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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.15 no.1-3 Brasília  1995

 

Mulher - mãe

 

 

Carmem Lígia Iochins Grisci

Psicóloga. Mestre em Psicologia Social e da Personalidade. PUCRS

 

 

Sob o recorte da maternidade enquanto ato social, realizou-se uma pesquisa com o objetivo principal de investigar os modos e estratégias utilizados pela ideologia patriarcal para reproduzir relações de gênero em condições sócio-históricas específicas.

Os dois conceitos-chave a nortear a pesquisa - ideologia e maternidade - são assim compreendidos, com inspiração em Velázquez (1987): por maternidade compreende-se o processo que engloba planejamento familiar, gestação, parto, puerpério e criação dos/as filhos/as.

E por ideologia, entre as tantas definições existentes, opta-se pela desenvolvida por Thompson. Para esse autor, ideologia é um termo que "pode ser usado para se referir às maneiras como o sentido (significado) serve, em circunstâncias particulares, para estabelecer e sustentar relações de poder que são sistematicamente assimétricas", que chama de "relações de dominação" (Thompson, 1995, p.l6).

O referencial metodológico utilizado é o da Hermenêutica de Profundidade ou Metodologia da Interpretação que objetiva, especificamente, na abordagem de Thompson (1995), analisar e interpretar formas simbólicas, sobretudo no campo da comunicação social. Para tanto, o autor contempla três fases distintas - análise sócio-histórica, análise formal ou discursiva e interpretação/ re-interpretação - em constante movimento de interação, pois o fenômeno é apenas um, que sofre e exerce influência no contexto social no qual se encontra inserido.

Os dados de pesquisa foram constituídos por entrevistas individuais semidirigidas realizadas com seis mulheres-mães e por um grupo focal de nove mulheres-mães, totalizando 15 sujeitos. A realização do grupo deveu-se à crença de que vários sujeitos em interação possibilitariam maior e melhor entendimento de como se dão os processos sociais, no sentido de apreender como as mulheres dinamizam o tema maternidade entre si.

As mulheres-mães pesquisadas apresentam singularidades, referentes à experiência de cada uma. São mulheres com idade entre 20 e 55 anos, casadas, solteiras, viúvas, mães, avós, inseridas ou não no mercado de trabalho, e pertencentes a classes sociais diferentes.

Em relação aos dados de pesquisa, num primeiro momento, fez-se uma análise vertical, mulher por mulher, das seis mulheres entrevistadas individualmente, justamente para contemplar a questão da singularidade. Num segundo momento, fez-se uma análise horizontal das quinze mulheres-mães, privilegiando-se o grupo de nove mulheres-mães por esse já constituir-se numa versão coletiva.

Tudo o que se registra, fruto dessa análise, é uma construção imbuída de provisoriedade, dinamismo e especificidade característicos de qualquer questão social, como ensina Minayo (1994). Que não se estranhe o realce dado à dimensão negativa da maternidade, uma vez que esta é uma questão raramente discutida, mas freqüentemente pauta de sofrimento das mulheres. Inúmeras facetas desse tema que gera alegria e felicidade poderiam ter sido realçadas, mas elas se constituem evidências amplamente comentadas e divulgadas no dia-a-dia e não implicam sofrimento.

É justamente sobre a dimensão negativa, o não dito costumeiramente, o que falta para uma visão global, que prejudica, que faz sofrer, que atrapalha a vida, que esta pesquisa se debruça. Cabe ressaltar, mais uma vez, que a dimensão positiva da maternidade é automaticamente afirmada e aceita como parte da totalidade, numa perspectiva histórico-crítica.

À mulher-mãe tem sido legado, com a maior naturalidade, ditos populares, tais como: ser mãe é padecer no paraíso, mãe: a rainha do lar, mãe só tem uma, sexto sentido de mãe e vaca leiteira que são abundantes e corriqueiros nas relações sociais. Na freqüência com que são pronunciados constata-se a imobilidade que provocam, o que lhes delega um caráter de obviedade tal que até parecem surgir do nada. Essa idéia de eternalização mostra-se como um campo profícuo a amparar a ideologia enquanto mantenedora de uma subjetividade de mulher-mãe. Vejamos, a seguir, alguns dos modos de expressão da ideologia nas vivências das mulheres-mães pesquisadas.

 

Corpo de mulher, ventre de mãe: matéria-prima da ideologia patriarcal

A análise dos dados de pesquisa nos revela de forma abundante como os modos de operação da ideologia e suas estratégias de ação interpelam a mulher-mãe. De modo geral, ao acionar suas estratégias, a ideologia caracteriza a maternidade como definidora da identidade feminina, tal qual registra (1988), negando seu processo histórico e normatizando o papel de mãe.

Os pontos mais centrais das descobertas da pesquisa mostram, numa concatenação de dimensões, não só como as mulheres-mães pesquisadas foram construídas mas, também, como são mantidas, freqüentemente, condicionadas a padrões ideologicamente solidificados.

Tais achados levaram a configurar-se ideologia como uma fábrica de mulheres-mães, sendo o corpo da mulher - ventre de mãe - sua matéria-prima.

A respeito do corpo, verifica-se que na infância as mulheres aprenderam a não manipular a genitália, a engolir falsas informações, a conviver com a repressão. Adultas, atribuem à sexualidade adjetivos negativos e revelam um corpo essencialmente voltado para a procriação. Dados que apresentem uma conotação diferenciada dessa são restritos e tendem a gerar forte discordância entre as mulheres que buscam sujeitar umas e outras à dominação patriarcal. Ainda hoje, essas mulheres se atrapalham diante da sexualidade das filhas, inibindo-se e não dando conta das informações que em grande parte são obtidas fora do grupo familiar.

Esses aspectos da sexualidade mostram-se importantes no entendimento da mulher-mãe, já que as mulheres colocam o próprio corpo a serviço da reprodução das relações de gênero. Inclusive, o ato sexual, para algumas delas, ainda se justifica somente quando voltado para fins reprodutivos. E a maternidade se constitui, muitas vezes, numa compensação pela precária vida conjugal dessas mulheres.

A gravidez é, para essas mulheres, em geral, associada unicamente ao ato sexual, como se ela ocorresse ao largo das relações. Em decorrência disso, condições de saúde, planejamento familiar e criação dos/as filhos/as, nem sempre são cogitados.

O certo é que procriar constitui-se numa obrigação para as mulheres, assim interpretado, conforme suas próprias palavras: "Não questionei nunca! Era uma coisa que tinha que ser cumprida e ponto final", ou então, "Aquilo ali era lei". Não procriar, por sua vez, é interpretado como "não conseguir realizar-se como mulher", "ser machorra", "não é normal" e "é como se tu não tivesse contribuído pra vida". "É como se tu não fizesse direito a tua parte".

Desde essa perspectiva, a seguinte ordem de acontecimentos torna-se freqüente enquanto vivência das mulheres: entregar o corpo à decisão do homem quanto a ter ou não ter filhos, decisões estas, muitas vezes, contrárias à sua vontade; blasfemar contra o sofrimento imputado ao corpo; conviver com o sofrimento ainda maior gerado na crença de transgressão; maquinizar o corpo, no sentido de ajustá-lo ao cumprimento do dever legitimado; esterilizar-se como forma de controlar o número de filhos estipulado como adequado para a época e o momento social; impedir o corpo de procriar, caso este não seja o desejo do homem; assumir totais responsabilidades pelo sexo e perfeição do/a filho/a que cria.

Mas como a mulher foi construída, no sentido de instrumentalizar e deixar instrumentalizar seu corpo dessa maneira? Para compreender-se isso é preciso considerar a reprodução social da produção biológica.

 

Reprodução social da produção biológica: o processo de construção da mulher-mãe

Ser mulher está biológica e socialmente tão relacionado ao ser-mãe, que se caracteriza quase uma heresia pensar a mulher-mãe como binômio de uma construção. E é também esse o sentido da ideologia.

Primeiramente, a ideologia apresenta uma visão deturpada da própria maternidade, através de histórias romanceadas do papel de mãe que não se sustentam na realidade. Essa visão é difundida pelos agentes legitimadores da ideologia patriarcal, que podem ser homens, mulheres, especialistas, educadores, entre outros, que transmitem a noção de maternidade como algo tãosomente natural. Essa noção pressupõe a igualdade de todas as mulheres-mães, negando as condições socialmente determinadas num contexto de classes sociais assimétricas.

Há, também, uma intensa legitimação do acontecer da maternidade, via meios de comunicação de massa alicerçada na naturalização, eternalização e normatização (modos e estratégias para análise da ideologia, derivadas da Metodologia de Hermenêutica de Profundidade de Thompson, 1995).

As mulheres apresentam-se condicionadas a esse papel desde a infância, mas não somente nela, todo seu desenvolvimento é norteado para esse condicionamento, mesmo que ela nunca chegue a ser mãe, tal como observa Belotti (1987). O que ocorre é que na infância tendem a se estruturar bases sólidas de construção e diferenciação de gênero, a serem reforçadas no decorrer da vida. A partir da infância, nota-se que as intervenções mostram-se mais sutis, mas nem por isso menos acirradas, em nível de cobranças quanto à execução desse papel.

Da infância, as mulheres-mães lembram brincadeiras de bonecas, cuidados dos/as irmãos/ãs e, freqüentemente, trabalhos como cuidadoras de outras crianças, dependendo de suas condições sociais. Em comum, fica-lhes determinado o futuro papel a desempenhar.

A aprendizagem de tornar-se mulher-mãe, no entanto, enquanto processo, surge relegado ao esquecimento em suas vidas adultas, prevalecendo apenas o conteúdo que ele transmite de que ser mãe é uma condição natural. Essa é uma possibilidade explicativa ao fato das mulheres atribuírem ao nascimento de seus/suas filhos/as uma causa mágica, como conseqüência de algo não localizável, ou a crença numa vontade eterna de serem mães, seguida da necessidade do cumprimento de um dever para com a vida que extrapola sua própria existência.

Assim socializadas, essas mulheres tornam-se socializadoras dos/as filhos/as, o que se constitui como uma de suas mais importantes funções. A começar pela preferência da maioria das mulheres por filhos homens, até a imposição das cores que compõem ou não os enxovais, também elas vão reproduzindo relações assimétricas de gênero.

Acreditam na maior facilidade de criar filhos homens e justificam-na pela liberdade de ir e vir que eles detêm, apesar das meninas serem consideradas mais dóceis; continuam atreladas às convenções das cores e para isso não apresentam justificativas plausíveis. O certo é que seus filhos homens não se vestem de cor-de-rosa, mesmo que não tenham mais nada para vestir.

Inserido no contexto social, constata-se um itinerário comum à construção das mulheres-mães composto por duas vertentes complementares - biológica e histórica - que, por sua vez, também se ramificam. A vertente representada pelo ritual biológico é cadenciada em três etapas que obedecem a uma seqüência básica: a constatação do nascimento de uma menina, o tornar-se mulher pelo imperativo biológico da menstruação nos dizeres de Paiva (1990) e a maternidade. Esse ritual, ideologicamente naturalizado, perpassa a vida das mulheres independentemente de sua concretude no real ou permanência em nível do imaginário.

Paralelamente ao ritual biológico, encontra-se o itinerário histórico da reprodução biológica. A vertente histórica se compõe de etapas básicas, variáveis em termos de constância e intensidade, de acordo com as condições sociais e econômicas que rodeiam cada mulher. São elas: mãe das bonecas; mãe dos/as irmãos/ãs; mãe dos/as filhos/as de outras mulheres (como forma de trabalho das mulheres com poucos recursos financeiros); mãe dos/as próprios/as filhos/as; mãe dos/as netos/as.

Essa vertente que compõe o itinerário de construção da mulher-mãe é infinita em termos de duração, pois as mulheres são construídas para serem mães, indispensavelmente, em detrimento de qualquer outra atividade que possam vir a desempenhar. Assim, suas vidas são regidas pela maternidade. Primeiramente, com os ensaios e a possibilidade de virem a ser mães, depois com o ser mãe propriamente dito e o ser avó, enquanto reedição da maternidade.

Ao tornarem-se mães, as mulheres reeditam a maternidade com dimensões imaginárias que elas próprias constroem. Englobam condicionamentos menos rígidos para com as crianças e maior liberdade de expressão para si mesmas, embora isso não signifique, necessariamente, que resgatem, na concretude da realidade, a visão romanceada da maternidade que lhes conferiram na infância.

Até aqui, evidencia-se que para a ideologia patriarcal na reprodução das relações de gênero, um corpo de mulher tem o dever de gerar filhos e, para que isso aconteça, a mulher-mãe é construída sob vários modos de operação da ideologia. Mas ser mulher-mãe, simplesmente, não é considerado, necessariamente, resultado ideológico. Para que assim o seja, a ideologia atrelada a um modelo específico de mulher-mãe que norteia todas as mulheres-mães, de acordo com interesses patriarcais vigentes para cada época e local. No conjunto de mulheres, nota-se que isso se dá, de forma mais acirrada, em relação ao planejamento familiar, ao amor materno, à mulher-mãe em relação ao trabalho e a um ideal de mãe.

 

Mãe: modelo produzido em série

O planejamento familiar constitui-se como um problema de grandes proporções, pois a dominação patriarcal é responsável pelo não-planejamento familiar, como evidenciam estudos de autores como Guertechin (1985) e Pacheco (1983). Em relação a ele, o que há, como prática rotineira na vida dessas mulheres, é a aprendizagem do uso de pílulas anticoncepcionais com a irmã mais velha, a amiga, a vizinha ou a balconista da farmácia. E é a isso que se reduz o planejamento familiar, no início da fase de procriação da mulher. Após terem o número de filhos que acreditam "suficientes" ou possíveis de criar, conforme avaliação masculina, ou estarem numa idade que simplesmente não os querem mais, ou que cientificamente não devem mais tê-los devido aos riscos, as mulheres apelam para a esterilização ou ligadura tubária. Desta forma, é evidente que a mulher é objeto de manipulação e não sujeito de seu próprio corpo

A ideologia presente na conduta das mulheres, em torno do controle da natalidade, é legitimada via universalização, que faz do planejamento familiar um arranjo institucional com diretrizes comuns a todas as mulheres, sem considerar suas singularidades. Não é raro que a mulher se iluda, acreditando que é sujeito de uma decisão que não é sua, esmere-se ao máximo no cumprimento dela e acabe culpando-se caso alguma falha ocorra. A prática de evitar filhos é da mulher, embora a decisão quanto ao número e momento de tê-los seja masculina.

Adoção de filhos e aborto são duas questões atreladas ao planejamento familiar e em relação a elas apareceram divergências em termos de classe social.

A adoção de filhos configurou-se mais como discurso, entre as mulheres melhor providas financeiramente, e mais para prática comum, mesmo que nem sempre oficializada, entre mulheres menos providas financeiramente. Em relação às últimas, não só a prática de adoção é maior, mas também a prática de doação dos/as filhos/as. Esse intercâmbio de crianças aparece restrito ao âmbito familiar, o que torna comum o fato de crianças serem criadas pelas avós ou tias.

O aborto é repudiado pelas mulheres mais pobres da pesquisa, que julgam sua prática com severidade, não só como filosofia de vida mas, principalmente, pela preservação da saúde da mulher. Entre as mulheres mais abastadas há divergências. Elas acreditam no aborto como opção, dando-lhe uma conotação de liberdade, no entanto não o analisam como decorrência de relações assimétricas e o legitimam mesmo que praticado em "matadouros", expressão utilizada como referência à precariedade dos locais e serviços na prática de aborto.

O amor materno, por sua vez, constitui-se numa das mais delicadas facetas no entendimento da ideologia em relação à mulher-mãe, pois para ele converge a dimensão santificada atribuída à maternidade. Embora, constantemente, propagado como algo dado e imutável entre as mulheres-mães, ocorrem algumas peculiaridades a seu respeito. Ele dinamiza-se, basicamente, de três maneiras: amor natural incondicional, amor investimento e amor construído pela relação.

É possível que realmente exista e se perpetue um amor materno incondicional?

O certo é que esse é um dos maiores tabus que circundam a maternidade e em Badinter (1985) se encontra uma fonte de amplo e profundo estudo a respeito. As mulheres, em geral, sequer ousam pensar na possibilidade de sua ausência. E as que ousam, fazem de tudo para camuflá-la ou são literalmente convencidas por outras do contrário. Todo sofrimento daí resultante é sufocado por essas mulheres e edificado na forma de amor obrigatório, a fim de que se mantenha o status quo dominante. O amor por um filho, no entanto, é uma construção que se alicerça na relação estabelecida e não na imposição.

Existe discordância quanto à verdade do amor estendido a filhos/as ilegítimos/as ou sociais que, por um ou outro motivo, fiquem sob a guarda de uma mulher-mãe, juntamente com seus/suas filhos/as legítimos/as ou biológicos. Essa discordância não passa pela relação estabelecida, mas pela definição do que é ser mãe. As mulheres que criam seus filhos, acreditam que o ser-mãe se fundamenta no criar; já as mulheres sem filhos, acreditam que o ser-mãe se fundamenta no gerar a criança.

Assim, ideologicamente, ser mãe não é só gerar, mas também não é só criar, o que torna a mulher-mãe vulnerável à ideologia: sem filhos, está em falta com sua natureza de mulher, uma vez que não cumpriu sua função biológica; com filhos, fica comprometida como exclusiva criadora.

O amor materno também é investimento à espera de retorno. No contraste entre filhos/as que mandam e filhos/as que salvam, fica caracterizada a dupla mãe-filho/a como mais importante do que a dupla homem-mulher. Mulheres-mães se submetem à dominação nas relações de gênero que se estendem à relação com filhos/as, no tocante a pequenos cuidados pessoais e domésticos, à espera de que na doença ou na velhice, eles venham a servir-lhes de amparo e companhia.

Já o amor fundamentado na relação não isenta a mulher de sofrimento, mas gera alegria, satisfação e a faz lutar por algo que construiu como sujeito.

No tocante a trabalho, a mulher é sujeitada a um modo de operação da ideologia que age de forma a atribuir-lhe exclusiva responsabilidade por uma demanda que não é somente sua; trata-se da culpabilização. O fato das mulheres terem consciência da necessidade de seu trabalho não implica diminuição de seu sentimento de culpa, porque a idéia que prevalece é a da mulher-mãe que abandona os/as filhos/as para ser mulher-trabalhadora, sinônimo de transgressão às leis naturais.

Mesmo para as mulheres que exercem atividades as mais diferenciadas possíveis, a maternidade ainda se caracteriza como a atividade mais sublime de suas vidas. E, algumas vezes, não só é referida pela linguagem do trabalho, "mãe de tempo integral" e "dedicação exclusiva ", como é vivenciada como sendo o próprio trabalho.

A mulher-mãe incorpora duas dimensões, a mãe real e a mãe ideal, sendo o choque entre ambas inevitável.

Entre os acontecimentos que mais ressaltam a ideologia patriarcal, encontram-se referências de mulheres quanto à culpa incutida por seus parceiros diante da acusação de incapacidade de gerarem filhos do sexo masculino, sendo que os parceiros se sentiam, inclusive, no direito de blasfemar contra o nascimento de filhas mulheres.

Na busca de compreensão dessas abordagens, fica clara a existência de um modelo padrão que se impõe à mulher-mãe, assimetricamente, resultante do uso combinado entre os modos de unificação e dissimulação (Thompson, 1995), que a ideologia faz para se expressar. Por um lado, as mulheres são massificadas na busca de padrões que suplantam suas singularidades; por outro lado, o desrespeito e a dominação que daí emanam são escamoteados.

 

E o que dizer das resistências?

As resistências ainda se mostram restritas. Em termos de qualidade, pelo fato de que muitas ações entendidas como resistentes, apenas mascaram a dominação sem que haja criação de novas maneiras de se relacionar. Em termos de quantidade, porque atingem uma parcela ínfima do universo feminino conferindo às relações de maior igualdade um recorte muito pequeno na sociedade.

Isso resulta da utilização que a ideologia faz da dissimulação, propagando um atraente discurso que leva as mulheres a crerem que estão mais emancipadas, mais reconhecidas profissionalmente e mais liberadas do que, em geral, realmente estão.

É no próprio lar que as mulheres tramam os fios da resistência, conquistam os/as filhos/as como aliados/as e usam de chantagem emocional para aproximá-los/as ou afastá-los/as dos pais.

Em relação à ciência, criam saberes populares que são passados de mulher para mulher. São saberes envoltos em um discurso peculiar, carregado de metáforas, personificado pelas benzedeiras, que dificilmente são confiados aos ouvidos masculinos. Nem sempre se caracterizam como resistências à imposição de procedimentos científicos, mas como substitutos deles, tão escassos entre as mulheres mais pobres.

De modo geral, a resistência ainda parece restringir-se mais ao nível do verbal, da ameaça, do ensaio, nem sempre passando à ação, propriamente dita.

Diante do aflorar de resistências, as mulheres, de modo geral, são taxadas como aquelas que desempenham um papel piegas ou um discurso de vítima. Tal atribuição pode ser considerada uma forma simbólica de justificação da ideologia patriarcal, que assim rotula essas mulheres, no sentido de enfraquecê-las.

As mulheres trazem as normas regentes de sua conduta tão bem internalizadas que elas próprias vão em busca do ato subversivo que justifique o castigo imposto pelo poder patriarcal, seja ele real ou imaginário.

Os resultados desta pesquisa mostram-se concretamente dolorosos. Contudo, na dialética da vida, existem algumas saídas. Muitas coisas já estão sendo feitas. No âmbito das universidades, pesquisas, grupos de estudo e livros sobre gênero, são alguns exemplos. O que se evidencia como necessidade é que essas ações signifiquem, cada vez mais, ações coletivas, integradas ao mundo social como um todo. E que elas sirvam para denunciar as relações que acarretem algum sofrimento.                                           ■

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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