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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.12 n.3-4 Brasília  1992

 

Eleitos e marginalizados

 

 

Yvette Piha Lehman

Professora do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da USP. Em formação pelo Instituto de Psicanálise de São Paulo

 

 

Ao longo dos últimos anos, o profissional liberal no Brasil vem sofrendo uma crise de identidade como resultado do que poderíamos chamar de uma metamorfose em seu status na sociedade. Ontem parte da elite atuante e pensante do país, graças aos seus anos de estudo, ele hoje corre o risco de se ver reduzido a um mero comerciante de seus talentos e habilidades.

Isto se deve às transformações macroestruturais ocorridas no sistema econômico e na estrutura de ensino, principalmente no ensino superior.

Como Rouanet assinalou, a política educacional do regime autoritário é um dos pontos mais culminantes do irracionalismo brasileiro, pois se extirpou metodicamente dos currículos tudo que tivesse a ver com idéias gerais e valores humanitários. Assim, enfatizou com uma visão prática e funcional. O movimento, ao invés de ser contra-cultura, fenômeno observado em outros países, tornou-se uma in-cultura engendrada politicamente. A consequência disto foi um sistema educacional deficitário que transformou o não-saber em norma de vida e em modelo de relação humana.

Mas, que paradoxo! Um sistema educacional que deixa o protagonista principal em segundo plano, enfatizando sua relação apenas de um modo funcional, abolindo toda conscientização do seu vínculo com a sociedade.

Freud (1930), em "Mal-Estar na Civilização", assinalou a importância do trabalho como fator primordial do vínculo do homem com a sociedade. É através do trabalho que as relações do indivíduo com a comunidade se estreitam e justificam sua existência na sociedade. Isto é a razão pela qual a relação indivíduo-sociedade chegou a um impasse.

Este impasse evidencia que, socialmente, o valor do trabalho está se transformando e com sérias consequências nas expectativas de se formar um vínculo criativo e não-alienante com a sociedade.

Nos últimos anos, setores que eram considerados independentes são atingidos pela lógica do capital.

Segundo Bertaux (1979), "a própria revolução científica e tecnológica contribui para um vasto movimento de proletarização dos empregados, e começa a tocar setores reputados como rebeldes, tais como Ensino e Saúde".

"Na medida em que o capital se interesse por estes setores, re-estrutura-os segundo sua lógica: cisão de atividade, decomposição de tarefas produtivas, criação de camadas operárias e de uma pequena elite, que exerce, por conta do capital, o domínio do conjunto do processo. A entrada de mais jovens no sistema educacional superior não significa mobilidade social ou o fim da proletarização, mas o seu prolongamento, sob suas formas mais recentes".

Esta nova situação provoca perplexidade e desorientação. O ápice é a despersonalização e a desvitalização do indivíduo em relação à sua ideologia, sua ética e todo seu esquema referencial. A relação com a sua prática e seu modo de ser com o outro, no cotidiano profissional, é drasticamente alterado.

O resultante desequilíbrio - entre o sistema educacional e o mercado de trabalho - torna a educação uma fábrica de mão-de-obra, que atinge profundamente a identidade profissional de um dos últimos setores livres da sociedade capitalista.

Como consequência dessas transformações, houve alterações na relação do indivíduo com o seu trabalho. Alterações sérias, pois implicam destituição da identidade profissional.

A perda progressiva de status e poder aquisitivo dos profissionais brasileiros de nível superior ainda não foi claramente elaborada. Embora atuante sobre estes profissionais, seu significado não está claramente explicitado. Como Wade (em Wallman, 1979) assinala, "o significado de novas formas de trabalho está ocultado por um desejo geral de não desejar reconhecer certas mudanças nos padrões de valores sociais do trabalho". Ou como Fred (em Wallman, 1979) disse: "no momento de mudanças, falta a definição de novos valores".

Qualquer que seja a razão - resistência em explicitar esta nova relação, ou o fato de que em alguns casos a mudança ainda não está sedimentada na estrutura social - observamos que no nível psicológico existem consequências sérias no desenvolvimento da identidade profissional do indivíduo.

Uma alteração nítida que tem enorme consequência na identidade profissional dos jovens formados é o aumento vertiginoso da estrutura educacional, que faz a educação se tornar uma fábrica de produção em massa, colocando em risco o equilíbrio da relação entre a comunidade profissional e a estrutura social.

A própria educação corre hoje o risco de ser considerada um bem de consumo, dando margem a que o conhecimento e o saber virem bens de consumo.

O rush desenvolvimentista, assinalado por Florestan Fernandes, coloca os jovens profissionais numa situação tensa. Eles se preocupam com as condições de penetração no mercado e constantemente questionam as possibilidades de realização pessoal. Tudo isto cria uma insegurança que às vezes atribuem à qualidade de sua formação, que consideram inadequada frente as demandas do mercado. Essas mudanças macro-estruturais vêm tendo consequências negativas sobre a margem profissional.

Mills (1969) enfatiza este aspecto de insegurança da seguinte forma: "No Século 20, a vítima não reconhece sua condição de vítima, pois a autoridade é substituída por manipulação, e o poder passa de um aspecto visível para um invisível; a exploração não é tanto material, mas psicológica... os alvos de ataques não são conhecidos, e os homens não tem mais certeza".

Pouco tempo atrás, educação superior era sinônimo de mobilidade social. Hoje podemos muito bem questionar isto, pois a comercialização das profissões liberais apaga a linha que outrora havia entre o prestígio advindo do conhecimento e do saber, e aquele advindo do dinheiro. Isto leva os jovens profissionais a uma perda da noção de prestígio que os vincula afetivamente à profissão. Para eles, o prestígio econômico que se sobrepõe ao prestígio profissional soa como algo traiçoeiro. No fundo o que vem se perdendo é a orientação societária do papel dos profissionais. O que predomina na nova relação é o aspecto funcional. O emprego tornou-se apenas um emprego.

Essa situação provoca no jovem uma sensação paradoxal, pois ao se relacionar neste vínculo de sobrevivência, suspende uma relação onde sua identidade possa se desenvolver. Dito de outra maneira, ao perceber que age sem paixão, não se reconhece nesta ação. Sua relação com seu trabalho é amortecida, pois a pessoa sente vergonha ao perceber que a imagem que espera de si não corresponde àquela que desejava. Sente-se como um indivíduo estigmatizado.

O jovem, ao se confrontar com seu projeto, sente-se vítima, já que a possibilidade do projeto se realizar não é garantia de desenvolvimento pessoal e profissional que pode levar a uma identidade social segura. O projeto é executado às cegas e na incerteza.

Outra forma de se relacionar com o projeto é rejeitá-lo, pensando numa profissão que tenha apenas prestígio econômico e não profissional. E melhor apresentar-se sem projeto e sem esperança, acomodando-se ao que já existe e suspendendo o seu poder de desejar. Desta forma, aliena-se e protege-se de qualquer frustração.

A Universidade continua sendo apresentada como o espaço ideal para a formação duma elite pensante e atuante. Mas as últimas transformações macro-estruturais diluíram esta função e camuflaram, duma forma sofisticada, uma nova proletarização - a do profissional.

Este fato explica um fenômeno novo e preocupante - um certo menosprezo que a própria classe universitária tem de sua condição de "eleitos". Eles são cientes de sua futura marginalização. Podem chegar a ter uma idealização negativa de seu espaço social.

Todavia, dessa relação negativa, eles mantêm o seu vínculo com a universidade, indicando talvez um desejo de resgatar esse espaço que no passado foi vital para a sociedade.

Numa idealização negativa, o indivíduo desqualifica seu espaço, desorienta-se em seu sentido ser e não tem que se opor ou a que se contrastar. Tudo o paralisa e o denigre.

Ele tem um falso sentido de diluição. Sua estrutura não se amplia, ficando presa a modelos esterotipados. Isso nos faz lembrar o conceito de "falso self de Winnicott. Mas para nós é um "falso self social na medida em que o indivíduo sente que o ambiente não é facilitador para o desenvolvimento de sua identidade adulta. E fica encapsulado nesta identidade negativa como forma de adaptação.

Indivíduos mais sensíveis exacerbam isto através da manifestação duma patologia nova advinda desta situação. Frente a estes ideais, percebidos como ilusórios, em constante mudança, e nunca alcançáveis, o indivíduo se opõe procurando um ideal de ego que o possa conter e lhe dar consistência. É como se estivesse em busca dum objeto perdido. Como resultado, acaba desprezando de outra maneira o espaço que tem e sua força fica investida em se opor a ter esta identidade.

Esta relação tem um certo componente perverso, pois na modernidade a proposição de um ideal de ego cujos componentes são antagônicos, desintegrados e não-coesos, faz com que o indivíduo tenha pouca possibilidade de se avaliar, integrar sua vivência e se desenvolver de forma criativa. Suas experiências e vivências não configuram um ideal que possa contê-lo ou sustentar a sua identidade, ficando um eterno estudante num eterno preparo.

Visto desta forma, ele é preso a uma moratória psicosocial sem limite (Erickson, 1972) aonde a sua identidade é destituída. Temos aqui um novo fenômeno social da adolescência prolongada. Alguns autores também o denominam de adulto infantilizado.

O que pode se questionar nesta nova categorização é que o indivíduo não tem elementos para ser adolescente ou adulto. Seu papel na sociedade e suas responsabilidades com esta ficam ambíguos.

Em resumo, a crise de identidade que o profissional liberal sofre nos dias de hoje provém da distorção (alguns preferem dizer inversão) dos valores que idealmente deveriam nortear nossa sociedade.

O objetivo de todo o sistema educacional é de preparar os indivíduos para exercer a cidadania plena e conscientemente.

Entretanto, no momento em que se desvincula a educação da política (a intenção principal da reforma universitária de 1968), o profissional deixa de se destacar como um cidadão que, pelo seu saber, atua e transforma a sua realidade profissienal e social. Em outras palavras, é segregado de sua cidadania e reduzido àquilo que Gianotti chama de "cidadão de segunda categoria".

A prova mais gritante dessa segregação da cidadania é a quase total inexistência de jovens líderes políticos com firme compromisso e consciência social.

 

Bibliografia

BERTAUX, D. Destinos Pessoais e Estrutura de Classe. Rio de Janeiro, Zahar, 1979.        [ Links ]

ERIKSON, I. H. Identidade: Juventude e Crises. Rio de Janeiro, Zahar, 1972.        [ Links ]

FREUD, S. Mal-Estar na Civilização. Em Obras Completas, vol XXI, Imago Editora, 1969.        [ Links ]

GIANOTTI, J. A. A Universidade em Ritmo de Barbarie. São Paulo, Brasiliense, 1986.        [ Links ]

GREEN, A. Narcisismo de Vida e Narcisismo de Morte. São Paulo, Ed. Escuta, 1988.        [ Links ]

MILLS, C. W. A Nova Classe Média. Rio de Janeiro, Zahar, 1979.        [ Links ]

ROUANET, S. O novo Irracionalismo Brasileiro. In. Boletim Informativo da Associação Brasileira de Psicanálise, nº 2, maio, 1992, pág. 91-104.        [ Links ]

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WINNICOTT, D. A Criança e seu Mundo. Rio de Janeiro, Zahar, 1971.        [ Links ]