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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.16 n.1 Brasília  1996

 

Desinstitucionalização: a construção de cidadania e a produção de singularidade

 

 

Carmem Maria Fernandes Reverbel

Psicóloga da Secretaria de Saúde e Meio Ambiente do RS - 4ª Delegacia - Santa Maria/RS

 

 

Este trabalho pretende refletir sobre a construção de cidadania das pessoas em sofrimento psíquico através da desinstitucionalização como prática de trabalho da Psicologia, decorrente da produção de saber dos movimentos sociais de saúde no Brasil.

Está constituído de três partes. A primeira é o relato de marcos conceituais produzidos pelos movimentos sociais de saúde e contidos nos Relatórios Finais das Conferências Nacionais de Saúde e de Saúde Mental. Na segunda parte é relatada a prática do trabalhador de saúde mental em um Hospital Psiquiátrico, complementada com considerações teóricas mais específicas acerca da prática psicológica. Já na terceira e última partes são destacadas algumas considerações sobre a validade e a viabilidade dos conceitos e propostas criados pelos movimentos sociais denominados de Reforma Sanitária.

 

A rede pública de saúde no Brasil

Na intenção de problematizar a construção de cidadania das pessoas com sofrimento psíquico no Brasil desde a perspectiva da prática psicológica será apresentada, inicialmente, a trajetória dos movimentos sociais de saúde e a importância da participação dos trabalhadores de saúde mental na construção deste processo. Neste sentido, trabalhar-se-á a partir dos Relatórios Finais das Conferências de Saúde Mental considerando alguns marcos destes movimentos sociais em torno da Reforma Sanitária.

Na VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS) foram discutidos os temas "saúde como direito", "reformulação do sistema nacional de saúde" e "financiamento do setor", sendo aprovado o seguinte conceito de saúde. "A saúde não é um conceito abstrato. Define-se no contexto histórico de determinada sociedade e num dado momento de seu desenvolvimento, devendo ser conquistada pela população, em suas lutas cotidianas. A saúde é resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde. E assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida"(VIII Conferência Nacional de Saúde p.1). Para a garantia, pelo Estado, dessas condições dignas de vida e de acesso universal aos serviços de saúde esta Conferência aprovou que a reestruturação do sistema deveria resultar na criação de um Sistema Único de Saúde, o SUS.

Por outro lado, a IX Conferência Nacional de Saúde, realizada em agosto de 1992, associava o quadro sanitário vivido pela população brasileira a uma falta de cuidado com a vida: baixa expectativa de vida, alta mortalidade infantil, reincidência de doenças já tidas como controladas, elevado número de acidentes de trabalho, as pessoas em intenso sofrimento psíquico, a miséria e a violência. A esta situação, associou-se a "doença" do sistema de saúde, que foi caracterizada pela ênfase nas ações curativas e hospitalares e pela má qualidade do atendimento do ponto de vista técnico e de relações humanas, que veio intensificando o desrespeito à ética e ao interesse público decorrentes de um projeto neoliberal de governo.

Assim, esta Conferência concebeu a "saúde como qualidade de vida". Para tanto, foi discutida 'a organização dos serviços em um sistema democrático comprometido com as necessidades da população'. É também verificada a distância entre os princípios conquistados pela sociedade- e expressos nas leis- e a dura realidade vivida pelas pessoas, evidenciando a falta de vontade política do Governo Federal na implantação do SUS no país. Contudo, o movimento pela Reforma Sanitária Brasileira propôs a criação de um Sistema Único de Saúde cujas ações e serviços seriam públicos, gratuitos e com a possibilidade da complementação do setor privado, se se materializando através da universalidade do atendimento, da integralidade das ações e da regionalização ou distrito sanitário. O SUS foi, então, apresentado como proposta de democratização da saúde através da descentralização política, administrativa e financeira, com a gestão realizada pelos municípios, num processo denominado de municipalização da saúde, aqui entendida como transformação de poder no sistema de modo a construir processos emancipatórios. Nesta proposta a democratização da gestão propugnava a criação de Conselhos Municipais de Saúde, com a participação de 50% de usuários, 25% de trabalhadores de saúde e 25% de prestadores de serviços e de governo.

Na intenção de focalizar nossa análise na Saúde Mental podemos perceber que a I Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM), realizada em 1987, afirma a implantação da Reforma Sanitária Brasileira conforme os princípios da VIII CNS e aprova a redução progressiva de leitos em hospitais psiquiátricos e sua substituição por leitos em hospitais gerais, ou por serviços alternativos à instituição psiquiátrica. Diz, criticamente, que o papel da saúde mental "tem consistido na classificação e exclusão dos "incapacitados" para a produção e, portanto, para o convívio social" (I Conferência Nacional de Saúde Mental, p.2). A cidadania, neste contexto, foi considerada como a "participação dos indivíduos em todos os aspectos da vida social e no acesso dos mesmos aos bens materiais e culturais da sociedade em seu determinado contexto histórico" (IDEM, p.10).

Por sua vez, a II Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em dezembro de 1992, ampliou a questão, colocando em discussão a segregação das minorias, como os meninos de rua, os negros, as mulheres, os pobres, os velhos, os profissionais do sexo, os portadores do HIV, os que padecem de sofrimento psíquico, os portadores de necessidades especiais e os presos. Esta Conferência teve como tema "A Reestruturação da Atenção em Saúde Mental" e como conceitos acionadores a Atenção Integral em Saúde e a Cidadania. Dentro deste processo de reestruturação foi considerado imperativo "efetuar a desinstitucionalização de todas as instituições com características manicomiais, tais como: asilo para idosos, instituições para menores, escolas e classes especiais, instituições penais e outras."

Para isto, a II CNSM aprovou a criação de uma Rede de Atenção Integral em Saúde Mental em substituição ao Hospital Psiquiátrico. Para tanto, propôs a criação de serviços diversificados como: atendimentos em unidades básicas, centros de saúde e ambulatórios, leitos de saúde mental em Hospital Geral, emergência psiquiátrica em Pronto-Socorro Geral; Centros de Atenção Psicossocial; pensões, centros de convivência e cooperativas de trabalho. Estas ações foram consideradas como dispositivos sanitários e socioculturais, que deveriam ser desenvolvidos nos serviços das redes pública e privada de saúde através de gestões colegiadas e paritárias entre usuários e funcionários.

O outro conceito acionador, a cidadania, foi considerado na II CNSM como "uma construção histórica resultante das problematizações concretas que cada sociedade produz" (II Conferência Nacional de Saúde Mental, p. 19). Assim, os usuários foram definidos como sujeitos sociais, tornando-se imprescindível uma mudança do poder contratual dos mesmos em sua relação com o Estado e a Sociedade. Foram discutidos os direitos dos doentes mentais e aprovada a elaboração da Carta dos Direitos dos Usuários no Brasil, como pacto entre as entidades civis e movimentos sociais, servindo de referência para esta elaboração a Conferência de Caracas, realizada em 1990.

A II CNSM exigiu a divulgação da Lei da Reforma Psiquiátrica do Estado do Rio Grande do Sul (que "determina a substituição progressiva dos leitos nos hospitais psiquiátricos por rede geral de atenção integral em saúde mental, determina regras de proteção aos que padecem de sofrimento psíquico, especialmente quanto às internações psiquiátricas compulsórias, e dá outras providências") e também da Lei n° 9715, de 07 de agosto de 1992 (que dispõe "sobre a criação de pensões públicas comunitárias destinadas a pessoas em sofrimento psíquico e abandonadas socialmente") (Diário Oficial do Estado do RS).

A II CNSM teve como indicador de mudança a participação efetiva dos usuários na realização dos trabalhos de grupo, nas plenárias, nos debates e tribunais livres. Esta participação foi responsável pelo surgimento de uma nova dinâmica de organização de trabalho, onde os depoimentos pessoais, as intervenções culturais e a defesa dos direitos transformaram as relações e as trocas entre todos os participantes (II Conferencia Nacional de Saúde Mental, P. 8).

Neste sentido, observamos que as VIII e IX Conferências Nacionais de Saúde e as I e II Conferências Nacionais de Saúde Mental tiveram a força de ser resultantes de um processo social que envolveu milhares de pessoas em focos deliberativos nos municípios, estados e nação, fundamentais para a democratização do processo decisório das alternativas para a saúde do cidadão, sendo a expressão da vontade da sociedade brasileira de alcançar melhores condições de vida com justiça social. A presença de 4500 pessoas na etapa nacional da IX CNS pode ser emblemática dessa manifestação do compromisso do povo brasileiro com a saúde e com o projeto de desenvolvimento que deseja para o Brasil.

 

Desinstitucionalização

Após o desenvolvimento de algumas considerações sobre os Relatórios Finais das Conferências Nacionais de Saúde e de Saúde Mental, pretendemos apontar o percurso de transformações para a materialização da proposta de desinstitucionalização apontada nestes documentos, ou seja, pensar os impasses e as possibilidades da efetivação de uma nova política sanitária num trabalho cotidiano realizado em uma centenária instituição de saúde do Rio Grande do Sul, o Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP).

O trabalho em questão se refere a uma Unidade deste hospital, instalada num prédio conjugado de três andares, localizado em sua área de fundos. Nesta Unidade vivem 60 mulheres, das quais a maioria tem mais de 56 anos, sendo 25 anos o tempo médio de internação. Esta característica asilar acompanha a Unidade desde a sua criação. Portanto, o que está em questão aqui é o modo de vida das pessoas internadas que, em sua grande maioria, se converteram em moradoras do Hospital, evidenciando que a forma institucional de tratamento as levou à exclusão e ao estabelecimento de relações que reforçaram a dependência pessoal e a cronicidade, subtraindo os direitos civis e sociais destes seres humanos.

Assim, a cronicidade mostra a evidência da impotência da instituição psiquiátrica (Basaglia, 1990). Segundo este autor, a doença não é o elemento determinante da condição do doente mental, tal como o vemos em nossos asilos psiquiátricos (nível de destruição e de institucionalização), mas sim do tipo de relação que a equipe e, através desta, a sociedade estabelece com o doente (Basaglia, 1985).

A este movimento de restabelecer uma relação entre pessoas e, por isso, restituindo os direitos pessoais dos doentes é que aqui será denominado de desinstitucionalização, ou seja, um trabalho prático de identificação da violência e da exclusão institucional e subjetiva, de remontagem crítica dos conceitos, das instituições e das relações terapêuticas (Ferreira, 1992). Fazendo uma adaptação à proposta de Rotelli (1990) de transformar as relações de poder entre instituição e pacientes, através de gestos elementares, este estudo sobre o cotidiano de uma unidade asilar psiquiátrica problematizará a instituição manicomial em alguns vetores:

a)  eliminar os meios de contenção;

b) restabelecer a relação do indivíduo com o próprio corpo;

c)  recuperar a manifestação de afetividade e promover trocas sociais;

d) valorizar o gênero;

e)  reconstruir o direito e a capacidade de uso de objetos pessoais;

f)  reconstruir o direito e a capacidade de palavra;

g)  abrir as portas ou o direito de ir e vir;

h) reconstruir o direito ao trabalho.

Nas linhas de ação referidas acima é possível apresentar o trabalho desenvolvido na Unidade do HPSP desdobrado nos seguintes itens:

Eliminar os meios de contenção

Uma moradora é amarrada com tiras de algodão a uma cadeira porque saiu correndo com uma caneca na mão da Unidade até o Serviço de Nutrição, em busca de café, indo até o caldeirão. Faz isto várias vezes em uma mesma manhã. Os guardas que ficam na porta de entrada do Serviço de Nutrição, seguidamente a trazem para a Unidade. A moradora, então, começa a correr nos corredores, a agarrar e puxar as pessoas com força, a chorar, bater com a cabeça na parede, pedindo café. A mesma se expressa através de gestos, pois não fala.

A conduta de amarrá-la era freqüente. Eram freqüentes, também, informações de que os guardas da Nutrição não a estavam tratando bem e reclamações deste serviço de que a moradora estava lhes atrapalhando e que estava correndo o risco de se queimar. A equipe entrou em contato, algumas vezes, com o Serviço de Nutrição e com a Coordenação da área asilar. A discussão foi centrada na valorização de que todos eram responsáveis pela moradora e que era função da equipe, como agentes de saúde mental, ajudá-la nesta situação difícil e não rechaçá-la.

Por outro lado, na Unidade, são trabalhados em Assembléia (reunião de funcionários e moradores) os assuntos referentes a esta paciente, como queixas de que ela foge para a cozinha, de que leva as canecas e não traz de volta e sobre o fato de que ela apanha de algumas moradoras. Procura-se, sempre que ela fica muito agitada, tentar identificar o que poderia tê-la levado a se sentir assim. Sempre que vê as pessoas que são mais próximas a ela, beija-as na mão ou pega a mão destas pessoas e passa sobre sua cabeça.

Assim, a contenção mecânica se revela uma conduta típica desta cultura hospitalar, há muito tempo instaurada e que, por isso, tornou-se "natural". Para Basaglia (1965), o problema no uso da técnica é que não se pode utilizar o diagnóstico de esquizofrenia, por exemplo, para oprimir o outro. Segundo o autor o fato é que hoje se utiliza o diagnóstico de esquizofrenia para oprimir e para dar um juízo de valor sobre o outro. Entretanto, não se pode utilizar um remédio para oprimir, para que não seja alterada a calma da instituição.

Restabelecer a relação do indivíduo com o próprio corpo

Um espelho grande, que ficava na parede do térreo da unidade, foi quebrado por uma moradora em um momento de agitação, causado por impregnação medicamentosa, que lhe estava dando um enorme mal-estar físico. O que aconteceu com esta pessoa que quebrou o espelho? Por que o espelho? Como se viu?

Os corpos das moradoras carregam os sinais da forma como foram tratadas. Os cabelos da maioria delas são curtos, não só por opção, mas devido, principalmente, aos piolhos. É um círculo vicioso difícil de vencer, porque os problemas de hotelaria são graves. Atualmente, os cabelos são bem cortados, na maioria das vezes, apesar de curtos. Várias discussões aconteceram na equipe em relação à forma com que eram cortados os cabelos das pacientes, que ficavam com o cabelo tipo "escovinha" e quase raspado na cabeça. As pacientes choravam, xingavam e reclamavam do estado que ficavam os seus cabelos. Os banhos, para muitas delas, é coletivo. Algumas banham-se individualmente, no que são respeitadas, neste seu direito.

Estas situações lembram Basaglia (1965) quando ele afirma que o doente não passa de um corpo institucionalizado que vive como objeto e que, enquanto não está totalmente domado, tenta reconquistar, através de "acting-outs" aparentemente incompreensíveis, as características de um corpo próprio, de um corpo vivido recusando identificar-se com a instituição. É assim, que no HPSP muitas pacientes têm ido ao Instituto de Beleza do Hospital. Lá, cortam, pintam e lavam o cabelo, fazem as unhas e se maquiam. A maioria destas pessoas tem dentes ou tem pouquíssimos dentes. A única forma de tratamento dentário oferecido no Hospital era a extração e, num período, fizeram dentaduras. Num dado período, com uma nova dentista no Ambulatório do Hospital, as usuárias tiveram atendimento dentário como: prevenção com flúor, obturações de dentes e extração dentária. A maioria das pacientes adquiriu o hábito e gostam de escovar os dentes ou passar pasta de dente na boca.

Portanto, restabelecer a relação do indivíduo com o próprio corpo é também trabalhar um outro corpo, o que não é visível, o nosso corpo vibrátil (Rolnik, 1989), aquele que pulsa, vive e produz marcas, como as vivências corporais da primeira infância, da primeira menstruação, das gestações, dos partos, da sexualidade.

Recuperar a manifestação de afetividade e promover trocas sociais

É bonito e dá prazer entrar, de manhã, na Unidade e ver a alegria com que as pacientes nos recebem, dando-nos bom-dia, chamando-nos pelo nome ou estendendo a mão para cumprimentar-nos. É impressionante a energia que nos passam. Dentro da Unidade, todos os dias, algumas moradoras se reúnem para tomar chimarrão e conversar entre si. Ajudam-se: umas dão banho nas outras que não têm condições de tomar sozinhas, outras compram cigarros para as que não saem à rua e se emprestam dinheiro. Também brigam entre si, se abraçam, riem, choram quando morre uma delas.

Segundo Rolnik (1989), são as alianças que fizemos que nos dão uma sensação de território, de confiança, de limites, pois sem estas nos perdemos e ficamos em dificuldades. Esta autora diz que nós somos sujeitos do encontro e, portanto, pessoas sempre querendo mais afetar e serem afetadas. Desses movimentos de atração e repulsa, são gerados efeitos e os corpos são tomados por uma mistura de afetos. São intensidades buscando se expressarem, os afetos pedindo passagem e ensaiando movimentos, jeitos, gestos, palavras, também no manicômio, transformando-o do lugar zero de trocas à multiplicidade das relações sociais (Rotelli, 1990).

Canta-se parabéns quando se sabe a data do aniversário delas. A recreação do Hospital faz festas com baile e música ao vivo, normalmente em dias comemorativos do calendário anual. As moradoras gostam de música, de danças e de ir a festas. A recreação realiza caminhadas com as pacientes fora do Hospital e passeios de ônibus pela cidade.

Elas recebem semanalmente, à tarde, visita de religiosos. Aos sábados, um grupo delas é freqüentador assíduo da missa da capela do Hospital. Poucas recebem visita de familiares. Uma vez por ano, o Rotary e os religiosos levam presentes, comida e bebida para elas. Às vezes, vêm voluntários de comunidade que são amigos das pacientes e trazem roupas e conversam. Elas se mostram sempre alegres e receptivas a estes contatos.

Falar sobre essa sociabilidade no manicômio é falar da necessidade de que a afetividade e solidariedade façam parte da relação terapêutica. E a equipe de trabalho tem ajudado as moradoras a construir para seus afetos um plano de consistência no qual eles possam tomar corpo, efetuar-se? O quanto se está ajudando-as a se abrir para o mundo e a estabelecer relações? (Rolnik, 1989). A questão é, portanto, produção de vida, de sentido, de sociabilidade, ampliando a riqueza das vidas das pessoas, não separando doentes, mas, ao contrário, suscitando e multiplicando as trocas sociais e as relações. Como seres sociais, seres do encontro, da sensibilidade, não só medicação ou a palavra têm importância, também a ação tem sentido, o fazer algo juntos; como, por exemplo, funcionário e paciente saírem juntos para comprar alimentação ou cigarros para o morador, de pacientes e funcionários almoçarem juntos no refeitório do Hospital.

Também através do desenho livre, sempre presente no dia-a-dia da Unidade, há uma possibilidade para estas pessoas de novas formas de expressão. E não é unicamente o confronto com uma nova matéria de expressão: é a constituição de complexos de subjetivação indivíduo-grupo-máquina-trocas múltiplas, que oferecem à pessoa possibilidades diversificadas de recompor uma co-propriedade existencial, de sair de seus impasses repetitivos e, de alguma forma, se "re-singularizar-se". (Guattari, 1992, p. 17).

Valorizar o gênero

Temas como maternidade, sexualidade, casamento, são constantes nas conversas das moradoras. São mulheres e, como tais, nesta nossa sociedade, os assuntos referidos acima fazem parte do dia-a-dia e da vida que um dia tiveram. Dentro de um Hospital Psiquiátrico, para as mulheres exercerem sua sexualidade, terem filhos e companheiro (se assim o desejarem) é praticamente impossível. Afastadas do mundo de fora, falam das saudades que sentem dos filhos que não vêem há muitos anos ou que mal viram ao nascer e lhes foram tirados para adoção. Esperam, um dia, voltar a vê-los, esperam ir embora do Hospital e ter a sua casa. Esperam visita, esperam alta, é um constante esperar. Como "Penélopes", tecem, mas sempre os mesmos fios, a mesma impotência, o mesmo sufoco que afasta de todos os fios do mundo que poderiam estar tecendo. "Penélopes" eternamente condenadas à vontade de ficar. É como se, para existir, elas estivessem condenadas a repetir, infinitamente, esta esperança de que um dia "Ulisses" retornará e lhes devolverá a certeza de serem mulheres. (Rolnik, 1986).

Assuntos como a sexualidade das moradoras são trazidos por elas ou pela equipe. Viu-se que algumas delas se masturbavam em seus quartos e se discutiu sobre o respeito à sexualidade e sobre a privacidade de seus quartos. Conversamos também sobre homossexualismo, uma vez que elas exercem sua sexualidade de afeto, carinho e de desejo sexual que, nesta instituição, são proibidos. Como, então, estas pessoas podem expressar seus afetos e seus desejos?

Há muitas moradoras na menopausa e conversamos sobre sua nova condição feminina. Algumas, com as quais conversamos, desconheciam sobre o fato da mulher parar de menstruar a partir de um determinado período de sua vida. Elas fazem revisões ginecológicas e a prevenção do câncer. Sempre se conversa com elas sobre este exame e a importância dele para mulheres. As que menstruam normalmente dirigem-se à equipe falando sobre isto. São estimuladas e orientadas para o uso de absorventes íntimos. Na Unidade não têm moradoras com história de aborto.

A análise de gênero na instituição psiquiátrica nos remete a pensar a situação de mulheres com 25 anos de exclusão, afastadas de grande parte de suas vidas, de seus desejos; de suas relações de amizade, do lazer e da liberdade. Portanto, parece ser fundamental propiciar a estas pessoas uma existência mais rica em experiências, possibilitando a restauração e ativação de suas energias.

Reconstruir o direito e capacidade de uso dos objetos pessoais

Segundo Rotelli et al (1990), o manicômio não é uma casa: "hospitalidade" representa de modo claro que se vai ou se está no manicômio por falta de alternativa de casas, de dinheiro, de relações e de apoio, de recursos para viver e para se reconhecer no tecido das trocas sociais. Isto se confirma no HPSP.

São feitas doações de roupas pela SADOM (Sociedade Amigos do Doente Mental) e por pessoas da comunidade. No entanto, a maioria das moradoras veste-se com o uniforme do Hospital. Às vezes, o que diferencia uma da outra, nas roupas, é um pequeno detalhe que, olhando de longe, pode passar despercebido como, por exemplo, uma tira de tecido com um tope segurando os cabelos, ou um colar, ou uma pulseira. É uma forma de marcar a diferença na igualdade.

Procura-se, na Unidade, respeitar a escolha das roupas que as moradoras querem usar. Umas preferem calças compridas, outras jamais usam calças compridas, só saias (principalmente as idosas). Algumas não aceitam, de forma alguma, que se escolha a sua roupa. Já nos surpreendemos com uma moradora que escolhe uma roupa para botar e que não aceita usar se a roupa está rasgada, por exemplo. Achamos que esta não teria capacidade de escolher e vimos que, se damos oportunidade a ela, mostra que sim, que é capaz.

Vemos que a lógica do manicômio é de tornar o doente mental uma pessoa sem direitos e em relação a quem pode-se tudo ou então nega-se tudo a ele (Basaglia, 1986). Um grupo de moradoras usa roupas próprias e possuem armários com chaves para guardar seus pertences. Algumas outras, usavam roupas próprias, mas não têm armário. Estas guardam suas roupas ou embaixo da cama ou na guarda da cama. Esporadicamente, a equipe as acompanha para arrumar suas roupas, ajudar a se organizar e também escolher as roupas que são do Hospital. São situações em que é importante a presença delas, no sentido da equipe não tornar esta atividade uma possibilidade de invasão à privacidade delas. Acreditamos que, algumas moradoras, na tentativa de preservar sua privacidade e seu direito a possuir objetos pessoais mantêm consigo, sabonete, talco, absorvente higiênico, pasta de dente e desodorante que a equipe entrega a elas para uso próprio.

Reconstruir o direito e a capacidade de palavra

A questão que estamos propondo está intimamente relacionada com a capacidade dos trabalhadores em saúde mental de escutar, sentir e estabelecer encontros com as pessoas em sofrimento psíquico. ROTELLI (1990) afirma que o fundamento do ato terapêutico, como relação, está no percurso lento e cotidiano da restituição de relações que produzem subjetividades, em romper o rótulo que o diagnóstico lhe atribui pois a pessoa logo que é internada no Hospital é rotulada como doente e todas as suas ações são entendidas como doença e, portanto, esta pessoa jamais pode opor-se aos que a estão tratando.

Para romper com esta lógica é necessário criar espaços para estas pessoas falarem, para se expressarem. E, independente de qualquer interpretação psicodinâmica, temos que dar-lhes o direito de falar (Rotelli, 1990). Por isso, as assembléias, os bate-papos informais com qualquer membro da equipe ou entre elas, os atendimentos individuais e grupais. Respeitam-se sentimentos, idéias, sugestões e decisões tomadas por todos. A assembléia é um instrumento terapêutico indispensável dentro de uma Unidade hospitalar, pois auxilia na modificação da posição passiva e dependente de doente para uma participação ativa que leva a uma contratualidade.

E importante que tenhamos uma escuta que nos remeta a uma pessoa com uma história de vida e não a sintomas que levam a um quadro clínico, a uma doença e não ao doente. Trabalhar não só com a medicação (que pode ou não usar), mas trabalhar com os sentimentos, com o mundo de afetos. E valorizar uma das formas de expressão que é a palavra.

Abrir as portas ou o direito de ir e vir

As portas da Unidade foram abertas para as moradoras irem e virem a hora que quisessem, sem nos pedir permis são. Já faz alguns anos. Foi uma conquista das moradoras. Abriram um espaço de vida.

Normalmente, durante o dia, as moradoras ficam sentadas na frente da Unidade ou caminham pelo pátio do Hospital. Vêem o movimento de pessoas que passam e dos carros, tomam sol e estabelecem relações. São muito poucas as que não querem sair. Só umas poucas saem para fora do Hospital, sozinhas. Um número significativo delas saem acompanhadas, ou pela recreacionista, ou pela assistente social, ou com qualquer outro membro da equipe. Não que estas outras possam sair sós, mas é que desaprenderam a andar nas ruas e a se orientar na cidade. Assim o sujeito institucionalizado pelo manicômio espera sair deste lugar. Entretanto, quando sai, volta normalmente a ele.

Hoje, para sair fora do Hospital, ainda é preciso a autorização do psiquiatra. Isto mostra o quanto se está distante de pensar a construção da cidadania, onde a desinstitucionalização, segundo Rotelli (1990), muda progressivamente o estatuto jurídico do paciente (de paciente coagido a paciente voluntário, depois o paciente como "hóspede", depois a eliminação dos diversos tipos de tutela jurídica, depois o estabelecimento de todos os direitos civis). No HPSP o paciente vem muito lentamente se tornando cidadão. São poucas as moradoras com documento de identidade e certidão de nascimento.

Reconstruir o direito ao trabalho

Uma pequena parcela desta população de mulheres (em torno de dez) trabalha na reabilitação do Hospital e são remuneradas, ou melhor, mal remuneradas. Reclamam de seu salário tendo consciência da insignificância que recebem. Outras mais gostariam também de trabalhar ali, mas não há vagas. Aquelas trabalham na jardinagem, na costura, na limpeza, na cirurgia (preparação de gazes e outros materiais) e na recepção da reabilitação. O brilho nos olhos de uma moradora que é surda e muda, que para caminhar precisa segurar-se nas coisas e nas pessoas, quando começou a trabalhar na costura, mostra a importância do trabalho na vida destas pessoas. Rolnik (1989) diz que "fazer para os afetos é o que parece gerar brilho".

Na verdade não é a equipe que mantém a Unidade em funcionamento. Muito vem do trabalho das moradoras que buscam a comida, cuidam da rouparia, arrumam as camas, buscam e levam roupas à lavanderia, ajudam na limpeza da Unidade, levam material de enfermagem à farmácia, lavam a louça das refeições, vez por outra, cuidam da porta de entrada de Unidade. A maioria faz espontaneamente estas atividades embora, às vezes, se peça a ajuda delas para alguma tarefa. Não são obrigadas a fazer, mas fazemos grupos operativos de tarefas como terapia. Procura-se trabalhar estas situações como um espaço de vida delas.

Neste sentido, Rotelli (1990) diz que não se dá trabalho a um paciente psiquiátrico como um resultado e um reconhecimento do fato de que possa estar melhor (um direito), e o ajudamos também a fazer e a viver o trabalho. Mas não é um teste ao qual o submetemos, é um espaço de vida no qual o ajudamos a viver.

Retomemos o início do nosso trabalho, onde colocamos, como prioridade, pensar na desinstitucionalização, enquanto transformação de um modo de saber e praticar, que reforça relações de autoridade e que leva à produção de subjetividades modelizadas e à insalubridade nos modos de vida. Uma das garantias de que o processo assim desencadeado vai construindo a desinstitucionalização é a sua avaliação. Para a avaliação dos resultados destas mudanças pensamos que o que Rotelli (1990) sugere para os serviços abertos serve para o trabalho desenvolvido na Unidade. Ele acredita em serviços abertos que façam da reprodução dos direitos das pessoas sua forma de auto-avaliação e da elevação da qualidade de vida do paciente seu principal indicador de avaliação.

E importante a auto-avaliação da equipe sobre suas profissionalidades pois, como diz Guatarri (1986) "o inimigo não está só nos imperialismos dominantes". Portanto, é necessário criar espaços para os profissionais dentro de sua carga contratual, para que possam descobrir-se no seu trabalho através de grupos de reflexão, para que possam repensar suas práticas, a organização dos serviços, pesquisas e para romper com o isolacionismo institucional e subjetivo e a burocratização do trabalho público.

Atualmente, grupo de psicólogas do HPSP vem discutindo uma proposta de transformação para o HPSP, tal como estão preconizadas no Relatório Final da Segunda Conferência Nacional de Saúde Mental e nas Leis Estaduais de Reforma Psiquiátrica. Também foi experimentada em 1989 pelo Hospital Psiquiátrico São Pedro, quando as leis saíram dos papéis, pois a estrutura hospitalar foi questionada como forma de tratamento e com isso se adotou uma ação de transformação institucional.

 

Conclusões

Os movimentos sociais de Reforma Sanitária e de Reforma Psiquiátrica relataram condições de vida do povo brasileiro, a sua precária saúde, o seu desespero, a sua marginalização, a sua loucura, o seu abandono à fatalidade. "Mas esse é apenas um dos lados do que estamos vivendo. Um outro lado é o que faz a qualidade, a mensagem e a promessa das minorias: eles representam não só pólos de resistência, mas potencialidades de processos de transformação, suscetíveis, numa etapa ou outra, de serem retomados por setores inteiros das massas" (Guatarri, 1986).

Segundo o autor, são as minorias que estão colocando os problemas que dizem respeito às diferentes maneiras pelas quais os indivíduos e grupos entendem viver sua existência, pois são elas que falam a questão da subjetividade e desencadeiam processos de reapropriação dos territórios subjetivos. Além dessa atitude defensiva, as minorias consistem também em tentativas de singularizações.

Entendemos que os movimentos da Reforma Sanitária Brasileira, apesar das dificuldades de se sustentarem, são processos de singularizações pois se encontram em ruptura com a produção de vida, de saúde e cidadania do capitalismo. Criaram novos conceitos, integraram novos saberes partindo da problematização da realidade e não de "essências", de verdades eternas e leis universais fundadas numa concepção invariável da realidade.

Reafirmando o que foi dito, citamos Deleuze (1992) onde ele afirma que se pode falar de processos de singularização quando se considera as diversas maneiras pelas quais os indivíduos ou as coletividades se constituem como sujeitos, tais processos só valem na medida em que, quando acontecem, escapam tanto aos saberes constituídos, como aos poderes dominantes. Mesmo se na seqüência eles engendram novos poderes ou tornam a integrar novos saberes. Mas naquele preciso momento, eles têm efetivamente uma espontaneidade rebelde. Para o autor, um sistema é aberto, não excludente ou controlador, quando cria novos conceitos que tenham uma necessidade, que sejam circunstanciais e que possuam uma força crítica, política e de liberdade.

Neste sentido, o Sistema Único de Saúde, conforme as deliberações das Conferências, pode funcionar como um sistema aberto, como um agenciador de vias de comunicação, através de uma rede de atenção integral, não tendo nenhuma instância dominante de determinação que guie as outras instâncias. Contudo, como trabalhadores de saúde mental, entendemos que a desmontagem dos velhos sistemas de referência não se dá apenas pela reconceitualização no plano das idéias, da memorização, da representação, ou seja, da mudança do nível discursivo. A passagem do discursivo da desinstitucionalização à prática depende da construção da experiência, sendo portanto um campo de invenção, de potência, de vitalização de energias produzido pela sensibilidade, afeto, desejo e vínculos humanos.

Desta forma, podemos dizer que a produção de saber criada pela Reforma Sanitária é cartográfica e os trabalhadores de saúde são cartógrafos. Pois, como nos diz Rolnik (1989), "paisagens psicossociais também são cartografáveis". A cartografia, nesse caso, "acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certo mundo (sua perda de sentido) e a formação de outro mundo que se cria para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornavam-se obsoletos"(Rolnik, 1989). Como cartógrafos, os trabalhadores de saúde mental não revelam sentidos (o mapa da mina) mas os "cria", já que não estão dissociados de seu corpo vibrátil: pelo contrário, é através desse corpo associado com seus sentidos que procuram captar o estado das coisas, seu clima, e para eles criar sentido.

Portanto, como trabalhadoras de saúde mental, participantes dos movimentos de Reforma Sanitária e, mais especificamente de luta por uma sociedade sem manicômios, é que entendemos que Psicologia se constitui como espaço de exercício de cartografia, que possibilita a produção de novos agenciamentos de singularizações que levam à mudança de vida, à construção de cidadania num plano cotidiano e, ao mesmo tempo, pelas transformações a nível dos grandes conjuntos sociais.

 

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