SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.14 número1-3Behaviorismo radical, epistemologia e problemas humanos índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.14 n.1-3 Brasília  1994

 

Formar psicólogos para quê?

 

 

Maria de Fátima de Souza Santos

Professora do Depto de Psicologia da Universidade de Pernambuco

 

 

Os anos passados na Universidade podem ser considerados um período de "moratória psicossocial", para utilizar a expressão de Erickson (1972), isto é, um período em que o sujeito prepara-se para a sua inserção no mundo do trabalho, no mundo da produção, adulto por excelência.

Nesse sentido, a formação do aluno de Psicologia - como de resto, a de qualquer profissional - impõe aos professores que dela participam inúmeras questões.

Escolhi, entretanto, uma delas que é na verdade a pergunta que nos colocamos tantas vezes ao longo de nossas vidas profissionais: o que formamos e para quem formamos?

Colocada assim, a formação parece ser um processo unilateral, onde professores "modelariam" psicólogos a partir de suas posturas teóricas individuais.

Mas qual é o nosso papel? Formar psicólogos? Profissionais? Tarefa por si só já bastante árdua e, na maior parte do tempo, extremamente prazeirosa. Como separar o profissional que formamos do cidadão que assume seu lugar no mundo social? Então não formamos apenas psicólogos, formamos cidadãos. Formamos psicólogos/cidadãos. Entretanto, como só acredito na formação como uma "via de mão dupla", só formamos profissionais e cidadãos se aqueles que aqui chegam estiverem comprometidos com esse projeto e o assumirem como seu. Logo, esse projeto deixa de ser algo da esfera individual para tornar-se um objeto coletivo.

São exatamente os limites entre o individual e o coletivo, o privado e o público, o eu e o outro, o compromisso com um projeto único e ao mesmo tempo compartilhado, que mereceriam uma maior atenção do cidadão/psicólogo.

Estudar Psicologia é necessariamente ter o homem como objeto de estudo. Esse homem é um ser biologicamente social, como afirma Edgard Morin (1974). Ao nascer traz, como característica de sua espécie, um organismo capaz de produzir e reproduzir símbolos, capaz de se comunicar através dos símbolos ou significados compartilhados, para usar a expressão de George Mead (1982). Segundo esse autor, é a partir das relações com o outro que se constrói a natureza humana. É no jogo de significados atribuídos, apropriados e reconstruídos pelo sujeito que o homem se constrói.

Como então falar do indivíduo sem falar do outro, do grupo, dos significados compartilhados? A própria Psicanálise ao enfocar os conflitos e desejos inconscientes ressalta que o sujeito se estrutura no momento em que se estrutura o Superego, isto é, a instância responsável pelos limites dos desejos individuais.

Entretanto, mais do que nunca, em nome da Psicologia, as pessoas preocupam-se excessivamente com suas histórias de vida, com seus sentimentos, seu sucesso profissional e com a busca do que denominam "verdadeiro eu" em detrimento da história coletiva, das relações de grupo, do compromisso social do cidadão.

Richard Sennett(1988)exprime bem essa idéia no seguinte trecho do seu livro: O Declínio do Homem Público.

"Numa sociedade onde o sentimento íntimo é um padrão de realidade apropriado a diversas finalidades, a experiência se organiza em duas formas que conduzem a essa destrutividade premeditada. Nessa sociedade, as energias humanas básicas do narcisismo são mobilizadas de modo a penetrarem sistemática e perversamente nas relações humanas. Nessa sociedade, o teste para saber se as pessoas estão sendo autênticas e "direitas" umas com as outras é um padrão peculiar de troca mercantil em relação íntima.

O narcisismo, no sentido clínico, diverge da idéia popular do amor de alguém por sua própria beleza; num aspecto mais restrito e como distúrbio de caráter, é a preocupação consigo mesmo que impede alguém de entender aquilo que é inerente ao domínio do eu e da autogratificação e aquilo que não lhe é inerente. Assim, o narcisismo é uma obsessão com 'aquilo que esta pessoa, este acontecimento significam para mim'. Este questionamento sobre a relevância pessoal das outras pessoas e de atos exteriores é feita do modo tão repetitivo que uma percepção clara dessas pessoas e desses acontecimentos em si mesmo ficam obscurecida. Essa introjeção no eu, por estranho que possa parecer, impede a satisfação das necessidades do eu;faz com que, no momento de se atingir um objetivo, ou de se ligar a outrem, a pessoa sinta que 'não é isto que eu queria'. Assim, o narcisismo tem a dupla qualidade de ser uma voraz introjeção nas necessidades do eu e o bloqueio de sua satisfação".

É essa busca incessante do "verdadeiro eu", o compromisso único com o meu prazer, com meu sucesso individual, com minha competência profissional, que esvazia o meu compromisso com o outro, com um projeto coletivo, com a competência social na solução das questões básicas que atingem a humanidade nesse final de século.

Tornar-se um profissional em Psicologia é assumir seu lugar como cidadão; é mais do que a coroação do êxito individual; é mais que o reconhecimento da competência para realizar um projeto de vida. É, para mim, um compromisso com um projeto coletivo, é assumir seu lugar no espaço público.

Atualmente a ênfase excessiva nos estados emocionais subjetivos, no individualismo, vem esvaziando a participação social do homem.

Essa noção de individualismo -que em última instância nega a natureza social do homem - permite que se desconheçam os limites entre o público e o privado. Isto vem se cristalizando no cotidiano, nas pequenas e grandes ações.

Não seria essa força narcísica de que nos fala Sennett que leva as pessoas a furar filas, estacionar em locais que impedem a circulação, filar em provas, omitir informações que são importantes ao outro, desconhecer os limites dos papéis institucionais, não compreender o outro em si mesmo, votar pelas qualidades pessoais dos candidatos (ou não votar porque "não está afim") e estabelecer emendas no Orçamento da União que apenas beneficiam seus próprios interesses?

Que compromisso com um projeto coletivo pode ser apreendido desses comportamentos? Esses comportamentos não seriam a própria negação do desenvolvimento da civilização?

Mais uma vez recorro a Sennett quando afirma que gerou-se uma confusão entre vida pública e íntima, fazendo com que as pessoas tratem em termos de sentimentos, desejos e necessidades pessoais, os assuntos públicos, coletivos que só poderiam "ser adequadamente tratados por meio de códigos de significação impessoal".

Despojado de sua capacidade de assumir seu papel de ator/autor social, resta ao homem a manipulação dos interesses grupais e a transgressão das regras coletivas para satisfazer suas necessidades e desejos individuais.

Neste sentido, sua formação profissional, por exemplo, desarticula-se do projeto coletivo e serve apenas para a manutenção da vaidade individual, do reconhecimento pessoal, do êxito familiar, alimentando assim a força narcísica que o gerou.

Estando ausente o projeto coletivo, fica esvaziada a formação: a compreensão teórica dos fenômenos ficará reduzida a discussões do senso-comum; a pesquisa enquanto tentativa de respostas a questões colocadas pelo homem e para o homem, só será útil na medida em que enriquecer currículos; a publicação dos conhecimentos produzidos, em vez de demonstrar um compromisso público com o desenvolvimento do acervo de conhecimento social, será restringida ao aumento da possibilidade de obtenção de bolsas individuais e à vaidade de se tornar nacional ou internacionalmente conhecido; a atuação do profissional em Psicologia, longe de ser uma busca de compreensão dos fenómenos da interação humana, torna-se-à uma tentativa de apreender os motivos e conflitos individuais esvaziados de significados compartilhados, levando a um fechamento do homem sobre si mesmo. É mais uma vez a negação da natureza social do homem.

Se reduzido o compromisso social por parte do aluno, o tempo de formação universitária pode restringir-se a leituras rápidas e superficiais visando a melhor nota para passar por média. O curso e os professores poderão ser avaliados por códigos de significação pessoal. As normas e os limites institucionais serão passíveis de burla e não de aprimoramentos. As críticas a tais normas só serão feitas se puderem ser revertidas a "meu favor". As teorias não serão criticadas a partir dos argumentos sobre sua lógica e consistência, mas pelo que elas significam para cada um. O processo de aprendizagem na formação profissional reduzir-se-à, enfim, a respostas dadas a cobranças e pressões dos professores.

Encarar a formação profissional como um compromisso individual e coletivo é ser autor desse processo, é comprometer-se com seu projeto de vida, com a Universidade e com a Sociedade.

Cada um de nós, em seus espaços individuais, tem compromisso com o espaço público, atua como agente de mudança nos limites de nossas competências.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ERICKSON, Erick, Adolescence et Crise. Paris, Flammarion, 1972.        [ Links ]

MEAD, George Espiritu, Persona y Sociedad. Barcelona, Paidós, 1982.        [ Links ]

MORIN, Edgard, O Paradigma Perdido. Lisboa, Publicações Europa-América, 1974.        [ Links ]

SENNETT, Richard, O Declínio do Homem Público. São Paulo, Companhia das Letras, 1988.        [ Links ]

 

 

NOTA - Aula de encerramento do curso de Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco, turma de julho/94.