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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.16 n.1 Brasília  1996

 

Psicologia e a construção da cidadania

 

 

Kester Carrara

Professor Assistente - UNESP - Marília/SP

 

 

Tão antiga quanto o próprio ser humano, a busca da igualdade talvez seja o propósito mais complexo e controvertido que se impõe na vida em sociedade. Ser igual implica, por pressuposto, a existência do plural: ao menos duas pessoas são necessárias, interagindo no mesmo espaço de vida. E essa convivência interpessoal, que tem sua significação afetada por uma multiplicidade de variáveis, é objeto de estudo fundamental na Psicologia.

A compreensão do conceito de igualdade social conduz um inevitável exame de modos de organização social do Estado, a uma percepção necessária das relações entre participação e emancipação e à constatação de sua indissociabilidade em relação às idéias de liberdade e cidadania. Não sem o risco de algum reducionismo involuntário, é impossível analisar essas vinculações conceituais à luz do papel que a Psicologia pode desempenhar como área detentora de conhecimento promissor para a compreensão e mesmo a militância no contexto da cidadania. Esclarecer esses mecanismos, todavia, torna-se impossível se se ousa prescindir das contribuições dos antropólogos, dos sociólogos e dos historiadores, para dizer o mínimo. Qualquer tentativa apenas vertical dentro da Psicologia torna-se inócua em razão da própria natureza do fenômeno: o aprofundamento da análise está condicionado a um mínimo de horizontalidade ditado pela multidisciplinaridade. Nessa direção, o presente ensaio incluirá, preliminarmente, uma incursão às raízes históricas daquilo que constitui o tipo de organização sócio-política mais comum na sociedade contemporânea, sempre buscando desvelar implicações para a compreensão da cidadania.

 

Evolução histórica da organização social do Estado: liberalismo e democracia em questão

A literatura mostra flagrante discrepância entre os conceitos de Estado liberal e Estado democrático. No primeiro, o particularismo do poder se define na idéia da propriedade, enquanto no segundo a distribuição do poder se contrapõe às idéias de autocracia e oligarquia. Em cada qual, a questão da cidadania deve ser tratada sob ótica diversa. Como no caso brasileiro o modelo de Estado, o tipo de regime e a ideologia navegam ora em águas liberais, ora em águas democráticas, não é sem motivo que se torna imprescindível, aqui, melhor caracterizar esses aspectos. Até porque, mais recentemente, essa pauta de discussão se amplia pela inclusão de um novo item, qual seja a validade atual da dicotomia direita-esquerda: o tema começou a ser veiculado no último livro Bobbio(1995) e invade os meios acadêmicos de todo o Ocidente.

Para o mesmo Bobbio (1990), por liberalismo entende-se uma concepção de Estado possuidor de poderes e funções limitadas, em contraposição ao Estado absoluto. Por democracia, entende-se uma forma de governo em que o poder está nas mãos da maioria, em contraposição às formas autocráticas. Todavia, a compatibilidade projetada entre liberalismo e democracia nem sempre tem sido real através da história. Originalmente, o liberalismo paternalizado por Locke e presente na Revolução Francesa, está representado pela conquista burguesa do poder político, tomado à aristocracia e implicando um modelo de cidadania que alcança apenas o proprietário (Buffa, 1988). O conceito de homem livre se vincula à idéia de que todos são proprietários de seu próprio corpo e, por extensão, de seu próprio trabalho: nesse sentido, a liberdade aí implícita é assegurada pelo arbítrio pessoal quanto ao uso desse organismo auto-apropriado. Uma liberdade evidentemente limitada, até porque coloca um sentido absolutamente ingênuo de autodeterminação, especialmente quando se sabe, na Psicologia como em toda ciência social, que as contingências subjacentes ao ir-e-vir não são apenas internas: normas, regras, convenções, crenças, práticas e tantas variáveis mais entram nessa composição causal. O exemplário dessa pseudoliberdade é imenso: para qualquer trabalhador assalariado, um contrato com o proprietário representa, quase sempre, uma condição de subordinação e não de igualdade. Alçar à condição de cidadão, para ambos, não tem o mesmo preço. Historicamente, na verdade, o cidadão acaba sendo tão-somente proprietário. É por essa razão que o Zeitgeist da Revolução Francesa, acabou disseminando-se a idéia de uma proposta educacional para os proprietários e outra para os não-proprietários ou cidadãos de "segunda categoria", se isso é possível. A divisão parcelar do trabalho, mormente na Inglaterra de Adam Smith (1723-1790) serve como justificativa (negativa) para que o Estado imponha uma educação básica que inclui o trabalhador: supõe-se que o povo (limitadamente) instruído é ordeiro, de modo que o que se propõe para a maioria da população é apenas o mínimo. E o modelo liberal para fazer do trabalhador, na verdade, um cidadão passivo que, apesar de tudo, tem alguns poucos direitos (Buffa, 1988).

O liberalismo, enquanto concepção de Estado, apresentou-se robustecido após a Revolução Francesa, consolidando-se como modelo teórico compatível com a realidade moderna. Todavia, por mais que tente ser aliado, esbarra em alguns pressupostos da democracia enquanto forma de governo muito mais antiga e que tem nuanças particulares em cada Estado onde se aplica. No Brasil, por exemplo, a aliança liberal-democrata é reconhecível nas ações de governo, que ora são centradas na privatização de serviços e empresas, com um conseqüente desmonte de um aparato estatal considerado arcaico e ora, paradoxalmente, se dirigem à personificação do governo enquanto mantenedor do controle social do Estado. Para sumariar, o peso histórico da democracia assegura a ela, hoje, a condição de forma de governo privilegiada mundialmente, não sem que permaneça aberta a discussão de uma verdadeira tipologia de regimes democráticos particulares, em alguns dos quais uma aliança mais ou menos intensa com o liberalismo é admitida. Para Bobbio (1990), ao longo de todas as transformações que os séculos impuseram à democracia desde a Grécia antiga, jamais se alterou seu aspecto descritivo (de governo do povo), embora tenha sido alterado o seu aspecto valorativo (que se refere à amplitude da democracia). Dito de outro modo, o que essencialmente muda de um modelo democrático para outro é a intensidade da abertura democrática e a composição da representatividade popular no governo. Sob o manto do discurso democrático, as práticas político-ideológicas diferem, de modo que, se se pretende propor traços preliminares de um modelo de contribuição da Psicologia à construção da cidadania, não se pode alienar à análise a identificação do modelo brasileiro de governo. No mínimo, por essa razão, é fundamental ver em que casos é conseqüente a necessidade de um afastamento da democracia liberal e uma aproximação à democracia social e em que casos há pressupostos que permitem uma convivência de critérios de ambas as tendências. Para Bobbio (1990), a igualdade na liberdade é uma das formas de igualdade não só herdada, mas requerida pelo liberalismo: nas suas palavras, "cada um deve gozar de tanta liberdade quanto compatível com a liberdade dos outros..."(p. 39). Essa concepção, básica a qualquer forma democrática, inspira normas constitucionais de igualdade perante a lei e igualdade de direitos, de onde a importância de se considerar, numa proposta de trabalho de Psicologia, os conceitos de direitos e deveres comuns, sem privilégios em função de propriedade ou posse, como filosoficamente implícitos em qualquer processo de conquista da cidadania.

Em última análise, o conceito e o modelo de cidadania que se veicula no presente trabalho pretende ancorar-se sob as garantias básicas de uma forma de governo democrática: isto deve ser razão mínima para que o leitor se familiarize, mais adiante, com facetas da proposta que necessariamente implicarão certo desapontamento para quem se acomoda sob a manutenção de alguns privilégios. A idéia de proteção dos direitos humanos, embora nascida sob a égide do liberalismo, é hoje condição indispensável ao processo democrático. Bobbio (1990) assevera que idéias liberais e o que ele chama de método democrático combinaram-se gradualmene de tal modo que, "se é verdade que os direitos de liberdade foram desde o início a condição necessária para a aplicação direta das regras do jogo democrático, é igualmente verdadeiro que o desenvolvimento da democracia se tornou o principal instrumento para a defesa dos direitos de liberdade"(p. 44). A veracidade a afirmação se comprova pelo fato de que hoje apenas os Estados resultantes de revoluções liberais são verdadeiramente democráticos e apenas os Estados democráticos amparam seguramente os direitos humanos, o que se denota do fato de que todos os Estados autoritários sustentam duas características: são antiliberais e são antidemocráticos. Não seria preciso reiterar que no caso do Brasil a democracia é incipiente, a não ser para esclarecer que um dos passos básicos para a conquista da cidadania se constitui na consolidação dessa forma básica de governo mediante ações políticas intensas e de longa duração. As manipulações na superfície da política monetária, sem que se invista em mudanças estruturais (a questão econômica tem sido tratada como se fosse um problema de software, quando parece que é também de hardware), exemplificam a dificuldade de romper com o modelo de domínio capitalista que não pode ser simplesmente importado sem ajustes para a realidade nacional. Razões existem, de sobra, para crer no argumento de Chauí (1986), que mostra a distância entre a democracia concebida e de discurso e a democracia praticada. Na verdade, a caracterização capitalista do Brasil se mostra pela constituição autoritária e hierarquizada de nossa sociedade, onde os direitos do homem e do cidadão simplesmente não existem. São dispensados pela elite, de vez que ela não precisa de maiores direitos porque tem privilégios, estando, pois, acima deles; e não existem para a maioria da população, porque suas tentativas de consegui-los são sempre encaradas como problemas de política e tratadas com todo o rigor do aparato repressor do Estado (p.2). Esperar como dádiva do Estado as condições básicas para alcançar a condição da cidadania é pouco promissor. Além disso, é mesmo inseparável do conceito de cidadania a idéia de conquista e não de dádiva.

 

Os caminhos da emancipação: da cidadania oferecida à cidadania conquistada

O conservadorismo populista tão a gosto, nos quase quinhentos anos de Brasil, à maioria dos homens que ocuparam cargos públicos, tem feito disseminar o conceito de que direitos são matérias de concessão. Sob o discurso da ampliação de direitos (de voto, de greve, de amparo à saúde etc.), pratica-se o manobrismo da barganha eleitoreira, como se fosse lícito prometer à população o que já lhe pertence e exigir dela o que não pode ser objeto de permuta. Esse imaginário político converte-se em triste realidade que se dissemina ao longo da história brasileira, fazendo crer que a cidadania é algo que pode acontecer, de forma mais ou menos plena, de conformidade com a boa vontade (a "vontade política") do governante. Tais práticas, aliadas ao descaso para com a educação e a cultura, têm tornado fáceis as ações desses verdadeiros usurpadores da consciência popular, constituindo-se em agentes que atravancam o caminho mais curto e mais seguro para a conquista da cidadania: a participação.

Na lição de Demo (1988), o processo participativo define a cidadania organizada, que faz prevalecer o coletivo sobre o individual, sendo objeto de conquista e não de consentimento. Acrescenta que o conceito de cidadania, embora possua laivos conservadores históricos desde os gregos, que privilegiam como cidadãos apenas um grupo de elite, precisa hoje ser entendido como condição desejável à sociedade integral. Nesse sentido, deve escapar à tutela do Estado e emergir a partir da iniciativa dos interessados, dos desiguais, dos excluídos (p.70). O Estado, na figura das instituições e das pessoas que ocupam o poder, será efetivamente mobilizado na direção do aprimoramento da condição social coletiva, a partir das ações organizadas dos membros dessa sociedade. Descaracteriza-se, portanto, o mecanismo da concessão, que subverte a ordem do processo e funciona como engodo que cobra ao cidadão um compromisso individual. Para Weffort (1981), é razoável supor que o processo de democratização por via concessiva esteja próximo do esgotamento, de modo que se prioriza a perspectiva da democratização progressiva, conquistada, capaz de privilegiar o aprimoramento de recursos institucionais de representação e participação. Assim, a construção de qualquer proposta nova passa pela recusa ao modelo de cidadania regulada, na medida em que esta é vertical e vai do topo às bases da pirâmide social e na medida em que carece de representatividade popular, uma vez que oferecida pela elite e não conquistada pela maioria social.

Privilegiar a participação e rejeitar a cidadania concedida são procedimentos estratégicos para assegurar legitimidade ao processo, mas são igualmente instrumentos para se compreender que outra díade, moralização-educação, embora condições necessárias, não pode ser vista como constituindo solução única e isolada para a instituição de uma sociedade igualitária. A defesa ingênua da educação, como mecanismo isoladamente suficiente para a transformação social, constitui raciocínio que elide a questão do poder (Arroyo, 1988) e se reduz a um pedagogismo estéril, descolado do econômico, do político, do ideológico. Desse modo, este trabalho pretende deixar claro que a Psicologia apenas poderá instrumentalizar sua contribuição à construção da cidadania na medida em que privilegie um processo educacional contextualizado sócio-politicamente e formalize a participação enquanto estratégia de trabalho.

 

Educação, participação e igualdade: implicações conceituais para a compreensão da cidadania a conquistar

Weffort (1981)- na época professor adjunto do departamento de Ciências Sociais da USP- analisando a questão dos direitos sociais e participação e diante de um Brasil em que "nem o liberalismo, nem a classe operária e, talvez menos ainda, nem a burguesia apresentam a nitidez que podemos perceber nos países mais modernos" (p-139), crê prudente indagar se poderia os trabalhadores contribuir para a conquista da democracia. Estava implícita a concepção de participação, embora ainda fosse incipiente uma efetiva forma de governar democrática, ainda hoje em processo de consolidação. Desde esse momento da história brasileira, em que a comunidade acadêmica manifestava clara consciência da necessidade de democratização, pouca coisa se fez quanto a instrumentalizar respostas práticas à pergunta de Weffort, sem os riscos do paternalismo. Caminhou-se pela via artificial do consentimento administrativo, político e legal (vide o exemplo -certamente bem intencionado- do estatuto do menor e do adolescente, construído no rigor da melhor lei, mas sem consideração à realidade social brasileira): o mecanicismo e o artificialismo do direito consentido provêm justamente do seu caráter de benesse da autoridade. Não se pode fazer o mesmo com a cidadania, na sua inteira acepção: quando se passa da conquista à concessão, a legitimidade desmorona. Até mesmo quanto ao próprio conceito de autoridade, que não se impõe (porque transforma-se em autoritarismo), mas se conquista (porque implica representatividade).

A emancipação social, por essa ótica, requer o envolvimento, a participação, a crença, a consciência e muito trabalho de todos quantos a vejam como condição que não privilegia o particular, até porque quando apenas alguns levam vantagem, não só a maioria perde, mas todos perdem, ainda que em momentos e instâncias diferentes (Carrara, 1992).

A procura da igualdade implica, por tautologia, que se parta de uma condição de desigualdade, ademais uma fonte estrutural de mudanças, tal como aponta Demo (1988): da reunião dos desiguais nasce a conquista participativa, vinculada a uma visão de política social que implica interligação à questão da infra-estrutura econômica, na medida em que toda política efetivamente social significa mudanças na ordem econômica. Na prática, pode-se constatar medidas econômicas que distribuam ou concentrem renda, por exemplo, com as conseqüentes implicações as tensões sociais. Para Demo (1988), a construção participativa de uma sociedade majoritariamente desejada ressalta a dimensão política, mas não sua supervalorização desligada do processo econômico, bem como ressalta a importância do conceito de desenvolvimento, em contrapartida a crescimento (porque para o primeiro concorre a necessidade de participação e a idéia de processo qualitativo, como tal, dinâmico). Essa política social passa (p.16-17) pela necessidade de inserção no mercado de trabalho, pela conquista política e pela rejeição a certos vícios como o assistencialismo (que coíbe a autopromoção, instituindo a prática da concessão, da tutela e da manipulação). Acautela com propriedade o mesmo autor (Demo, 1988), que a política social é apenas parcialmente política pública; na sua maior parte é iniciativa da sociedade civil, apesar do Estado, ou mesmo à revelia ou contra o Estado. Além disso, constitui erro estratégico imaginar possível ficar esperando aflorar toda a potencialidade para o desenvolvimento: não se pode permanecer à espera de iniciativas mágicas, até porque as comunidades excluídas nem sempre se comprometem imediatamente com mudanças, aparentando uma alienação enganosa, que não lhe é inerente por natureza, mas decorrente de repressão histórica de quem manipula o poder. Não se pode deixar de reconhecer, nesse sentido, que as comunidades pobres também se encontram sob efeitos alienantes, não decorrentes, obviamente, da ausência de projetos e expectativas, mas porque a manipulação que lhes impõe o poder tem as malhas fortes da legislação, do saber consensualmente constituído e do domínio das relações de troca entre capital e trabalho.

Pelo menos por estas razões, a conquista da cidadania deve passar (ao contrário da expectativa ingênua freqüentemente veiculada de que as mudanças todas brotarão naturalmente) por um processo construído, projetado com a utilização ótima do conhecimento disponível e com a integral participação de todos quantos estejam conscientes de sua importância. Não é sem grande trabalho e sem projetos que se mudam, por exemplo, os conceitos do fatalismo religioso (que concebe a divisão de classes como inerente à natureza humana) e da prevalência do poder econômico (onde, não sem motivos, mas desprotegida, a maioria excluída se auto-obriga à sujeição nas relações de trabalho).

Entre as características básicas da participação reitera-se a de processo coletivo planejado. É um processo na medida em que não existem objetivos terminais na participação social: trata-se de algo interminável, que revela novas facetas e possibilidades a cada etapa vencida. Deve ser coletiva em razão da amplitude e generalidade dos ganhos que se esperam: embora importante, a participação individual nem sempre traz ganhos que possam ser distribuídos eqüitativamente por toda a população. E deve ser planejada, porque a participação na busca pela cidadania implica necessariamente a utilização de todos os instrumentos práticos e conceitos teóricos acessíveis e oriundos das mais diversas fontes organizadas de conhecimento: as diversas áreas científicas, por exemplo, terão seus efeitos diluídos, desperdiçados ou confundidos, se não forem mobilizados de forma criteriosa e orientada.

Ao mesmo tempo, embora se possam encontrar resistências localizadas em diversos setores do aparato estatal, não há Estado que seja completamente monolítico. Com Demo (1988), pode-se assegurar que uma visão histórica de Estado mostra que sempre há brechas a explorar mediante uma forma organizada de participação.

Uma das brechas fundamentais, mas não a única, através da qual a população pode aprimorar seus projetos de conquista da cidadania é a Educação. Não se pense, todavia, no processo educacional como veículo único para tal conquista. Se assim fosse, qualquer projeto que mudasse certas estatísticas brasileiras seria suficiente: embora desejável, não será o fato de que deixemos de ter trinta milhões de analfabetos funcionais e vinte milhões de analfabetos absolutos que concederá ao país o título de Brasil-cidadão. Claro está que a reversão desse quadro só pode resultar de um esforço de toda gente séria e comprometida com mudanças, mas além disso existe muito trabalho a ser feito. A Educação formal, pelo menos, não pode eliminar completamente as tentativas de "domesticação ideológica", apesar de que funcione como espaço seguro de discussão. Conforme Arroyo (1988), não é fácil defender, como não é fácil afastar "as formas sinuosas e sutis através das quais a vinculação entre Educação e cidadania, como pré-condição para a participação, vem agindo durante séculos para justificar a exclusão da cidadania, a condenação das camadas populares à condição de incivilizados, de não-aptos como sujeitos de história e de política, bem como a legitimação da repressão..." (p.40). De certo modo, o escudo da incivilidade, da falta de preparo, da ignorância às letras, tem sido ruidosamente manipulado pela classe dominante. A população, nesse sentido, não estaria "preparada" para a ampliação de direitos. No discurso político, a necessidade de educar é ressaltada, mas na prática o suporte à Educação é removido enquanto medida que impede a proliferação de gente que raciocina e que, por conseqüência, passa a questionar a realidade vigente. Para Arroyo (1988), os trabalhadores já foram considerados como objeto de amor, caridade, filantropia e educação, o que caracteriza uma submissão das camadas populares à condescendência e benesses da classe dominante: manter essa condição de subserviência tem sido mais uma questão política do que pedagógica. Lamentavelmente, por essa vertente, o ideal de educação política da criança não seria o de prepará-la para participar do jogo do poder, mas para renunciar a ele e dedicar-se apenas a uma convivência apolítica e fraterna. O que, convenhamos, não assegura uma sociedade igualitária. Também não é suficiente uma Educação, tal como hoje se privilegia, centrada na transmissão de conhecimento e/ou na socialização. Ambos caracterizam o reprodutivismo até aqui tão denunciado: no primeiro caso, retira-se a intocabilidade do edifício da ciência; no segundo, a reprodução de costumes, atitudes e expectativas da geração precedente, preservando a mesma divisão entre os privilegiados e os desprivilegiados (Demo, 1988).

Definitivamente, a função precípua da Educação é de ordem política, como condição ao desenvolvimento da participação e no melhor sentido que o conceito de política possa ter. Num bom projeto de cidadania, alguns componentes básicos incluem a noção de formação e não de adestramento; a noção de sujeito social e não de recipiente passivo do saber; a noção de conquista e não de concessão da cidadania; a noção de direitos e deveres do cidadão; a noção de democracia como forma de governo melhor habilitada a tornar possível a participação; a noção de liberdade, de igualdade e de comunidade, que leva à consolidação de ideologias comprometidas com a redução de diferenças sociais. Demo (1988) aduz ainda que a Educação deve estar comprometida com construir "gente", numa dimensão que vai para além de simples trabalhadores treinados, pessoas bem comportadas, seres informados.

Torna-se evidente, pelo exposto, que o processo educacional é instrumento de vital importância para a construção da cidadania apenas se se ancorar na preparação para a vida em comum, se se delimitar enquanto espaço para a livre discussão das relações interpessoais, se contemplar a idéia de oferecer instrumental efetivo à construção participativa da cidadania e se levar em conta integralmente o contexto político-econômico típico da democracia vigente.

Entretanto, não se pense que brincando de democracia na escola o cidadão aprenderá a construir a democracia (Arroyo, 1988): da simulação deve-se passar apropriadamente à prática no convívio social, único lugar onde os efeitos da aprendizagem política se concretizam enquanto conquista da cidadania.

 

Caso Brasil: a relevância da Psicologia na construção da verdadeira cidadania

O rol de pressupostos para uma ação da Psicologia em qualquer projeto de construção da cidadania pode parecer mais amplo que a dimensão da própria ação. Afortunadamente, não há excesso de zelo em se delimitar com clareza as razões e implicações, menos estratégicas que éticas, dos principais mecanismos em jogo no processo. Em particular no caso brasileiro, onde a Psicologia tem curta história e, via de regra, sofre as mazelas das adaptações teóricas importadas, não é sem tempo que a consciência ética do psicólogo seja estimulada para agir de modo conseqüente. A partir da concepção de que constitui cidadania a qualidade social de uma sociedade organizada sob a forma de direitos e deveres majoritários e não-o que é engodo corriqueiro-uma série de valores do psicólogo enquanto pessoa (por mais virtuosos que possam parecer), o profissional deve buscar suas fontes, de qualquer natureza teórica, de modo a pensar um projeto que implique o desenvolvimento coletivo.

Respeitados os pressupostos sócio-políticos do projeto, o passo seguinte consiste na escolha da natureza teórica do trabalho. Será mais progressista, mais "engajado", politicamente correto, trabalhar com esta ou aquela abordagem? Há alternativas teóricas que são incompatíveis com um trabalho comunitário? Desafortunadamente ou felizmente, não há respostas prontas para estas questões. No entanto, seguramente não é a linha teórica que delimita a amplitude e alcance de um projeto de construção da cidadania, mas uma demarcação clara da conquista pretendida. Ajuda muito tentar responder com nitidez à tradicional e sempre atual questão: a quem a Psicologia estará servindo nesse momento? Se a resposta representar avanços coletivos na direção da democracia, da igualdade e da cidadania, qualquer obstáculo relacionado à natureza teórica poderá ser superado.

O trabalho básico do profissional estará centrado no colocar integralmente o conhecimento acumulado em Psicologia a serviço dos setores majoritários da população que reivindicam mudança: nessa direção, todas as vertentes teóricas têm contribuições a oferecer, sem distinção. Ainda que nenhuma delas, isoladamente, possa responder completamente a todas as dúvidas formuladas, o conhecimento em Psicologia possui hoje argumentos sólidos para inúmeros problemas. Além disso, cabe ao bom profissional a necessidade de ser transparente às contribuições teóricas divergentes, desde que assentadas em pelo menos uma de duas virtudes: bons dados e argumentação sólida. Qualquer outra postura pode implicar ortodoxia infrutífera: já se disse que a Psicologia atual possui diversas construções teóricas sérias, porém igualmente possui alguns modismos perigosos. Finalmente, nessa questão da preferência teórica, a própria multiplicidade de concepções é uma questão de direitos e liberdade de pensamento implícita na idéia de cidadania. Aliás, inserida na constituição brasileira: há psicólogos de todas as formações e espera-se que a pluralidade das teorias adotadas possa representar uma vocação democrática da própria área.

Outra consideração refere-se ao local de atuação do psicólogo: deve atuar no ambiente natural, na clínica, em organizações? No caso da cidadania, onde é seu espaço de trabalho? Também neste caso a resposta deve compatibilizar-se com os resultados esperados. Sabe-se que quanto mais distante da realidade onde se dá o fenômeno, tanto mais demorada ou difícil a transferência de resultados. Nesse sentido, a clínica seria a última alternativa a ser escolhida, sendo primeira o cotidiano social. Entretanto, por um lado não há muito tempo para escolhas sutis e, por outro, todas as instâncias devem ser somadas para o resultado total, porquanto a busca da cidadania deve estar representada em todos os lugares e momentos. A escola, por exemplo, é local privilegiado para o trabalho psicopedagógico, mas trabalhar o acadêmico sem trabalhar a família constitui ver apenas meio corpo do problema.

Um terceiro aspecto é o que responde à questão da necessidade ou não de uma sub-área ou uma disciplina especificamente preocupada com a questão da cidadania. Nem isto é necessário, nem recomendável. Por um lado, restringiria o número de profissionais envolvidos, por outro descaracterizaria a Psicologia como área complexa de conhecimento, porque a mutilaria denotando que constitui um mosaico de pequenas e específicas psicologias (se essa metáfora é possível). Assim, o que já se tem é mantido: trabalham-se momentos importantes em que a consciência social aflora quando se estuda a Psicologia do Desenvolvimento; discutem-se os mecanismos que facilitam ou dificultam a aquisição de conceitos quando se está no campo da Psicologia da Aprendizagem; centraliza-se a discussão nos valores que sustentam a dinâmica grupal, quando se está na Psicologia Social; encara-se a ética do assegurar ao cliente instrumentos para que possa lutar por seus objetivos, respeitados os direitos daqueles com os quais convive, quando se trabalha com qualquer conjunto de teorias e técnicas psicoterápicas na clínica; identificam-se reivindicações e oferecem-se procedimentos de contracontrole ao poder vigente, quando se opta pela Psicologia Comunitária; cuida-se para não ceder a um comprometimento com o poder econômico da empresa ou instituição, quando se pratica a Psicologia das Relações Humanas; aprofunda-se a dimensão da crítica social, sem deixar de lado o aprimoramento da competência, quando se atua como psicólogo escolar. Enfim, o exemplário é tão infinito quanto as possibilidades da própria Psicologia, tornando-se absolutamente desnecessário (embora seja possível) delinear um campo particular para a construção da cidadania. O que se pode veicular, a título de maior organização, são projetos nacionais ou regionais, com a possibilidade de envolvimento de uma multiplicidade de profissionais. Nesse caso, o projeto maior desmembra-se em campos de atuação que aproximem afinidades teóricas ou estratégicas naturais em vista da finalidade geral, que é a construção da cidadania a partir da contribuição do psicólogo.

Neste ponto, duas observações importantes precisam ser feitas: 1. Não se pense na possibilidade de um conjunto de sugestões de trabalho enquanto um receituário; 2. Não se imagine que a atuação isolada do psicólogo pode resolver a questão da cidadania. Respectivamente, (1) não existe receituário em Psicologia, até porque são tão dinâmicas as relações interpessoais que sempre há aspectos novos em jogo e (2) como já se expôs, a busca da cidadania é conquista e , como tal, implica participação, o que, por sua vez, é um processo coletivizante que recebe múltiplas influências.

De qualquer maneira e embora este abreviado ensaio não diga respeito a fórmulas prontas de atuação, aparenta clareza a idéia de que em qualquer subárea ou disciplina, um traço fundamental é necessário: o sujeito do processo (a coletividade) precisa cientificar-se e aprender a lidar com os mecanismos sociais que dão origem a limites, normas convenções, leis e regras, que dizem respeito ao seu próprio comportamento no cotidiano. Ou seja, em todo trabalho da Psicologia direcionado à busca da cidadania, um conjunto de procedimentos deve estar disponível para tornar claro, por exemplo, como se dão as relações de trabalho, como o Executivo administra, como o Legislativo produz leis, como o Judiciário as aplica. Mais: como e por que o mesmo Executivo deixa de administrar, por qual razão o Legislativo não fiscaliza e o que emperra o Judiciário. Ainda mais: qual o mecanismo pelo qual todas as ações (aqui minimamente exemplificadas) institucionais públicas e privadas afetam diretamente o cidadão. E, sobretudo, muito mais importante: de que maneira, na busca da cidadania e, com o auxílio instrumental da Psicologia, as pessoas podem organizar-se e atuar efetivamente para a mudança da realidade presente. No Brasil, o caminho passa pela elaboração multidisciplinar de um grande Projeto de Construção da Cidadania, que muito bem pode ser liderado pela Psicologia, envolvendo o Conselho Federal, os Regionais, os cursos de Psicologia, os departamentos de Psicologia de outros cursos. Um congresso preliminar e uma atuação forte dos conselhos pode polarizar motivações para a operacionalização das frentes de atuação, sem que se corra o risco de uma proposição unilateral. Um fórum inicial de publicações sobre o tema da cidadania, sugeridas algumas preocupações centrais, pode funcionar como estratégia geradora de atividades da categoria. No caso brasileiro, estamos seguros de que a lamentável grandeza da demanda pela cidadania, aliada à configuração político-ideológica favorável ora instalada e à potencialidade que se reconhece na categoria dos psicólogos, podem, juntas, catalisar grandes mudanças. Afinal, o que todos nós profissionais buscamos é, também, uma Psicologia cidadã.

 

Referências Bibliográficas

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