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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.12 n.3-4 Brasília  1992

 

Vida cotidiana e subjetividade de meninas e meninos das camadas populares: meandros de opressão, exclusão e resistência

 

 

Nara Maria Guazzelli Bernardes

Dra. em Psicologia e professora da PUC-RS

 

 

Neste estudo busco desvelar a vida cotidiana de meninos e meninas das camadas populares, que habitam a periferia urbana, para tentar compreender aspectos da construção de sua subjetividade. Pretendo, igualmente, por meio desta pesquisa, produzir conhecimentos que questionem estereótipos e preconceitos sobre essas crianças, derivados, muitas vezes, da ignorância científica sobre suas vivências e significações, o que faz com que elas, via de regra, sejam percebidas ou avaliadas na perspectiva da negatividade, ou seja, do que não conhecem ou não sabem fazer (Bernardes, 1989).

Como ponto de partida teórico, esta reflexão concebe a criança como um ser que se constitui sujeito-com-os-outros, aberto-ao-mundo e no-mundo (Merleau-Ponty, 1945; Rezende, 1990). A criança nasce num mundo de objetos ou artefatos mas também num mundo de instituições sociais, de valores e normas compartilhados, de símbolos (Rafky, 1973). Objetos, instituições, valores, normas, símbolos compõem o mundo da vida da criança. Estar no mundo e aberto ao mundo é, simultaneamente, estar com o outro. O sujeito e o outro se descobrem inseridos "num mundo de intercâmbio simbólico amplamente expresso pela palavra" (Merleau-Ponty, 1945, p. 26). O modo de o sujeito ser-aberto-ao-mundo e no-mundo é corporeidade. Como acentua Merleau-Ponty (1945), eu estou no meu corpo, eu sou meu corpo. O corpo, portanto, é mediação entre a consciência e o mundo e, pelo corpo, com os outros, o sujeito está aberto ao mundo e engajado no mundo.

Ser-no-mundo e aberto-ao-mundo-com-os-outros significa que o sujeito coexiste com outros sujeitos com os quais compartilha posições de classe social, de gênero, de raça, de idade. Numa perspectiva macro-social, em nosso país, estas posições podem ser pensadas em termos de uma sociedade que se organiza e funciona segundo a lógica de sistemas de dominação e exploração. Tais sistemas podem ser concebidos como um sistema único de dominação-exploração denominado patriarcado-racismo-capitalismo (Saffioti, 1987). Esta lógica faz também com que nossa sociedade se mostre como uma sociedade-centrada-no-adulto (Rosemberg, 1976), o que permite visualizar uma outra opressão, que é a opressão de idade.

Tais considerações possibilitam-me entender a criança das camadas populares que habita a periferia urbana como um ser humano que sofre múltiplas opressões no processo de construção de sua subjetividade. Entendo a subjetividade como "atributo do sujeito humano, enquanto expressão genérica de seu mundo de objetivar-se no mundo" (Arendt, 1989). Tentar compreender como esse modo próprio de o sujeito se expressar e se pôr-no-mundo se dá a ver num determinado momento de sua existência, tem como pressuposto a idéia de que a subjetividade não está constituída no momento do nascimento mas se constrói permanentemente no seu existir como ser-aberto-ao-mundo e no-mundo-comos-outros.

Esta pesquisa, portanto, problematiza a construção da subjetividade de meninos negros e não-negros e meninas negras e não-negras das camadas populares que habitam a periferia urbana, tendo presente que há uma relação recíproca e assimétrica entre a orientação da criança em direção ao mundo adulto e a penetração do mundo adulto no mundo da criança.

Em decorrência, elegi como ponto de partida empírico, a experiência vivida desses sujeitos bem como dos adultos que fazem parte de seu mundo da vida, desdobrada em vivências e significações. Para captá-las, convivi durante aproximadamente dez meses com um grupo de vinte e oito crianças negras e não-negras, das camadas populares, cujas idades situavam-se entre nove e doze anos completos, que habitavam uma vila localizada num município da região metropolitana de Porto Alegre. Elas frequentavam a terceira e quarta séries do primeiro grau numa escola pública municipal.

Tomando-se como critério a presença permanente do homem adulto no recinto doméstico na função de companheiro da mulher (pai ou padrasto), independentemente da presença de outros parentes adultos no domicílio, estas crianças encontravam-se inseridas em grupos familiares que se organizavam de modo diversificado: família conjugal, família conjugal recomposta, família chefiada por mulher. O tamanho das famílias apresentava o limite inferior de quatro membros e o limite superior de onze membros, sendo que 50% delas possuiam quatro ou cinco membros. A renda familiar mensal estava assim distribuída: 48% ganhavam de um a três SM (salários mínimos), 32% recebiam de quatro a cinco SM e 20%, de seis a oito SM.

Em relação à escolaridade dos adultos (mãe, pai, padrasto, tia), 60% das mulheres era analfabeta ou não havia completado as séries iniciais do primeiro grau. As demais atingiram um nível de escolarização que variava desde o primeiro grau incompleto até o início do segundo grau. Entre os homens, 50% eram analfabetos ou não haviam completado as séries iniciais do primeiro grau; 36% tinham o primeiro grau incompleto e os demais possuiam o primeiro grau completo ou haviam iniciado o segundo grau.

Na época da realização da pesquisa, 62% das mulheres não exerciam trabalho remunerado fora de casa; 31% dedicavam-se a atitivdades extra-lar que reproduzem o trabalho doméstico, tais como: copeira, empregada doméstica, servente; 7% trabalhavam como comerciarias. Dos homens, 13% estavam aposentados ou desempregados, 42% trabalhavam na construção civil como pedreiro, mestre de obras, pintor, etc.; 30% eram funcionários públicos, motoristas ou metalúrgicos e os demais, vendedores ambulantes ou vigilantes.

Os procedimentos metodológicos utilizados nesta pesquisa definem-se como uma análise compreensiva de base fenomenológica (Bernardes, 1991). Esta opção alicerça-se no pressuposto que a fenomenologia permite descrever o que se passa efetivamente no mundo da vida dos sujeitos do ponto de vista daquele que vive as situações concretas. A expressão da experiência vivida pelas crianças e pelos adultos, que se deu a ver por meio da linguagem da palavra, da linguagem do corpo ou da linguagem do olhar, mostra como estas pessoas estão vivendo, percebendo e interpretando a si próprios, ao outro e ao mundo, ou seja, suas vivências e significações.

Os procedimentos para ir ao encontro do mundo da vida dos sujeitos consistiram em ações da pesquisadora que foram efetuadas, de modo mais intenso, a escola mas também no âmbito das casas e de outros espaços da vila: observação da convivência entre adultos e crianças e entre crianças, diálogos informais, conversas com grupos de crianças e/ou adultos, entrevistas formalizadas, visitas, passeios e festas.

 

Desvelamento da vida cotidiana das crianças

O primeiro ponto a destacar diz respeito à riqueza e à complexidade das vivências e do universo de significações que constituem a vida cotidiana das crianças da vila.

 

Ser criança/ser adulto

Meninas e meninos apresentam uma imagem homogênea do ser criança, polarizado com o ser adulto, embora nem todas (os) se auto-percebam nitidamente como crianças. Alguns sujeitos consideram que deixaram de ser crianças devido às responsabilidades que assumiram em suas casas e em razão de não mais se envolverem com jogos e brinquedos infantis; pensam, contudo, ser prematuro visualizarem-se como adolescentes ou jovens. No pólo da positividade, o ser criança se constitui pela competência e capacidade nas esferas do lúdico e do amor. No pólo da negatividade, o ser criança se constituí pela incompletude e incompetência em domínios relevantes do mundo adulto: saber, fazer, movimento no espaço público, trabalho.

A incompletude e a incompetência das crianças que geram sua dependência do adulto são razões que justificam uma relação de poder/ autoridade/ controle entre os adultos da família/ escola e a criança; no caso da família, esta relação é afirmada por meio da punição física. O contraponto em termos das ações e não apenas das significações, revela que a obediência da criança não é incondicional e pacífica. A seu modo e de múltiplas formas, meninas e meninos, questionam esta relação de poder/ autoridade/ controle e a ela se opõem.

 

Trabalho doméstico

O trabalho doméstico, um dos eixos que dá sentido ao fazer cotidiano desses sujeitos; inclui uma multiplicidade de ações realizadas pelas crianças e/ou pelos adultos da família. Este trabalho, atribuído à responsasbilidade dos adultos, é percebido como obrigação das crianças e ajuda para os adultos.

Para adultos e crianças, as atividades consideradas serviço da casa (limpeza, arrumação, alimentação e higiene pessoal) são essencialmente atribuídas à mulher. Esta significação, contudo, não impede a participação dos homens e, particularmente, dos meninos nestas tarefas, independentemente do tipo de famíliaou da raça. Crianças e adultos, de modo geral, valorizam a competência do homem para realizar tarefas atribuídas à mulher, especialmente em situações de emergência.

Ao homem compete responsabilizar-se e executar atividades ligadas a conservação e construção da casa bem como de seu espaço externo. Meninos e meninas também participam da execução destas tarefas.

Nas famílias conjugais ou conjugais recompostas, o trabalho doméstico que se realiza no espaço público - administração da casa e aquisição de bens -mostra padrões variados em termos da atribuição de responsabilidade e execução de tarefas: cabe mais aos homens ou às mulheres ou é compartilhado. Nas famílias chefiadas por duas mulheres pode também ser assumido por uma delas ou ser conjunto. Quando se trata dos adultos, esta modalidade de trabalho doméstico, portanto, não se vincula ao gênero de modo estereotipado. No caso das crianças aparece uma distinção entre meninos e meninas, independentemente da raça ou do tipo de família: as possibilidades de circulação no espaço público em locais mais distantes da residência mostram-se, de modo geral, mais acessíveis aos meninos.

A responsabilidade pelo cuidado das crianças e execução de tarefas pertinentes são igualmente percebidas, por adultos e crianças, como atribuição da mulher, sendo assumidas mais intensamente por elas, sejam adultas, adolescentes ou crianças maiores. Para os moradores da periferia, a liberação da mulher de tais incumbências encontra obstáculos devido à escassez de equipamentos sociais tipo creche ou pré-escola; paralelamente a estes entraves objetivos, a avaliação negativa que a maioria das famílias faz deste tipo de serviço dificulta ou mesmo impede que o cuidado das crianças se transforme numa tarefa social coletiva e não permaneça a cargo exclusivo da família, particularmente, das mulheres. Na esfera do trabalho doméstico, portanto, a opressão de gênero parece incidir com maior vigor no que tange ao cuidado das crianças, pois em outros aspectos nota-se uma participação mais nítida dos homens; nos serviços da casa, esta participação se qualifica de cooperação, pois a responsabilidade permanece ainda atribuição da mulher.

 

Estar na escola

Outro eixo ao redor do qual se dá a dinâmica do fazer cotidiano das crianças é a experiência de estar na escola. Nesta, uma das questões cruciais que, a meu ver, se colocam para a construção da subjetividade das crianças é a da apropriação do conhecimento.

A este respeito, estudos de sociologia da educação como os realizados por Tomaz T. da Silva (1988) fornecem reflexões importantes para compreender como opera a determinação de classe social que discrimina e exclui as crianças da classe trabalhadora. A vivência de escolarização dessas crianças das camadas populares não lhes permite experienciar mais do que uma relação subordinada com o conhecimento: a elas se ensina um simulacro do conhecimento, ao mesmo tempo em que, os sinais exteriores e os rituais escoalres fazem com que o status legítimo de um conhecimento que lhes é negado seja gradualmente aprendido. Estas crianças estão se construindo como futuro trabalhador manual através da privação dos bens culturais e da privação de credenciais à medida em que tais privações se encontram na raiz da divisão mental/ manual do trabalho.

Embora as ações dos adultos da escola bem como das crianças não tenham se revelado explicitamente discriminatórias em relação à raça negra, pode-se considerar que a opressão opera sob outras formas.

Conforme estudiosos da questão da raça negra (Gonçalves, 1987), o ritual pedagógico de escolas públicas de primeiro grau, entre outros, exclui dos currículos a história de lutas dos negros na sociedade brasileira e impõe às crianças negras um ideal de ego branco. Este ritual funciona não pelo que é dito mas pelo que silencia. Em decorrência, uma das formas pelas quais a discriminação racial se expressa na escola consiste na tentativa de construir a igualdade entre os alunos a partir de um ideal de democracia racial que desconsidera a particularidade cultural, isto é, o direito do negro se reconhecer a partir de sua diferença. Neste sentido, a discriminação ocorre ao se impedir que as crianças negras se apropriem do patrimônio cultural da população negra brasileira. Luiz Alberto O. Gonçalves (1987) denuncia que este processo silencia a criança negra a curto prazo e o cidadão a longo prazo.

 

Lúdico

O lúdico, outro eixo que dá sentido ao fazer cotidiano, é significado por todas as crianças como desejado e prazeroso. Contém vivências e significações que são comuns aos meninos e às meninas e outras que trazem a marca da distinção de gênero, principalmente no que se refere a jogos e brinquedos.

O espaço para jogar e brincar circunscreve-se ao espaço doméstico, particularmente no caso das meninas. Meninos e meninas mostram preocupação quanto à adequação de jogos e brinquedos ao gênero. Algumas revelam estar cientes de que esta determinação é cultural e nada tem a ver com interesses e capacidades das crianças; contudo, acabam se submetendo a ela em função do controle social dos adultos e, principalmente, de seus pares.

Certas vivências lúdicas acentuam oportunidades diferenciais dos meninos e das meninas se lançarem no mundo exterior, se expressarem afetivamente, incrementarem a convivência mais íntima, ficarem limitados à domesticidade.

Nesta esfera não apareceram distinções determinadas pela raça. As determinações de classe social, entretanto, fazem com que as crianças sejam excluídas do que diz respeito a bens de consumo e abens culturais, como por exemplo, livros, cinema, teatro.

 

Sexualidade

A esfera da sexualidade, no que se deu a ver, apresenta diferenciações de gênero bem nítidas em alguns aspectos.

Devido ao controle que a família exerce sobre a criculação no espaço público, particularmente das meninas e devido às restrições a relações com pessoas que não pertencem ao círculo familiar, a convivência com pessoas de outro sexo e gênero ocorre, de forma privilegiada na escola. Portanto, a escola se constitui num espaço de aprendizagem do saber escolar mas também num espaço onde, independentemente do desejo dos adultos, de seu controle ou de sua cumplicidade, criam-se situações que permitem às crianças experienciar vivências e signfiicações da esfera da sexualidade.

A postura da família em relação ao namoro, configura padrões distintos para o menino e para a menina. O primeiro consente e incentiva, o segundo interdita e desestimula. No caso do menino o temor familiar incide sobre a ameaça do homossexualismo e, no caso da menina, sobre a ameaça da gravidez na adolescência.

A repressão sexual atua de modo diversificado sobre o corpo do homem e o corpo da mulher. Um dos aspectos que se destaca nas vivências dos meninos e das meninas diz respeito às manifestações de carinho via linguagem do corpo que são mais comuns entre meninas ou entre meninos e meninas e invisíveis entre meninos.

O padrão hegemônico familiar revela que expressões de carinho por meio da linguagem do corpo costumam envolver a criança e o adulto mulher, são mais raras entre as crianças e seus pais e, de modo geral, não são frequentes. Paralelamente, a linguagem do corpo é usada com mais intensidade para reprimir transgressões das normas estabelecidas pelos adultos.

O controle em relação à manipulação dos genitais mostra-se mais nítido quando se trata da menina, enquanto que o menino sofre uma alienação maior do corpo como um todo e da expressão livre dos sentimentos.

Sobre a sexualidade do homem e particularmente da mulher opera uma estratégia do silêncio que representa uma das formas da sociedade exercer controle sobre o corpo da pessoa. Ao mesmo tempo, a estratégia da passividade faz com que a mulher participe de situações na qualidade de vítima, coloque-se na posição de esperar e aceitar e dilua seu desejo no desejo do outro.

A educação sexual idealizada pelas famílias tem como pressupostos, entre outros, a sexualidade como genitalidade, a sexualidade como instinto e a assimetria do desejo sexual da mulher e do homem. Destina-se de modo mais ou menos explícito a transmitir informações de natureza biológica, a veicular ou reforçar atitudes repressoras que possuem um cunho conservador e moralista, a prevenir ocorrências indesejáveis (doenças sexualmente transmissíveis, gravidez precoce). Metas pessoais mais abrangentes como o desenvolvimento da sexualidade como afirmação de si e como auto-expressão, vinculando-a à emancipação da mulher, à igualdade entre homem e mulher e à busca do prazer na vida sexual parecem estar ainda distantes da concepção de educação sexual desejada pelas famílias das crianças da vila, independentemente do tipo de família ou da raça.

 

Projeto de vida

O projeto de vida das crianças não apresenta diferenças marcantes que possam ser vinculadas ao gênero ou à raça.

De modo geral, meninos negros e não-negros, assim como meninas negras e não-negras constroem seu projeto de vida em torno dos temas da família e do trabalho.

Na concepção das crianças, a maternidade e a paternidade apresentam maiores semelhanças do que diferenças uma vez que o atributo mais significativo do ser mãe e do ser pai diz respeito à esfera afetiva: ser doador (a) de amor/ amigo (a). Para muitas crianças, as fronteiras do ser mãe e do ser pai são tênues ou podem mesmo, se superpor. Embora o cuidado das crianças seja visto como atribuição essencial da mulher, como se viu na questão do trabalho doméstico, as significações das crianças sobre a paternidade distanciam-se da perspectiva tradicional que vê o pai como o provedor por excelência, distante e indiferente em suas relações afetivas com os demais membros da família.

O trabalho remunerado também compõe o projeto de vida tanto dos meninos como das meninas. Distinções de gênero aparecem nas escolhas profissionais de algumas crianças pois meninos desejam exercer profissões manuais e meninas profissões que se incluem na prestação de serviços.

As significações associadas à escolha profissional mostram aspectos que são compartilhados pelos meninos e pelas meninas (valorização do aspecto das relações pessoais e do prazer), assim como outros que são peculiares a um dos gêneros (meninos mostram preocupação com a estabilidade e continuidade do trabalho).

O prosseguimento da escolaridade revela-se como meta almejada pelas famílias tanto para seus filhos como para suas filhas uma vez que consideram-no indispensável para terem acesso a uma boa profissão. A crença no poder da escolaridade para possibilitar o acesso a um trabalho remunerado futuro mais compensador, financeiramente, do que aquele exercido pelo pai e/ou mãe, aparece com muita nitidez entre adultos e crianças.

Apesar de o trabalho remunerado da mulher ser concebido por adultos e crianças como sendo essencialmente uma ajuda ou colaboração prestada ao homem que tem a responsabilidade da manutenção econômica da casa e da família, todos valorizam a profissionalização da mulher. São poucos os adultos que atribuem outros significados ao trabalho remunerado da mulher tais como assegurar um certo grau de independência em relação ao homem, representar um modo de fugir à rotina da domesticidade, preencher outras necessidades.

Ambiguidades e sentimentos ambivalentes manifestados por adultos em relação ao exercício do trabalho remunerado da mulher não os impede de desejar que, assim como os meninos, as meninas não apenas pretendam constituir uma família mas também uma trajetória profissional promissora e recompensadora em termos financeiros. No seu entender, o sucesso deste projeto profissional depende intrinsecamente da permanência das crianças no sistema de educação formal.

 

Ser mulher/ser homem

Entre as crianças, a imagem do ser mulher não é homogênea. As meninas negras e algumas meninas não-negras valorizam as ações da mulher nas esferas do trabalho doméstico e do trabalho remunerado, sua inteligência e competência para cuidar de si e suas possibilidades de movimentar-se no espaço público. Em decorrência, expressam sua identificação positiva com seu gênero. Ao contrário, a maioria das meninas não-negras percebe limitações do ser mulher quando confrontado com o ser homem, no que concerne às possibilidades, à competência e à legitimidade para circular no espaço público. Em decorrência, manifestam o desejo de ser homem. Os meninos valorizam assimetricamente o ser homem comparado ao ser mulher e, sem exceção, preferem permanecer homens, A maioria das meninas não-negras vê a mulher como sendo discriminada em relação ao homem, principalmente fora do espaço doméstico. Isto não ocorre quando se trata das relações de poder/ obediência entre a mulher e o homem: a maioria das crianças valoriza uma relação igualitária.

 

Considerações finais

O desvelamento da vida cotidiana revelou que o modo próprio de as crianças se expressarem e estarem no mundo é complexo e polissêmico. Vale a pena lembrar o que escreveu Jamusz Korczak (1983, p. 172) no início do século e que, a meu ver, permanece apropriado para o seu final: "Cem crianças? Não, cem homens, não no futuro, num prazo mais ou menos distante, mas desde agora. Seu mundo não é um "pequeno mundo", mas o seu mundo, com seus sonhos, qualidades, aspirações desejos. Nada neste mundo particular é ridículo, ingênuo ou afetado, porque é próprio da essência da humanidade".

Na coexistência com pessoas da família e da escola, as condutas, ações e significações das crianças negras e não-negras configuram, de modo geral, um contidianum de obediência e resistência ao poder/ autoridade/ controle dos adultos.

Na esfera do lúdico, as meninas parecem estar mais propensas a resistir às determinações de gênero à medida que questionam com mais clareza vivências e significações suas e dos meninos bem como se permitem atravessar a fronteira do domínio masculino.

Ambiguidades e resistências podem ser vislumbradas, também, na esfera do trabalho. Por um lado, a participação das crianças, nas atividades domésticas, particularmente das meninas, pode ser entendida como uma inserção precoce no mundo do trabalho quando comparada à experiência vivida de crianças de outra classe ou camadas sociais e que, muitas vezes, reproduz a divisão sexual do trabalho. Por outro lado, pode significar uma experiência de divisão de tarefas no recinto doméstico, de conflitos e negociações, de solidariedade e compartilhar em relação a um fazer que é necessário para todos os moradores da casa. Pode significar, portanto, uma experiência (mesmo que não deliberada e consciente) no sentido da ruptura com a lógica particularista dos sistemas sociais de dominação e exploração.

Em outras esferas, contudo, parece que os mecanismos de opressão e exclusão operam com maior eficiência.

Meninos negros e não-negros assim como meninas negras e não-negras estão se construindo sujeitos aos quais se negam as possibilidades de se apropriarem do conhecimento socialmente legitimado. Meninos negros e meninas negras estão sendo impedidos de se apropriar do patrimônio cultural da raça negra. Se considerarmos que a cidadania é um direito inalienável desde a infância, estas crianças já estão existindo como cidadãos e cidadãs excluídos e silenciados, antes mesmo de se tornarem adultos.

Meninas negras e não-negras estão se construindo sujeitos aos quais se atribui a responsabilidade e execução quase exclusiva do cuidado das crianças, no presente e no futuro, e cujo trabalho remunerado, quando adultas, significa ajuda ao homem, predominantemente. Sujeitos aos quais se limitam as possibilidades de se movimentarem no espaço público.

Meninas e meninos estão se construindo sujeitos aos quais se limitam ou se impedem vivências e significações mais plenas e emancipatórias na esfera da sexualidade, particularmente no que tange a apropriação do corpo vivido e significado como desejo, afeto e prazer.

As reflexões que elaborei sobre a construção da subjetividade de meninos negros e não-negros e meninas negras e não-negras das camadas populares corroboram a idéia de que a condição de possibilidade de as crianças se constituírem sujeitos com direito à cidadania e ao pleno desenvolvimento de si como homem ou mulher emancipados não resulta apenas de mudanças nas relações autoritárias de convivência mas da transformação das múltiplas relações de opressão presentes em nossa sociedade. Respeitar a infância como um tempo vivido tão importante, em todos os seus aspectos, quanto a maturidade e compreender a criança a partir de seu próprio referencial, pode significar um movimento nesta direção.                     

 

Bibliografia

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