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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.14 n.1-3 Brasília  1994

 

Alienação no seviço público

 

 

Aécio Gomes de Matos

Engenheiro, doutor em psicossociologia pela Universidade de Paris-Dauphine. e professor de Psicologia Institucional da Universidade Federal de Pernambuco

 

 

A questão da alienação se coloca, aqui, pela sua importância relativa no desenvolvimento institucional das organizações públicas do País e, particularmente, pela estratificação e pela hipertrofia que produz nas estruturas de dominação do instituído, em prejuízo da dinâmica do processo social e da autonomia dos indivíduos. Nesta perspectiva, a alienação é tratada como um fenômeno cuja etiologia remete a processos complexos, que se reproduzem pela articulação de instâncias psíquicas e institucionais; que se estruturam na cultura e se impõem aos indivíduos como uma violência simbólica, no sentido dado por Bourdieu & Passeron (1970), conforme analisaremos mais adiante.

Na pesquisa que fizemos sobre a gestão e os comportamentos nos serviços públicos1, os estilos de gestão das organizações e o contraponto da falência das instituições públicas, estratificando na sociedade brasileira o domínio do Estado pelos interesses privados das elites dominantes, diante da anomia da sociedade e da colaboração passiva dos servidores. Mas, se a anomia da sociedade e o comportamento funcional do servidor resultam da prática de poder das elites dirigentes e se justificam pela alienação do trabalho e da dignidade, de uns e de outros, não restam dúvidas de que é justamente da alienação que se alimenta o domínio das elites, a infelicidade dos servidores e a perversão do Estado no descalabro da administração e dos serviços públicos.

 

A ABORDAGEM DA QUESTÃO

A abordagem que fazemos, aqui, da alienação, vai no sentido de esclarecer os comportamentos dos servidores no contexto da crise institucional, econômica e moral pela qual passa a sociedade brasileira dos anos 90. O foco das análises se dirige para os significados do trabalho; para a sociedade e para o trabalhador; para o nível de autonomia e consciência do trabalhador; para o nível de democracia e consciência da sociedade.

Hegel, na perspectiva da fenomenologia do espírito, já estabelece a articulação dialética entre trabalho e consciência quando dispõe que" o trabalho humano não é mais do que o lugar e o momento em que o espírito absoluto adquire consciência do seu trabalho, como processo indefinido de auto-desenvolvimento2".

A dialética materialista de Marx (1867) complementa o pensamento hegeliano considerando que o trabalhador com o seu trabalho "não opera apenas uma mudança de forma nas matérias-primas. Ele realiza ao mesmo tempo seu próprio objetivo consciente, o qual determina, como lei, seu modo de ação e ao qual ele deve subordinar sua vontade" (1975. p. 181). Nesta perspectiva, Marx considera ainda que na sociedade capitalista "o trabalho é só uma expressão da atividade humana dentro da alienação3".

Numa visão mais abrangente da complexidade dos sistemas psicossociais, CASTORIADIS (1975, p. 149) completa que a alienação "é o que se manifesta como condição massiva de privação e de opressão; como estrutura solidificada global material e institucional da economia, do poder e da ideologia; como indução, mistificação, manipulação e violência".

Nessa perspectiva, nossa análise procura compreender a alienação no serviço público, no seu modo de ação e nos seus significados objetivos para a sociedade e para o próprio funcionário; o trabalho na dimensão social da autonomia; o trabalho que deveria permitir a afirmação social da individualidade; que deveria estruturar a identificação profissional e a realização do indivíduo numa profissão e numa organização, mas também como significado objetivo para a sociedade, expresso no reconhecimento social, inclusive, por uma renda que dignifique a sobrevivência material, a auto imagem e a imagem social do trabalhador.

 

A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA DA ALIENAÇÃO

Para melhor compreender o processo de alienação descrito a seguir, tomamos o conceito de "violência simbólica" introduzido por Bourdieu & Passeron (1970 p. 19) como o "poder que chega a impor significações e a impô-las como legítimas, dissimulando as relações de força", e que parece respaldar o clima de aparente normalidade da situação de descalabro em que se encontra a administração pública no Brasil, dos desrespeito aos direitos do cidadão, da alienação do servidor público.

Os traços da violência simbólica da alienação do servidor, como se configura hoje nas organizações públicas brasileiras, aparecem com muita nitidez, a partir da falência do modelo tecno-burocrático de desenvolvimento, que se consolidou no País nos anos 70. A redemocratização política institucionalizada pela Constituição de 1988, sem superar as desigualdades sócio-econômicas, termina por lançar o País numa inquietação social e numa crise de largas proporções, sem conseguir estabelecer modelos alternativos de administração, o que termina por desarticular a máquina administrativa do Estado e por estratificar, na cultura do setor público, comportamentos funcionais que tendem a emperrar a modernização da administração e a consolidação da democracia.

Saiu-se de uma alienação pelo autoritarismo e pela violência explícita, para cair numa nova alienação pela exclusão e pela violência simbólica. Combater a primeira pareceu mais fácil do que a segunda; atuar sobre o explícito tem mais conseqüência do que enfrentar o implícito, o imaginário, o inconsciente.

 

A QUEM SERVE A ALIENAÇÃO

Mas, qual a lógica que explica a alienação? A quem serve essa situação? Eis as duas questões que nos propomos a investigar nesse artigo.

Em primeiro lugar, essas perguntas poderiam se dirigir às instâncias superiores da hierarquia institucional. Eis que as respostas parecem evidentes, pela supremacia política e administrativa de uma elite dirigente que se perpetua no poder como representante dos interesses dos grandes grupos económicos que privatizam o Estado, num País onde os 10% mais ricos da população controlam 48,7% da renda, enquanto os 50% mais pobres têm de se contentar com 5,5% da renda. Uma elite que representa os interesses do capital, que nos últimos 30 anos elevou sua participação no total da renda nacional de 1/3 para 2/3. Em outras palavras, foram as elites brasileiras e, mais especificamente, a empresa capitalista, os principais beneficiários desse processo.

Em segundo lugar, considere-se que, pelo menos aos olhos do capitalismo selvagem, a continuação desses benefícios exigiria a redução do poder do Estado, a ineficiência dos serviços públicos, a alienação dos servidores.

Mas, não é só aos empresários adeptos do capitalismo selvagem que serve essa situação. O paradigma liberal do Estado mínimo é reforçado por estranhas alianças com o corporativismo dos servidores, que estendem o antagonismo trabalhista com governo-patrão, a uma atitude sistemática de confrontação com o Estado-instituição, com uma ferocidade que nada fica a dever aos capitalistas. A luta dissimulada contra instituições fortes, contra funcionários conscientes serve assim às elites dominantes e ao próprio corporativismo do funcionalismo, que não deixa de ser, simultaneamente, o mais direto prejudicado da falência das instituições. A dissimulação de que nos fala Bourdieu & Passeron (op. cit.) faz com que os cooperativistas deixem de perceber que, na verdade, a única forma viável dos funcionários serem considerados e valorizados é, justamente, o fortalecimento do Estado que eles combatem.

A alienação do trabalho nos serviços públicos serve, assim, à apropriação do Estado pelas elites, mas serve também ao corporativismo dos funcionários que também se beneficiam de um Estado fraco.

 

A ALIENAÇÃO DA AUTONOMIA

Para caracterizar a alienação dos servidores públicos, considere-se, inicialmente, uma avaliação objetiva da sua autonomia político-administrativa e de sua inserção social. Em primeiro lugar, observe-se que, profissionalmente, a participação dos servidores nas decisões sobre políticas públicas só acontece, enquanto representantes da administração, em comissões ou grupos de trabalho onde se deve levar o pensamento dos dirigentes e dos políticos que decidem pelo governo e pela organização. Raros são os peritos que têm autonomia e competência de ofício para se pronunciar, enquanto profissionais, sem a tutela dos dirigentes. Os riscos de emitir opiniões pessoais, contrariando o pensamento dos dirigentes, são vividos como ameaças significativas sobre os cargos e sobre a carreira. Observa-se, por exemplo, como sintoma desse sentimento de ameaça, o emperramento dos sistemas de comunicações nas organizações públicas, onde nem mesmo os gerentes se arriscam a repassar informações pelos circuitos oficiais, preferindo os circuitos informais da "rádio corredor".

De fato, as queixas sobre a falta de informações são debitadas sobretudo ao bloqueio na hierarquia, na queixa de 68% dos funcionários; sendo o medo o terceiro maior motivo. Medo de ver a informação transmitida, desautorizada posteriormente. Enquanto isso, 64% dos funcionários preferem usar o sistema informal (a rádio peão) justamente por envolver menos riscos.

 

A ALIENAÇÃO DAS IMAGENS

No plano da inserção social, o reforço à alienação vem da deterioração das imagens sociais dos serviços públicos e dos próprios servidores, sempre associadas a estereótipos pejorativos que denigrem os funcionários, enquanto profissionais.

VENEU4, sintetiza as imagens negativas do funcionário público no Brasil em uma "representação-matriz" que caracteriza o servidor pela falta de ambição intelectual, pela acomodação, despreocupação com resultados, garantia do emprego, acumulação de funções e gratificações. Em contrapartida, observa-se que as organizações públicas são marcadas por imagens de ineficiência, de desperdício, de falta de coordenação e de controle, sujeitas ao clientelismo, ao nepotismo e à corrupção.

Essas imagens negativas do servidor público são representadas socialmente por estereótipos que caricaturam ironicamente os contornos da "representação-matriz", com os traços dos acontecimentos do momento. O barnabé e a Maria Candelária, ressaltando a anomia e o "paraquedismo" dos funcionários públicos nos anos 50, cederam espaço para esterótipos mais contemporâneos como os aspones5, os marajás, os anões do orçamento e as mordomias, com foco numa crítica mais dirigida à ocupação clientelista da máquina administrativa e ao assalto institucionalizado dos cofres públicos, do que aos próprios funcionários.

 

A ALIENAÇÃO DO TRABALHO

Do ponto de vista do trabalho, a alienação do servidor aparece na constatação da falta de integração do trabalho individual numa produção coletiva com significado social. Observou-se que, a burocracia serve à desarticulação e ao esvaziamento do trabalho individual. A maioria dos funcionários não vê, nem se apropria simbolicamente do resultado do seu trabalho; a fragmentação das tarefas os transforma em simples elos de uma corrente, da qual não conseguem enxergar o início, o fim, nem a finalidade. De fato, além de 71% dos funcionários da administração direta não terem uma avaliação positiva dos serviços prestados pelas suas organizações (43% nas estatais), 67% acham que a sua contribuição não é suficientemente reconhecida no conjunto (57% nas estatais).

Freqüentemente, o trabalho de muitos funcionários se resume a despachos formais em documentos, um passo na tramitação de um processo, uma gota no oceano da gigantesca máquina do Estado. Sabe-se, além do mais, que por trás do formal, tudo se opera por baixo dos panos; que as coisas importantes são resolvidas "por fora", pela informalidade clientelista, na base da amizade, segundo respondem, mais de 35% de todos os funcionários.

 

A ALIENAÇÃO NA EXPROPRIAÇÃO DO PRODUTO

O outro ponto de esvaziamento dos significados do trabalho pode ser localizado nos estilos de gestão das organizações públicas, particularmente no que diz respeito à hierarquia e à centralização das decisões, nas figuras de autoridade. Para além da fragmentação do trabalho, observa-se que a politização indiscriminada dos órgãos públicos, promove na estrutura operativa um efeito perverso de expropriação do trabalho do servidor comum. São os dirigentes que, apesar de uma certa falta de legitimidade nos cargos (decorrente da politização) e muitas vezes da incompetência profissional, assumem os louros do trabalho de suas equipes, deixando no anonimato aqueles que realmente produziram. Esse fenômeno é absolutamente generalizado nas organizações públicas, na prática dos discursos e artigos escritos por ghost writers, na apropriação de idéias e inovações sem crédito para os autores, na obscuridade dos bastidores das equipes de apoio administrativo.

 

A ALIENAÇÃO COMO PROCESSO COMPLEXO

Em síntese, alienação do servidor é o coroamento de mediações subseqüentes às contradições sócio-econômicas e político-institucionais, por interposições de contradições organizacionais e individuais; entre os interesses da sociedade e a privatização do Estado aos interesses das elites; entre a submissão ao poder discricionário dos dirigentes e a falta de legitimidade desses mesmos dirigentes; entre os baixos salários e a estabilidade no emprego; entre os valores éticos, a consciência crescente da sociedade brasileira, a falta de um compromisso funcional mais efetivo e o corporativismo; entre os estereótipos negativos e a carência narcísica dos servidores. Esses sentimentos de alienação do trabalho se reforçam a cada mês, de maneira objetiva quando o contra-cheque aparece como mensageiro do aviltamento dos salários, da falta de reconhecimento social vivido não apenas pelos aspectos econômicos em si, mas também pelo significado que a sociedade dá ao serviço público, ao trabalho do servidor. Os funcionários sentem assim, tanto pela linguagem objetiva dos salários, como pela linguagem subjetiva dos esterótipos negativos, o quanto o seu trabalho é desvalorizado e desacreditado.

 

OS SIGNIFICADOS DO TRABALHO

Mas, apesar de tudo, o trabalho nunca perde completamente todos os seus significados positivos para o servidor. Em contrapartida aos processos de alienação dos significados do trabalho do servidor nas organizações públicas, descritos acima, observe-se a importância do emprego público como única atividade remunerada para 95% dos funcionários das estatais e para 82% dos da administração direta. Em outras palavras, apesar de serem alienados pela falta de autonomia, pela segmentação e expropriação do trabalho, pela associação de imagens negativas; apesar dos seus salários serem julgados inferiores aos do mercado por 72% nas diretas e 31% nas estatais, o emprego público ainda é a atividade profissional central dos servidores; aquela da qual sobrevivem, onde constroem suas referências profissionais, onde passam a maior parte do seu tempo útil. Essa ligação objetiva com o serviço público, parece se consolidar na percepção de que o salário e a estabilidade são fatores que mais motivam a permanência de 97% dos funcionários no serviço público.

Além desses significados objetivos que o emprego tem para o servidor público, há que se considerar a importância simbólica do trabalho em uma sociedade moderna, onde as atividades profissionais são o núcleo da vida social, dominando pelo menos um terço de todo o tempo disponível. Desde que o taylorismo foi superado como teoria, que se procuram significados mais subjetivos para o trabalho, além das recompensas materiais; as relações grupais descobertas por Mayo6, os fatores motivacionais de Maslow (1943) e Herzberg (1959) (8), entre muitos outros, indicam que os significados subjetivos podem ser, até mesmo, mais importantes que os objetivos.

Os mais fortes sintomas desses significados subjetivos no setor público, aparecem nos processos de identificação (ou de negação da identificação). Associar-se às imagens positivas nas empresas públicas modernas ou negar essa associação nas organizações mais deterioradas da administração direta, implica em investimentos afetivos muito importantes para a alienação, como veremos mais adiante.

Todos esses sentimentos de alienação do trabalho, se reforçam a cada mês, de maneira objetiva quando o contra-cheque aparece como mensageiro do aviltamento dos salários, da falta de reconhecimento social vivido não apenas pelos aspectos econômicos em si, mas também pelo significado que a sociedade dá ao serviço público, ao trabalho do servidor. Os funcionários sentem assim, tanto pela linguagem objetiva dos salários, como pela linguagem subjetiva dos esterótipos negativos, o quanto o seu trabalho é desvalorizado e desacreditado.

Contraditoriamente à importância objetiva ou simbólica que o trabalho possa ter para o servidor, a prática diária nas organizações, pondo a nu a ineficiência dos serviços públicos, denuncia e questiona os significados sociais do trabalho e reforça a falta do reconhecimento público que viabilizaria a identificação, a motivação e o engajamento do servidor.

Estrutura-se assim uma vivência ambivalente na relação entre o servidor e o trabalho nas organizações públicas, que se traduz em incômodos e se expressam em queixas generalizadas contras as administrações; queixas que não conseguem esgotar as ansiedades provocadas pela alienação dos significados do trabalho, pelo sentimento de inutilidade e de culpa pela ineficiência.

 

ALIENAÇÃO COMO DEFESA

Chamamos a atenção, finalmente, para um aspecto da alienação do servidor que garante a estabilidade do processo, apesar do nível de estresse a que se submete o servidor: a alienação como um mecanismo de defesa mediatizante das contradições entre os servidores, o governo e a sociedade, no sentido dado por Dejours (1991 p. 27). Mediações que permitem ao servidor a redução da culpa e do estresse decorrentes do processo de alienação e, em contrapartida, tornam possível à organização obter a adesão dos servidores a funções que garantam o funcionamento dos serviços públicos e da administração nos limites mínimos toleráveis de ineficiência. Alienação, como processo psíquico-institucional, que se estrutura no sentido de escamotear a dominação pelo deslocamento do concreto para o abstrato; das vivências conscientes para as produções simbólicas do controle ideológico e daí para o imaginário. É o que chamamos anteriormente de alienação, enquanto violência simbólica, alienação implantada no inconsciente, mobilizando dispositivos e processos de diversas etiologias, integrando instâncias políticas, ideológicas, econômicas e psíquicas.

 

OS PROCESSOS PSÍQUICOS DA ALIENAÇÃO COMO DEFESA

No plano psíquico, a alienação se expressa diferentemente, entre os servidores da administração direta e os das estatais. Na administração direta, a alienação aparece mais claramente na falta de referências que estimulem a identificação profissional, produzindo um sentimento de orfandade paterna, pela ausência de compromisso dos dirigentes, induzindo a projeção dos investimentos psíquicos e, particularmente, as identificações para fora da organização, nos paradigmas onipotentes da empresa privada, como ego ideal, inviabilizando uma ação edípica, para dentro, de confrontação dos dirigentes, no sentido da mudança.

A viúva (termo usado freqüentemente para designar a administração pública), nega a esses servidores, já órfãos de pai, o peito para alimentá-los com dignidade e o afeto do reconhecimento e da valorização. Esse servidor, órfão de pai e abandonado pela mãe, não consegue ultrapassar o estágio da horda e se organizar para assumir sua história como membro de uma organização, ficando à deriva, disperso, sem líderes que os mobilize em nome da lei e da ordem. Alienado.

Nas estatais, o processo de alienação se estrutura em outro nível, menos grave, do ponto de vista operativo, para a organização. As referências identitárias, podem ser estabelecidas para dentro da organização, com referência às imagens públicas positivas, segundo 57% dos funcionários, com respaldo na boa qualidade dos serviços prestados, segundo 80%. O ideal do ego tem uma representação da empresa, na competência técnica e na liturgia dos cargos de direção, no passado de glórias quando a maioria dessas empresas foram implantadas no apogeu dos anos dourados. O reconhecimento da autoridade e da competência técnica dos dirigentes (apenas 7% contestam) garantindo o poder e a ordem na organização, termina por permitir o estabelecimento de uma relação de equilíbrio produtivo nessas organizações.

A alienação nas estatais se expressa, de uma maneira menos grave, na submissão às estruturas de poder, amplificadas pelas produções imaginárias decorrentes da distância hierárquica que imobilizam a organização em torno de procedimentos autorizados, e que se traduzem no medo do controle da autoridade, determinando comportamentos auto-limitados, para evitar o risco de transgressão. Essa auto-limitação se expressa, particularmente, na inibição dos funcionários a uma participação mais ativa em processos gerenciais, como é o caso do processo de comunicação, onde os filtros da hierarquia e as emaças às transgressões, praticamente inviabilizam os sistemas oficiais de informação e levam os funcionários ao exercício sistemático da "rádio corredor" como um dispositivo menos confiável, porém, mais efetivo.

 

ALIENAÇÃO PRODUZ ALIENAÇÃO                                                                               

Uma síntese possível desse quadro remete à confirmação dos estereótipos do funcionário, não como resultado da índole preguiçosa do brasileiro ou de se estar impregnado de um vírus cultural que afeta os funcionários, mas como uma construção complexa e patológica do conjunto da sociedade brasileira, sob o comando dos beneficiários maiores da situação de descalabro em que se encontra a máquina da administração do Estado: a elite econômica e política que privatizou o Estado nos regimes autoritários e que agora, com a redemocratização, defendem, se não a eliminação, a limitação máxima do Estado como regulador de uma sociedade liberal, onde o capitalismo selvagem completaria sua dominação, em detrimento da grande maioria da população, já agora marginalizada.

Mas, se o desmonte do Estado e das organizações públicas aliena o servidor ao desalojá-lo do poder, ao retirar os significados do seu trabalho e ao negar-lhe a valorização, o reconhecimento e a realização afetiva, outra não parece ser a sua postura, senão a de reforçar essa sistemática perversa, fechando o circuito de retro-alimentação do projeto de desmonte do Estado, de alienação da cidadania e de sua própria alienação como servidor e como cidadão.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANZIEU, Didier. Le Groupe et I'Inconscient. Paris, Dunod, 1984. 234 p.        [ Links ]

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BORDIEU, Pierre & Passeron, Jean Claude. A reprodução. Trad. Reynaldo Bairão. Rio de Janeiro, 1992. 238p.        [ Links ]

CASTORIADIS, Cornélius. L'lnstitution Imaginaire de la Société. Paris, Éditions du Seuil. 1975. 498p. (Tradução do autor)        [ Links ]

DEJOURS, Christophe. A Loucura do Trabalho. São Paulo, Corttez Editora. 1991. 163p.        [ Links ]

MARX, Karl. Le Capital. Paris, Éditions Sociales, 1975.        [ Links ]

MATOS, Aécio Gomes. A Gestão Pública e o Comportamento do Servidor. Relatório de Pesquisa para o CNPq. Recife, 1994. 200p.        [ Links ]

VENEU, Marcos Guedes. Representações do Funcionário Público. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro. v. 24. n.° 1:5-16. 1990.        [ Links ]

 

Notas

2 - MATTOS, Aécio Gomes de, A Gestão Pública e o Comportamento do Servidor. p. 113        [ Links ]

3 - Citado por Carlos Astrada, Trabalho e Alienação. p. 36        [ Links ]

4 - ld. Ibid. p.49

5 - Termo usado por VENEU, Marcos Guedes. (Representações do Funcionário Público. in Revisada Administração Pública. Rio de Janeiro, v. 24. n.° 1. p. 5-16. nov. 1989/jan. 1990.) para caracterizar as referências centrais da imagem do funcionalismo simbolizadas na "Maria Candelária" e no "Barnabé".        [ Links ]

6 - Sigla criada pela linguagem popular para significar cargos sem nenhuma função objetiva: "assessor de porra nenhuma".

7 - Citado por ANZIEU & MARTI (1973 p. 62)

8 - Citados por CHIAVENATO (1989 p. 44)