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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.13 n.1-4 Brasília  1993

 

Brincadeiras de menino, brincadeiras de menina

 

 

Ana Carvalho; Katharina Beraldo; Fátima Santos; Rosário Ortega

Universidade de São Paulo; Universidade Federal de Pernambuco; Universidade de Sevilha

 

 

Um estudo comparativo de percepções e diferenças de gênero em criança

As diferenças de gênero têm sido alvo da atenção de muitos pesquisadores do desenvolvimento infantil. Em sua revisão clássica sobre esse tema, Maccoby e Jacklin (1974) mostram que tanto as diferenças de comportamento entre meninos e meninas como entre as práticas educacionais em relação aos dois sexos são menores do que é usualmente suposto. Quanto à tipificação sexual, não há evidência consistente de diferenças até os quatro anos de idade. A partir daí, os meninos tendem a ser mais tipificados do que as meninas, mais propensos a evitar "atividades de menina", e mais sujeitos à pressão social contra uma tipificação sexual inadequada (Maccoby, 1988).

Quanto a atividades lúdicas, meninos e meninas tendem a brincar de coisas diferentes, e a preferir brinquedos diferentes. Essas preferências já são observáveis por volta de 12 meses de idade, tornando-se mais acentuadas ao final do segundo ano de vida, e muito explícitas dos 4 aos 6 anos; também aqui, os meninos apresentam preferências mais nítidas do que as meninas (Weintraub et al., 1984).

Outros estudos (por exemplo, Smith, 1986) confirmam as diferenças de gênero na probalidade de engajamento de crianças pequenas em atividades lúdicas e sociais. As origens dessas diferenças são controvertidas: fatores genéticos, modelação por agentes socializadores, aprendizagem espontânea de comportamentos apropriados para cada sexo através de identificação com modelos do mesmo sexo? Pesquisadores de orientação biológica têm interpretado essas diferenças em termos de fatores genéticos e hormonais, que em última instância refletiriam as diferentes pressões seletivas enfrentadas por machos e fêmeas no decorrer da evolução humana (por ex., Parker, 1984). Cientistas sociais consideram essas diferenças como fruto das pressões sociais predominantes, inerentes à transmissão de papéis sexuais, através de reforçamento adulto diferencial e encorajamento de atividades lúdicas diferentes para meninos e meninas. Mais recentemente, a teorização interacionista tem argumentado que essa socialização cultural não se reduz a uma transmissão de papéis do adulto para a criança, mas envolve a compreensão e interpretação ativas dos papéis de gênero pelas crianças (Fagot, 1985).

Alguns estudos examinaram diretamente a compreensão das próprias crianças sobre os estereótipos de gênero. Estes estereótipos já estão presentes em crianças pré-escolares, e aproximam-se das concepções adultas já na média infância (Williams et al., 1975). No entanto, refletem também a dinâmica das mudanças sociais: por exemplo, Archer (1989) verificou que o futebol, classicamente estereotipado como atividade masculina, estava se tornando mais aceitável para ambos os sexos em uma amostra de crianças inglesas de 10 a 15 anos.

Carvalho et al. (1990) relatam os resultados de um estudo preliminar sobre a percepção de crianças inglesas e italianas de 5, 8 e 10 anos a respeito de diferenças de gênero em cinco atividades comuns em pátios de recreação: brincadeira de luta ("lutinha"), pega-pega, brigas, futebol e pular corda. Quatro dessas atividades (todas com exceção de pega-pega) apresentaram algum grau de estereotipia de gênero, independentemente de idade ou país de origem. Mas foi verificada uma tendência à redução na estereotipia com a idade, especialmente em relação às atividades estereotipicamente masculinas (futebol e "lutinha"); essa tendência apareceu mais cedo nas crianças inglesas do que nas italianas, sugerindo a presença de pressões sociais diferenciadas em ambientes socioculturais diferentes, e o interesse de novas investigações do mesmo tipo.

Este trabalho relata alguns resultados preliminares de um projeto de pesquisa sobre aspectos culturais do comportamento lúdico,focalizando particularmente as percepções de adequação sexual de brincadeiras por crianças dos dois sexos, em três faixas etárias, e em seis contextos socioculturais, definidos pelo nível socioeconômico (classe média-alta, e classe baixa) e pelo contexto cultural mais amplo, representado por três cidades: São Paulo e Recife, no Brasil, e Sevilha, na Espanha.

A primeira parte do estudo foi conduzida nas duas cidades brasileiras. São Paulo é a maior cidade do Brasil, e uma das maiores do mundo; localiza-se na região mais rica e culturalmente mais desenvolvida do país, e em vários aspectos é comparável aos grandes centros urbanos do Primeiro Mundo. Recife é a quarta maior cidade brasileira, mas está localizada em uma região economicamente menos favorecida e culturalmente mais tradicional. Sevilha assemelha-se a Recife em termos de tamanho e população, mas apresenta características culturais de Primeiro Mundo. Os dados relativos às crianças brasileiras - que constituem o foco deste artigo - foram colhidos em 1991; os relativos às crianças espanholas serão colhidos no decorrer do próximo semestre letivo.

Em cada uma das cidades brasileiras, foi selecionada uma amostra representativa de contextos socio-econômicos diferentes: crianças de classe média alta, que frequentavam escolas particulares caras, e moravam em bairros residenciais; e crianças de classe baixa, que frequentavam creches e escolas públicas, e moravam em favelas ou bairros pobres de periferia. Em cada caso, foram pesquisadas 15 crianças de cada sexo em cada faixa etária (5,8 e 10 anos).

As crianças foram entrevistadas a respeito de seus hábitos e preferências lúdicas. Em seguida perguntava-se se elas conheciam cinco brincadeiras comuns em pátios de recreação: "lutinha", futebol, pega-pega, pular corda e amarelinha (em Recife, conhecida como "academia"); se achavam que cada uma dessas brincadeiras era "mais de meninos, mais de meninas, ou dos dois igual", e por que. A escolha dessas brincadeiras teve por objetivos a comparação com resultados de estudos anteriores (Carvalho et al, 1990), e a seleção de um conjunto de brindadeiras que incluísse duas brincadeiras estereotipicamente masculinas, duas estereotipicamente femininas, e uma neutra.

Para a análise dos efeitos das variáveis (idade, sexo, nível socio-econômico e contexto cultural), a frequência de respostas "para os dois igual" foi tomada como índice de estereotipia de gênero, e foi comparada separadamente para cada combinação de variáveis, através de X2 (p < .05). Prevê-se a realização de uma análise de efeitos de interação entre variáveis quando estiverem disponíveis os dados sobre crianças espanholas.

 

O que as crianças contam

Futebol e pega-pega são conhecidos por todas as crianças. Algums crianças afirmaram que não conheciam as brincadeiras de pular corda (1,5%), amarelinha (3,8%) e "lutinha" (5%).

Com a exceção de pega-pega, as demais brincadeiras apresentam algum grau de estereotipia de gênero. Lutinha e futebol apresentam estereotipia masculina forte. As respostas para pular corda e amarelinha aparecem mais distribuídas entre "mais de menina" e "para os dois igual" (Fig.1).

 

 

Os efeitos mais fortes da combinação de variáveis foram os relacionados com variáveis socio-culturais (nível socio-econômico e contexto cultural mais amplo). A diferença mais significativa ocorreu entre as meninas de classe alta e de classe baixa em São Paulo, e em seguida entre os meninos das duas classes em São Paulo. Em Recife, as diferenças de classe foram muito menos acentuadas (fig. 2).

 

 

As crianças de classe alta de São Paulo, e especialmente as meninas, apresentaram uma tendência ao aumento de frequência das respostas "para os dois igual" ao longo da idade, de forma semelhante ao que foi verificado em crianças européias (Carvalho et al., 1990). Esta tendência não aparece nas demais sub-amostras. Ao contrário, entre as crianças de classe alta de Recife há uma redução na frequência dessas respostas aos 10 anos de idade, o que torna este grupo semelhante ao de crianças paulistas de classe baixa. Nas sub-amostras de classe baixa não há efeitos consistentes de idade.

Não foram encontradas diferenças entre os sexos entre as crianças de classe alta em São Paulo; nas demais sub-amostras, os meninos tenderam a se mostrar menos estereotipados do que as meninas.

As diferenças socioeconômicas parecem portanto interagir com o contexto cultural mais amplo, que reflete características determinadas principalmente por fatores históricos e geográficos. O fato de que as crianças de classe alta de São Paulo tenham se mostrado mais semelhantes às crianças européias do que às crianças de Recife, e também o de que as diferenças de classe sejam mais acentuadas em São Paulo do que em Recife, sugerem algumas possibilidades para reflexão e para pesquisas futuras:

- Nas duas cidades, as crianças de classe alta são mais suscetíveis às tendências culturais dominantes em seu ambiente social, possivelmente em decorrência da maior eficiência de suas agências educacionais. É razoável supor que os valores dominantes em Recife a respeito de diferenças de gênero sejam mais tradicionais do que os de São Paulo, considerando-se as diferenças históricas e geográficas entre essas duas cidades.

- As crianças de classe baixa diferem menos das de classe alta em uma cidade menor, possivelmente porque o ambiente cultural seja mais estável inter-classes. Esta hipótese poderá ser melhor avaliada quando estiverem disponíveis os dados da amostra espanhola.

As tendências descritas acima são devidas principalmente às duas atividades estereotipicamente masculinas (futebol e lutinha). As principais diferenças entre as sub-amostras se referem ao futebol, que é visto cada vez mais como "para os dois igual" pelas crianças de classe alta de São Paulo. Isto provavelmente se relaciona ao fato de que as escolas particulares de São Paulo estão sintonizadas com os valores do Primeiro Mundo relativos à igualdade entre os sexos, e promovem a prática efetiva de futebol também por meninas. O fato de que não parece estar presente um incentivo semelhante para os meninos no caso de brincadeiras mais estereotipicamente femininas pode estar refletindo mais uma vez as indicações anteriores de que os meninos ainda são alvo de mais pressão no sentido de tipificação sexual.

 

Bibliografia

ARCHER J. Childhood gender roles: structure and development. The psychologist, 1989, 9,367-370.        [ Links ]

CARVALHO, A.M.A., SMITH, P.K., HUNTER, T. & COSTABILE, A. Playground activities for boys and girls: some developmental and cultural trends in children's perceptions of gender differences. Play and Culture, 1990, 3(4), 343-347.        [ Links ]

FAGOT, B.I. Beyond the reinforcement principle: another step toward understanding sex role development. Developmental Psychology, 1985, 21, 1097-1104.        [ Links ]

MACCOBY E.E. & JACKLIN, C.N. The psychology of sex differences. California: Stanford Univ Press, 1974.        [ Links ]

MACCOBY, E.E. Gender as a social category. Developmental Psychology, 1988, 24(6), 755-765.        [ Links ]

PARKER, S.T. Playing for keeps: an evolutionary perspective on human games. Em P.K. Smith (ed) Play in animals and humans. Oxford: Blackwell, 1984.        [ Links ]

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