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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.15 no.1-3 Brasília  1995

 

O espaço e o tempo feminino num dia qualquer - Belém 1960

 

 

Luzia Miranda Álvares

Professora Adjunto-4 do Depto de Ciência Política - CFCH/UFPA. Pesquisadora da temática Mulher e Relações de Gênero e Coordenadora do GEPEM/DCP/CFCH/UFPA. Crítica de cinema de "O Liberal" - Belém, PA

 

 

Embora até hoje incipiente, não se pode dizer que o cinema paraense inexista. Alguns filmes realizados têm apresentado esparsas demonstrações, por vezes corajosas, de cineastas conterrâneos esforçados em usar a linguagem das imagens para captar aspectos documentais e/ ou ficcionais da sociedade, em épocas variadas. Libero Luxardo, paulista de Sorocaba, radicado em Belém desde a década de 40, insere-se entre os que já tentaram fazer cinema no Pará. Com uma obra premiada e clássica (Alma do Brasil - A Retirada da Laguna/ Mato Grosso/ 1931), pode ser visto competindo com alguns cineastas da sua época. Introduziu-se no meio paraense através da profissão que abraçara no sul, realizando documentários. Os filmes de ficção vieram depois, mas os dois gêneros usaram como background, a místico-exótica Amazônia. Uma de suas primeiras iniciativas cinematográficas para fixar-se no Pará foi Amanhã Nos Encontraremos, filme inacabado realizado na década de 40. Na segunda Interventoria de Magalhães Barata, o cineasta procurou registrar as benfeitorias governamentais dessa fase populista da política paraense. Entre os dados recolhidos da imprensa deste período, há notícias sobre os projetos a serem desenvolvidos por ele. Um outro dado muito significativo é dado pelo pesquisador Alfredo Wagner sobre a existência, na Região do Arari, de um caboclo que teria sido ator de filmes de Luxardo.

A cinebiografia mais recente do cineasta aponta os seguintes filmes: Um Dia Qualquer (1962), Marajó, Barreira do Mar (1964), Um Diamante e Cinco Balas (1966) e Brutos Inocentes (1974). Da fase partidária e política, ressalta-se o documentário O Enterro de Magalhães Barata (1959), entre os inúmeros que realizou ao registrar as obras oficiais do governo baratista.

O resgate histórico da passagem de Libero Luxardo pelo Pará está merecendo a atenção do pesquisador de cinema. Por ora, meu interesse em contextualizar sua obra deve-se a um tópico instigativo a ser desenvolvido: qual o olhar de Libero sobre as mulheres paraenses da década de 60 no filme Um Dia Qualquer ?

O tema pretende recobrir uma fase do cinema paraense, momento em que as mudanças culturais e sociais estão fazendo-se no mundo. Objetiva pensar também, nestes cem anos de cinema, as contribuições a ele dadas pela cultura paraense.

 

Maria de Belém: A Imagem da Cidade e da Mulher

Pesquisando os jornais paraenses da década de 60, verifica-se que, na cidade de Belém, a orientação social favorecia a presença de classes sociais distintas. O corte desenvolvido por Luxardo em Um Dia Qualquer vai promover esta diferenciação nos limites que impõem a representação da base material da riqueza, como: os trajes, as edificações, os espaços de circulação urbana, as condições vivenciadas pelas pessoas.

O corifeu imaginado para representar esta diferenciação e as características em que se situa Belém, enquanto cidade Amazônica, é o protagonista do filme, Carlos (Hélio Castro), de classe média, um tipo que perdera a esposa e, desesperado, percorre a cidade em busca de alento após o enterro da amada. Em meio ao flash-back que resgata o primeiro encontro e o amor que nasceu entre ambos, surge uma linha divisória entre as imagens passadas (encontro do par num cemitério, reencontro em outros locais da cidade, intimidade no casamento) e o percurso desenvolvido no presente. Desta trajetória sem rumo, após o enterro da esposa, emerge o cotidiano da cidade, num dia qualquer. Lugares e formas culturais da região, além de tipos exóticos, surgem vinculados ao drama do viúvo. Nos bares da moda, nos tipos de transporte urbano, nas imagens de parques e igarapés, na feira do Ver-O-Peso e nas danças do Boi Bumbá, surgem figuras femininas que norteiam a estória, dando vida às lembranças tristes e momentos alegres do protagonista.

Maria de Belém (Lenira Guimarães) é a esposa amada, relembrada através do flash-back, falecida ao nascer do primogênito. Seu tipo revela uma morena alta, esbelta e elegante. Demonstra ser letrada, expressando-se com facilidade e tendo clareza sobre os fatos da atualidade. Supõe-se que o par tem as mesmas raízes de classe. O romance entre eles inicia-se num cemitério. Os encontros posteriores - ocasionais primeiro, estabelecidos depois pela relação de namoro até o casamento - dão-se na área urbana da cidade, nos lugares de circulação dos jovens de sua classe, perfeitamente demarcados: a praça (onde também as crianças brincam), o ônibus (onde aglomerado limita a intimidade), as ruas centrais (onde estão situadas as igrejas e um tipo de comércio mais sofisticado com ênfase aos magazines). O lugar da moradia, após o casamento, estabelece um reforço à classe a qual pertence o casal e ao cotidiano da mulher casada dessa classe: uma edificação expondo sofisticada arquitetura, com arranjos ornamentais sobre os móveis e uma decoração impecável. As atitudes formais na relação entre o casal revelam os limites do espaço e da cultura determinantes de comportamentos diferenciados. O homem trabalha fora, a mulher fica à sua espera, assumindo papéis que a lógica do cotidiano naturalizou enquanto reveladores da submissão e do domínio entre os dois gêneros.

E os demais femininos, como estão situados no filme ?

Enquanto Maria de Belém revela-se um tipo feminino nos moldes de um comportamento instituído, as demais mulheres circulam em espaços e tempos diferentes. Há um corte sugestivo ao espaço e ao lugar da mulher livre. A cena evoca uma viagem de ônibus entre o par protagonista. A câmera distancia-se deste e segue um carro particular. Inicialmente, ouve-se um diálogo indecifrado entre um casal; depois, a câmera aproxima-se e toma-os em médio plano e depois em close. O carro segue uma estrada deserta. O casal está bebendo e depois acaricia-se (não passa dos beijos e toques). Um novo corte e ouve-se uma música estridente com as imagens do par fora do carro. Pixinguinha dá o ritmo para a jovem fazer strip-tease, jogando no rosto do namorado as peças íntimas de roupa. Um outro corte e eles surgem deitados na relva. Em seguida atiram-se para um banho no igarapé. Esse tipo de mulher é excluído dos espaços por onde transita Maria de Belém. O peso do tempo fílmico expõe um outro tipo feminino, tratando-o no mesmo nível dos dois outros. E o de uma jovem estuprada. O espaço é um bar situado numa praça. O tempo é a madrugada. O tipo circula nos inferninhos daquela época. Embora acompanhada de um rapaz, este tipo tende a ser visto infringindo as normas do comportamento de seu gênero. A hora de chegada no bar, a dança sensual e provocativa, a bebida que ingere, estimula dois elementos da juventude transviada belenense a exigir direitos aos excessos. E o estupro é o caminho.

 

Um Tempo de Normas e de Revolução

A década de 60 marcou as mudanças mundiais sobre a condição feminina. Os ecos da leitura de O Segundo Sexo, de Simone Beauvoir, detinham os clamores das mulheres de duas gerações passadas. A norte-americana Betty Friedan esboçava seu grito de alerta às formas de repressões sofridas, milenarmente, pelas mulheres condicionadas por comportamentos impostos e assumidos, enquanto o movimento feminista liderava novas conquistas. Criara-se um modelo de mulher e estabeleciam-se as bases para ser seguido. O discurso da moral sexual apontava o casamento como a aspiração da mulher virgem, interpondo-se como o grande propulsor dos anseios femininos. E a norma ética procurava valorizar a submissão a essas imagens das mais certinhas, assépticas, para as quais o pudor seguia o caminho da valorização porque as coisas do sexo deixavam de ser ditas.

Um Dia Qualquer reproduz imagens femininas do modelo instituído numa Belém que, apesar de ter sido sacudida anos antes (década de 1910-1920) por tipos irreverentes, facilita pensar na exclusão dessas insubmissas. E quando estes tipos aparecem ( a jovem striper) são punidos com violência (o estupro praticado contra a jovem que extravasava sua sensualidade num espaço público, na madrugada).

Maria de Belém, a personagem, morre por conta de um sonho acalentado pelo seu tipo (a maternidade esperada). A Maria de Belém do Grão-Pará gravita e engravida sob as ruas marcadas de tipos irreverentes (as prostitutas), de tipos sofridos (a mulher que fala da fome dos filhos numa parada de ônibus), de tipos condicionados pelo exótico (as mulheres seminuas das sessões de umbanda). A busca do corifeu por um tipo igual ao da morta, ao circular em todos os cantos da cidade, onde esta teria sido feliz, não foi positiva. É preciso chamar a morte para salvar o sonho desfeito. Morte que é sinônimo de exclusão num tempo sem tempo e sem espaço para os seus tipos. É a morte da morte que o próprio tempo já vaticinara. Das normas à Revolução resta o corpo inanimado de um corifeu amante da morte.