto" acrescentando-se a função de "cozinha", "social" e finalmente, alguns constroem até banheiros, com latas e paredes de papelão. A função "social" parece ter relação com quem mora: um presidiário recém-saído da prisão fez uma casa que era uma sala de visitas enquanto um paranóide e um delinquente fizeram uma casa-casulo, totalmente fechada. Essas casas são feitas de sucatas: os indivíduos não possuem bens afora poucos pertences pessoais. As casas estão em permanente transformação. Essa instabilidade pode ser vista também pela tendência à desarrumação: o lugar das coisas é onde ficam; pelo fato de os grupos serem mais instáveis entram e saem pessoas; pelo fato de não haver demarcação clara de território. As ocupações são imediatistas: geralmente carroceiros ou vendedores em sinais de trânsito, pelo fato de gastarem imediatamente o que ganham, por não haver sentido de propriedade, acham graça quando se denomina o seu espaço de morar de "casa". Segundo os moradores, o grande problema deste tipo de moradia é a segurança: temem basicamente o ataque de pessoas ou fogo. Organizam-se de modo a ter um do grupo sempre vigiando. Este tipo de organização pode acabar acarretando também organizações econômicas grupais, com a presença de um líder que coleta o ganho de todos e avalia o modo como este será gasto.

Cavernas: (4 casos) Os moradores das cavernas habitam dentro das estruturas dos viadutos. As paredes são sólidas, duras, pesadas, às vezes com trancas, às vezes com luz elétrica. Os problemas principais são: falta de insolação, aeração, luminosidade e a presença de bichos rasteiros, como ratos e baratas. À estabilidade parece se associar à questão de abrigo, proteção e segurança, pois as cavernas propiciam um grau maior de segurança, quando comparadas aos demais tipos estudados. Á estabilidade das paredes correspondem famílias organizadas através de relações de parentesco. O contato com outros moradores é menor, pois ficam mais isolados. Parece haver uma relação isomórfica entre a "segurança" das paredes e a estrutura nuclear familiar.

Selvagem: (3 casos) A denominação "selvagem" foi dada por um morador que disse que a cidade é uma selva, e ele, um selvagem; só que eles seriam de uma tribo e os demais, de outras tribos, todos inimigos entre si.

São os moradores das sarjetas; não demarcam seu território, só possuem o que podem carregar consigo. É a radicalização do grupo nômade: a ausência de casa parece estar relacionada à total ausência de perspectivas. Segundo um deles: "- Daqui, só para a morte!"

Os selvagens trabalham como guardadores de carro, carregadores de caminhões e trabalhos eventuais. Alimentam-se e dormem erradicamente, não estruturam famílias mas podem formar "gangs".

3. O tempo: a cronêmica

O conceito de tempo é parte essencial do modo como vemos o mundo e interagimos com ele (Rector e Trinta, 1990). Segundo E. Hall (1986), o tempo fala. O tempo seria estudado pela cronêmica, a área de estudo que lida com o tempo como um elemento bio-psicológico e cultural.

A partir do estudo da casa dos sem-casa, pudemos entender que um dos principais elementos para ajudar a compreender a organização da casa é a noção de tempo.

Como disse D. Odete, educadora de rua do Centro Comunitário do Piqueri que entrevistei em 1991, ao descrever o processo de discussão da questão da moradia com pessoas sem casa: "Resolvemos nos concentrar em adquirir e em passar conhecimentos: porque o mundo deles é muito pequeno, e por isso eles não tem alternativa, não tem esperança, sonho, futuro: só vivem o espaço, o ontem e o amanhã não existe. Eles não vivem o "nosso tempo", não sei se isso é bom ou mau".

O tempo a que nos referimos é o tempo da vida e da morte, o tempo que permite projetos, perspectivas, esperanças, união do passado com o futuro; segundo Atlan (1978) trata-se do tempo-invenção, o que descobre forças organizadoras nos próprios fenômenos aleatórios.

Viver o espaço como um tempo degradado, um afunilamento, um fim, é a contraposição a se construir um espaço onde haja lugar para as funções do habitar, para as funções da vida.

Morin (1979) comenta como a presença de cerimônias fúnebres no homem de Neandertal permite supor "a presença do tempo no seio da consciência" (p. 102), sendo este o emergente que constitui o Homo sapiens.

O que constituiu o tempo, evolutivamente, parece involuir no tempo individual para as pessoas que só vivem um presente imediatamente concreto. Para Atlan(1978), a unidade e a autonomia do sistema auto-organizador, que nós somos, depende da unificação do nosso passado e futuro. Ora, isso não parece ocorrer, ou se dá parcialmente, com nossos pesquisados.

A noção de "tempo" na pesquisa em tela pode ser avaliada a partir de dois indicadores:

- as paredes da casa

- o relato verbal dos moradores.

As paredes na casa como indicadoras de tempo podem ser analisadas segundo as seguintes variáveis:

1. material com que são construídas
2. estrutura: fixa/móvel: resistente/ frágil, etc.
3. número de paredes.

Essas três variáveis em conjunto acabam por determinar a tipologia sugerida no presente estudo:

Os nômades: têm paredes móveis, frágeis, apenas laterais; algumas vezes, assoalho; raramente, teto. São construídos de papelão ou pedaços de madeira com estrutura frágil.

A caverna: paredes sólidas, duras, pesadas, permanentes; embora não sendo construídas pelos moradores foram por eles escolhidas. Apresentam paredes laterais, teto, chão forrado: algumas vezes tranca na porta.

O assentado: constrói pelo menos três paredes, algum teto, forra o chão, trança a porta. A estrutura externa, sólida, firme, de compensado em estrutura de ripa.

O selvagem: não tem parede. Sua "casa" pode ser algum tipo de proteção à cabeça: um caixote, pedaços de papelão. Forra o chão onde dorme.

Estas estruturas correspondem a organizações grupais: os selvagens são muitas vezes solitários ou unidos para sobreviver enquanto os assentados são grupos "familiares", com presença de crianças. Os outros tipos estão situados entre esses dois tipos.

Os nômades têm estrutura frouxa, mas com ligações entre os membros do grupo, e os da caverna assemelham-se aos assentados.

A noção de "esperança" associada ao tempo, parece ser o que norteia o tipo de habitação: a descrença num amanhã desestimula o investimento em uma "casa", seja ela qual for.

O "si próprio" parece impresso em algum grau no "próprio espacializado", isto é, nas posses e propriedades. A memória pode ser pensada como um capital cujo registro está também nas posses. Os objetos possuídos, assim como o próprio espaço vital podem ser pensados como valores do passado que direcionam e garantem a possibilidade de um futuro.

Desse modo os despossuídos não estão podendo guardar, conservar, manter elementos que garantam a sua sobrevivência como indivíduos com uma história.

Para Morin (1979), a consciência da mortalidade e da imortalidade trouxe o progresso da individualidade. Os nossos "selvagens" estão em um caminho involutivo de desindividualização. A lutar para manter a própria individualidade, porém, permanece e pode ser percebida no uso de adereços pessoais, na contínua exposição da Carteira de Identidade ou outro documento identificatório, pelas inscrições com seus nomes, local de origem nas carroças e paredes das casas.

Os selvagens e os nômades parecem viver em um espaço sem tempo: neles parece haver uma confusão dos limites dentro/fora, proprocionando um retorno à díade simbiotizada, numa relação eu/rua onde a rua é vista como destrutiva: são atacados, espezinhados, desprezados, mortos.

Em função de não terem projetos e esperanças, vivem em um outro "tempo", não no nosso tempo cronológico:

vivem no tempo imediato, do "já", do "agora", da "satisfação das necessidades imediatas", quando possível. Estão livres de, mas não estão livres para: a ausência de perspectiva de vida lança-os a uma morte prematura, quer psicológica, quer real. Conforme Perrot (1991) ser livre é, para começar, poder escolher seu domicílio.

O aspecto involutivo do contexto eu/ rua onde a rua é a "selva" se dá porque, conforme coloca Morin (1979), a complexidade cada vez maior dos sistemas vivos, ao mesmo tempo que propicia a sua autonomia, no caso dos seres humanos, aumenta a dependência com relação à sociedade.

A população por nós estudada está marginalizada. Nesse sentido, a capacidade de auto-organização e de diminuição de desordem pelo aumento da informação não se processa: ao contrário, aumenta a desordem e a desorganização. Devido à dificuldade da capacidade de auto-organização, ocorre um distanciamento entre o real e o irreal (Atlan, 1978).

 

Conclusão

Baseadas nessas análises, concluimos que a casa serve para proteger e abrigar. Baseando-se em uma definição de Bowlby (1988) que afirma ter a família de prover a criança com proteção, conforto e assistência, propomos a casa o diagrama abaixo:

 

 

Neste diagrama enfatizamos a questão PROTEÇÃO, ou seja, a função "concha" da casa. Tanto para Bachelard (1978) quanto para Tuan (1977), a casa é um grande berço, um grande valor. Tuan considera a casa como uma extensão do útero enquanto Bachelard fala em "maternidade da casa". Este mesmo autor diz ser necessário ir além dos aspectos descritivos para que se possa atingir a função primeira do habitar: a concha.

A casa serve, porém, a funções "intestinais", à manutenção das pessoas no seu cotidiano: é o que denominamos "CUIDADOS", pensando na relação família-casa-desenvolvimento infantil.

Quando a casa é considerada na sua relação com o que ocorre fora dela, aparece a função de SEGURANÇA, contra perigos e ameaças ambientais em geral, e, especificamente, contra os perigos sociais, no caso dos "sem-casa" que moram embaixo das pontes.

A busca do aspecto "uterino" pode ser confirmado em casas-casulo ou barracos de madeira, pequenos e fechados. Este aspecto "concha" parece estar ligado também à questão da identidade, ou da perda desta, devido à exposição, ao olhar público, dentro de uma dimensão público-privada, seja por busca de intimidade seja por necessidade de ocultamento.

Pode-se supor que a casa serve a funções de espaço interior-subjetividade assim como de identidade. Serve, sem dúvida, à questão da identidade como cidadão, pois quem não tem endereço não tem lugar no mundo como cidadão, "não tendo nem credibilidade nem confiabilidade" segundo depoimento de alguns moradores.

Deste modo, além das funções de proteção, cuidados e segurança, a casa parece servir a funções de Identificação e Cidadania..

Uma segunda linha de sugestões de conclusões refere-se ao TEMPO.

Conforme foi visto, a noção do tempo vivido pode ser apreendida da estrutura da casa, da fala dos moradores e da organização de suas vidas.

A noção de "tempo vivido" depende de condições subjetivas pessoais; porém, em nossa amostra, fatores sócio-econômicos parecem ser co-determinantes de uma degradação dessa noção de tempo. A marginalização a que essas pessoas são submetidas favorece uma regressão psicológica, onde se instaura o que estamos denominando "tempo degradado": o momento como único tempo possível.

Sem possibilidade de trocas com a sociedade, de modo a diminuir a desordem, excluídos do sistema maior, as informações de que dispõem tornam-se cada vez mais escassas, donde resulta esse processo por nós denominado o "tempo degradado".

Ao mesmo tempo em que se observa a luta dessas pessoas para manter a individualidade e a auto-organização, a perda da cidadania acarreta um processo entrópico, onde a irreversibilidade aponta apenas para o caminho involutivo da morte.

Submetida a processos de marginalização, essa pessoa encontra dificuldades para criar a zona intermediária entre a subjetividade e a objetividade, entre o imaginário e o real que, para Morin (1979) caracterizou o surgimento do Homo sapiens e paraWinnicott(1975) o aparecimento de cada um de nós como ser cultural.                                 

 

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