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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.15 no.1-3 Brasília  1995

 

RESENHA

 

Psicanálise e análise do discurso

 

 

Julio Groppa Aquino

Doutor em Psicologia Escolar USP Professor da Faculdade de Educação USP

 

 

Matrizes institucionais do sujeito psíquico de Marlene Guirado

Depois de Instituições e Relações Afetivas (Summus, 1986) e Psicologia Institucional (EPU, 1987), Marlene Guirado agora nos presenteia com seu novo livro Psicanálise e Análise do Discurso: Matrizes Institucionais do Sujeito Psíquico, editado pela Summus.

Se, no primeiro caso, a autora propunha um momento concreto de interlocução da Psicologia com uma vertente da Sociologia e, no segundo, a contraposição de sua proposta teórica aos legados de Bleger e Lapassade, Marlene agora introduz uma discussão com dois outros campos do conhecimento - a Psicanálise e a Análise do Discurso (ou simplesmente AD), difundindo e sedimentando cada vez mais sua proposta de uma leitura institucional, nos trabalhos com Psicologia, quer na pesquisa acadêmica, quer nas intervenções em outras instituições.

Esta perspectiva assenta suas raízes nas diversas frentes de atuação concreta da autora, ou melhor, deriva de seu fazer profissional -desde sua atuação enquanto psicoterapeuta, até a docência no IPUSP, passando pelos Conselhos (Regional e Federal) de Psicologia -cujos pontos organizadores são brevemente historiados na Introdução do livro.

Engana-se o leitor que, a partir do tema-título, supuser um texto hermético, dirigido apenas aos iniciados em Psicanálise ou Linguística, ou então, pontilhado por conceitos estritamente técnicos de ambas as disciplinas.

Trata-se de um texto claro e muito bem amarrado. E se digo que a autora nos presenteia com ele, isto se deve ao fato de tanto seu conteúdo quanto sua forma, seu estilo, serem extremamente instigantes.

Isto se evidencia, por exemplo, quando a autora destaca, ainda na Introdução a dimensão propriamente institucional do trabalho psicanalítico. Vejamos:

"Mas o fato é que a instituição psicanalítica só se faz a cada situação concreta em que alguém lhe dá crédito no lugar de paciente. A clientela virtual torna-se real e um agente básico aciona, naturalmente, sua compreensão a respeito do que ouve, traduz esse discurso nas palavras de que dispõe para ...ouvir. (...) Esta impecável tradução simultânea não falseia qualquer realidade, como se poderia julgar de má-fé. Trata-se da inevitável apropriação pelo discurso psicanalítico daquele que é o discurso do cliente respeito de si mesmo. Na transferência que ele faz dos cuidados de si para que um outro cuide dele, está autorizada a apropriação, ainda que disso não se dê conta qualquer um dos parceiros em questão. É o momento 'de largada'. É a instituição psicanalítica fazendo-se pela ação imediata de seus atores. É a instauração do jogo cujas regras, como se pode ver, vão muito além, ou melhor, estão aquém daquelas conhecidas como enquadre. (...) É o acontecer dessa instituição, sendo assim seu método e objeto garantidos, reproduzidos e legitimados. Nenhum privilégio da Psicanálise, diga-se de passagem" (p.12-13).

Como se pode atestar, Marlene Guirado produz um texto, que faz pensar, remetendo-nos sempre ao âmbito e ao objeto institucionais, enquanto elementos estruturantes das relações que sustentam (e são sustentadas por ) determinada instituição - inclusive a Psicologia enquanto ciência e profissão. Um texto de fôlego, sem dúvida. Fôlego porque Marlene nos convida (psicólogos ou não) a considerar uma série de questões implicadas no processo discursivo. Assim, segundo ela, uma certa compreensão de o que seja a relação entre discurso e subjetividade estará sempre presente acionando e instrumentalizando a escuta analítica.

Com base nisso, defende a tese de que é possível e necessário ter à mão, e no pensamento, tanto uma teoria quanto uma metodologia eficaz e factível para o trabalho psicológico cujo esquema se estenda desde o prisma clínico até o acadêmico. Vejamos novamente:

"As questões que aqui se colocam, com justa razão e mormente por quem procede às pesquisas científicas e aos trabalhos intelectuais, são de duas ordens fundamentais : (1) a da necessidade de se procederem a recortes, no nível do pensamento, quando do estudo de fenômenos que não se mostrem exclusivamente do domínio de uma ou outra ciência, como é o caso da fala, ou mais adequado dizer, do discurso; (2) a da necessidade de se definir que sujeito é esse sujeito da fala, isto é, uma vez posto o recorte a delimitar o âmbito das afirmações teóricas que se possa fazer, de onde procede a autoria do discurso, se de um sujeito tido como singular ou de um sujeito sociolingüístico"(p.15).

A partir desta problemática, Marlene coloca em revista as duas grandes frentes teóricas que ocupam o título do livro e que, inseridas em perímetros epistemológicos distintos, ocupam-se do campo discursivo como lócus de trabalho, fundando lugares específicos para o sujeito e para o analista.

Contornando as irredutibilidades de cada enfoque, bem como suas especificidades e diversidades, Marlene suplanta uma dicotomia muito em voga nos tempos atuais: a da singularidade versus universalidade do sujeito e (seu) discurso, propondo como eixo norteador de sua proposta o conceito de sujeito psíquico em suas matrizes institucionais (como aponta o subtítulo do livro).

Confrontando a abstração a que ambas as disciplinas remetem o sujeito concreto, Marlene sustenta a tese de um sujeito do e no discurso, constituído nas (e constituinte das) relações institucionais concretas. Segundo ela, "singular, mas não como estritamente o quer a psicanálise , e sim, como se pode esboçar em pontos de estofo de representações e afetos, nas malhas ou nas redes das relações que se instituem concretamente. Sujeito que só se pode dizer psíquico porque institucional".

Eis aí, a nosso ver, o grande avanço que este livro traz em termos de perspectivas ao nosso trabalho enquanto ciência e enquanto profissão; avanço este instrumentalizado por uma estratégia fecunda e genuína de compreensão da prática psicológica "do divã ao computador", conforme ela.

E não tarda a aparecer as apresentações de situações concretas que demonstram a viabilidade de suas idéias. Tanto em pesquisas como no atendimento analítico, a autora ilustra a possibilidade de se falar em singularidade psíquica plasmada nas relações e instituições discursivas. A análise de Pedro é exemplar nesse sentido, na Parte III do livro.

"Pedro é um rapaz de 29 anos, profissional da educação, atuando em órgãos públicos. Proveniente de família simples, do interior do Estado de Minas Gerais, mora em São Paulo há três anos. É portador de uma doença visual degenerativa que lhe permite apenas visão periférica, não focal" (p. 94).

(...)

"Procurou-me, em princípio, para supervisão de seu trabalho institucional, este rapaz de modos esquisitos de olhar e sorrir, sugerindo evasivas sem fim naquele primeiro contato. Só ao final dele falou de sua doença e aí pude entender melhor seus gestos que pareciam sempre alguns segundos atrasados em relação às palavras, também, notoriamente pausadas. Repetidas e naturalizadas exigências de acomodação.

Na segunda e terceira entrevistas, confirma-se uma demanda de análise, numa alteração de rota que não convém neste espaço detalhar mais. Se o menciono é para apontar para o espaço destinado à visão, desde o princípio, em sua fala. Isto sem que em momento algum tivesse eu desferido interpretações tais, como: a procura encoberta de uma 'super' supridora 'visão'. Fiquei apenas atenta à presença do termo na fala.

Outro importante e combinado detalhe: pela primeira vez senti curioso desconforto em não ser vista. Por disposição teórico-técnico-física, o divã é ocasião de uma posição não visível do analista. Literalmente até. No entanto, é radical a diferença entre não ser vista por um viés do dispositivo de procedimentos e não ser vista porque as vistas do paciente, mesmo à sua frente, não lhe podem dar foco" (p.95-96).

(...)

Isto está na fala sobre si, organizada aos matizes de uma história que a consciência não atinge. Inclusive aquela com o lugar definido à margem da normalidade visual. Pedro é a intimidade das alianças de significações/identificações, assim tão visíveis, ao se dizer. Sujeito de afetos e representações que não se cansam de recorrer. Subjetividade que a análise, clínica (por que não?), decalca tão Pedro...(p.98).

Também merece destaque o tratamento rigoroso que a autora dedica, na parte inicial do livro, a um texto tão precioso e não tão visitado de Michel Foucault (A Ordem do Discurso), ainda sem tradução para o português.

Na parte final do livro, são apresentados dois textos que operacionalizam a estratégia de Guirado, explicitando com clareza os recortes teórico-metodológicos operados pela autora na análise de duas situações concretas do exercício da profissão e da teoria psicológicas. Um texto, relatando a supervisão feita por ela a uma equipe multidisciplinar de saúde, na rede pública municipal (gestão Luísa Erundina). Outro, sobre a necessidade de se rediscutir o conceito psicanalítico de transferência, tendo em vista o exercício profissional nas instituições sociais diferentes do consultório bem como nas clínicas-escola de formação em Psicologia.

Por fim, vale ressaltar, este livro é mais uma prova da maturidade intelectual de Marlene Guirado, enquanto uma das principais referências na produção de conhecimento em Psicologia atualmente.

Só resta, agora, degustar a leitura. Vale a pena, sem dúvida alguma.