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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.16 n.2 Brasília  1996

 

Atendimento a pacientes psicóticos uma experiência em processo

 

 

Ingrid Robinson Canedo

Psicóloga da Fundação Municipal de Saúde de Niterói. Especialização em Saúde Pública e Psiquiatria Social pela ENSP/FIOCRUZ. Formação Clínica em Gestalt- Terapia

 

 

Uma equipe formada por psicólogos e psiquiatras vem, há três anos, desenvolvendo novas práticas no atendimento a neuróticos graves e psicóticos, que representam uma alternativa ao modelo tradicional centrado na medicalização. O presente texto apresenta algumas reflexões sobre tal experiência, que é desenvolvida no Posto de Assistência Médica da Engenhoca, do Serviço de Saúde Mental de Niterói.

Este trabalho é um processo de reflexão sobre uma prática de três anos com pacientes psicóticos, no Serviço de Saúde Mental de Niterói, localizado no Posto de Assistência Médica da Engenhoca.

A equipe formada por psicólogos e psiquiatras vem tentando nestes três anos construir uma prática de atendimento a psicóticos e neuróticos graves que diferencie-se do atendimento ambulatorial tradicional: medicalização da doença mental.

Neste texto vou restringir-me a minha experiência pessoal com pacientes que apresentam o seguinte perfil: diagnóstico de esquizofrenia, faixa etária de 28 a 40 anos e média de uma a oito internações no decorrer do surgimento da patologia até os dias atuais. Estas pessoas acham-se enquadradas na categoria de pacientes crônicos por ter sua doença aparecido no início de sua vida adulta, impedindo-as de estabelecerem qualquer vínculo social (trabalho, amigos) e afetivo (namoro, casamento, filhos). Vivem isoladas em suas casas, sendo totalmente dependentes de suas famílias.

Minha proposta terapêutica inicial foi a criação de um espaço individual onde elas fossem ouvidas e acompanhadas em suas necessidades. Neste contato conversávamos sobre sua história de vida, sua visão atual dos seus problemas- "delírios"? - e realizávamos algumas atividades: jogar dominó, desenhar... Este espaço mostrou-se adequado em função dos vínculos estabelecidos com a terapeuta e da oportunidade dada a estas pessoas de falarem sobre seus desejos, sonhos, medos e angústias, a partir do seu referencial: "Eu não saio de casa porque sei que as pessoas vão saber o que eu estou pensando". Explicação de uma paciente sobre os motivos que a faziam isolar-se. Estas pessoas vinham com assiduidade às sessões e sentiam falta quando estas eram interrompidas por motivo de greve no Serviço ou devido as minhas férias.

Esta proposta mostrou-se, contudo, ainda limitada. Era necessário que elas compartilhassem suas vivências com outras pessoas e formassem vínculos diferenciados do vínculo terapeuta-cliente. Além disso, os pacientes mais calados e isolados sentiam-se constrangidos e incomodados com o contato próximo e constante do terapeuta, dizendo: "Eu sou chato. É monótono ficar só comigo. Eu não tenho vida. Não tenho o que falar".

Criou-se assim, em conjunto com outro psicólogo, um espaço grupal. O principal objetivo era o encontro de diferentes subjetividades, com o fim de compartilhá-las, vivenciá-las e respeitá-las. Buscava-se tornar coletivo as diversas formas de compreensão do mundo, através da convivência com modos diferenciados de percepção da realidade.

O trabalho grupal iniciou-se com freqüência semanal, num período de duas horas e com dois terapeutas. As primeiras sessões mostraram-se caóticas. Tínhamos seis pacientes que encontravam-se em seus próprios mundos, mantendo vínculos apenas com estes e com os terapeutas; alguns "deliravam", outros solicitavam a atenção integral dos psicólogos e os mais retraídos permaneciam calados. Neste momento foi necessário uma participação ativa dos terapeutas, estimulando-os a romperem suas bolhas existenciais e relacionarem-se entre si. Através de atividades conjuntas, como: desenhar, cantar, cozinhar, usar argila, contar piadas, jogar dominó, estimulamos a integração, reforçando os interesses comuns e despertando a curiosidade de cada um pelo mundo particular do outro. A relação de amizade, descontração, afeto e espontaneidade existente entre os psicólogos e entre estes e os pacientes contribuiu em muito para as mudanças que pouco a pouco observamos nas dinâmicas grupais.

Lentamente, vivenciamos o interesse destas pessoas pelas dificuldades do outro, a falta sentida pela ausência de algum membro e as atividades tornarem-se mais grupais. Passamos a chamar esta atividade de espaço operativo, pois entendíamos que o relacionar-se, produzia e operava novos olhares, novas escutas, possibilitando a estas pessoas saírem de suas solidões existenciais e arriscarem uma nova forma de "estar no mundo".

A pedido deles passamos a festejar os aniversários. Cada membro do grupo, psicólogos inclusive, encarrega-se de trazer um ingrediente. Prepara-se então, em conjunto, o bolo de aniversário. Estes são feitos a partir de medidas arbitrárias, baseadas nas vivências de cada um sobre como se faz um bolo, sendo a massa mexida por diversas pessoas e as coberturas criadas a partir da criatividade de cada um. Os bolos saem sempre deliciosos. O aniversariante convida algumas pessoas presentes no dia no Serviço: parentes, psicólogos, pessoal de limpeza, médicos e outros pacientes, para comemorarem com ele.

Esta atividade alterou a percepção destas pessoas com relação a si próprias e a relação destas com os familiares e funcionários. Falas como: "Não é que ficou bom mesmo!" "Que delícia!" "Minha filha não sabia que você fazia bolo tão bem assim. Por que você não faz lá em casa?" propiciou a estes o contato com suas possibilidades de produzirem, em conjunto, algo prazeiroso para si e para os outros. Ao mesmo tempo, parentes e funcionários passaram a perceber estes pacientes vistos como "esquisitos", por serem gordos, mal vestidos e falarem coisas estranhas, como indivíduos capazes. No olhar de medo e descrédito destes, observa-se agora também a presença de um sentimento de fascinação e respeito. Atu-almente existe uma intimidade entre os funcionários e os membros deste espaço. Falas como: "Ingrid, a Joana está deitada no banco da sala de espera. Acho que ela não está bem"; "Cadê o João, ele não veio hoje?" refletem isso.

Em função da saída do Serviço de um dos terapeutas, o espaço operativo mantém-se há um ano e meio com apenas a minha presença. Houve receio de que o afastamento dele ocasionasse um esvaziamento e desmobilização. Os pacientes, contudo, foram capazes de aceitar esta modificação, falando sobre seus sentimentos de tristeza mas também de satisfação pela melhora profissional do terapeuta. Ainda hoje ele é lembrado nas sessões e devido a manutenção do vínculo de amizade entre nós, ofereço notícias suas a eles.

A saída deste psicólogo trouxe uma nova configuração na estruturação deste espaço. Existia agora, apenas um psicólogo, um coordenador, para um grupo de seis pacientes que até então exigiam uma atenção constante. Neste momento acho interessante falar de maneira breve sobre o meu entendimento do que seria terapêutico para estes pacientes.

O meu trabalho clínico com qualquer pessoa, seja psicótico ou não, baseia-se na minha compreensão de que o sujeito a minha frente, independente da patologia, é um ser digno de confiança e só pode ser entendido através de um olhar holístico, ou seja, ele só é compreendido na sua interligação com o todo. A minha prática tem por base os fundamentos da abordagem gestáltica, onde o terapeuta busca no processo terapêutico compreender com o seu cliente suas vivências, procurando não explicações causais mas sim respostas existenciais. O terapeuta acredita na capacidade de auto-regulação do indivíduo, entendendo que este se encontra em constante estado de troca com o mundo. O gestalt-terapeuta entende a pessoa a sua frente como um organismo capaz de satisfazer suas necessidades, desde que não existam bloqueios ou interrupções no fluxo natural, eu -mundo (1). Através de "experimentos" (2), o terapeuta faz com que o seu cliente conscientize-se no presente de seus bloqueios e dificuldades, buscando novas formas de lidar com a realidade.

Passo então a estimular a responsabilidade e a participação de cada membro na coordenação e manutenção do espaço operativo. Em cada sessão é definido pelos pacientes o que conversar, que atividade realizar. Utilizo-me também de experimentos, ou seja, quando possível procuro fazer com eles não apenas falem sobre o que desejam ou o que os incomodam, mas que vivenciem concretamente nas sessões, estas situações. A percepção que cada um tem de seu mundo existencial é compartilhada através da descrição de seus objetos - relações familiares, vínculos afetivos, rotina diária - no aqui -agora de cada sessão grupal. Usando uma linguagem fenomenológica, é mais importante neste espaço a descrição do que o julgamento. As indagações sobre o mundo do paciente se dão através do conhecimento da relação que ele estabelece com seus objetos, em sua vida diária. O relato da sessão, a seguir, descreve melhor o que foi dito acima.

Uma paciente, que vou chamar de Helena, não conseguia realizar qualquer atividade por acreditar que tudo o que ela fizesse "pegaria mal" e pudesse ser "possuída por espíritos". Sente-se feia, morta e passa as sessões dizendo: "Sou feia. Estou morta. Sou burra. Não posso desenhar, vai pegar mal. Vão filmar". Numa certa sessão foi parada a atividade e solicitado aos pacientes que escutassem o que Helena dizia. João, paciente com diversas internações e definido como crônico, sorri e diz: "Não entendo. Você não é feia. Eu te acho bonita. Isto é da sua cabeça. Como o desenho vai pegar mal?" Outra fala: "Não tem problema, se pegar mal a gente não se importa". Helena então sorri e sente-se estimulada a desenhar em conjunto com os outros. No final mostra os desenhos, que são elogiados e pergunta a terapeuta: "Não pegou mal?". Respondo: "Eu estou ótima, para mim não pegou mal". Peço que faça a mesma pergunta aos outros membros do grupo. Todos respondem que estão bem. Ela pergunta: "Vão filmar?" Peço, então, que ela, em conjunto com os outros, procure na sala uma máquina de filmar. Alguns riem e dizem: "Não existe uma filmadora aqui". Helena olha a sala e diz sorrindo: "Não pegou mal" e pede para colar o desenho na parede em conjunto com o dos outros pacientes. Desde então, ela passou a participar das diversas atividades propostas e tem até se arriscado a propor novas idéias, tais como: fazer bonecas de pano e estudar Inglês.

Torna-se interessante observar a capacidade destas pessoas em acolherem umas as outras. João é um paciente com mais de quarenta anos e com diversas internações em diferentes clínicas psiquiátricas. Passava a maior parte do tempo em seu quarto, vendo televisão ou dormindo. Possui muitos problemas com os familiares que não o aceitam e querem sempre interná-lo. Atualmente é um membro bastante querido por todos. Às vezes, devido a dificuldades familiares, volta a isolar-se, deixando de freqüentar o grupo. Os outros pacientes mobilizam-se com sua ausência e vão até a sua casa, que é próxima ao posto, chamá-lo. João sorri ao vê-los, arruma-se e retorna às atividades grupais. Sente-se neste momento uma pessoa significativa e importante para o grupo. Este paciente só foi internado duas vezes por curtos períodos (1 a 2 semanas) nestes três anos. Há um ano só se trata ambulatorialmente.

A entrada de outros membros também tem sido vivenciada de forma tranquila. Júlio participa, há pouco tempo, do espaço operativo. Fala pouco e apresenta grande dificuldade em realizar qualquer atividade. Foi encaminhado ao espaço com diagnóstico de esquizofrenia, sendo definido como um paciente com elevado grau de empobrecimento afetivo e embotamento intelectual. Numa das sessões onde cantávamos e mexíamos com instrumentos musicais, Tomaz oferece a Júlio o violão. Este aceita e começa, para surpresa de todos, a dedilhar diversos sons, mostrando o seu conhecimento do instrumento. Diz que aprendeu através de revistas e da observação de outras pessoas tocando. Passa então a ser admirado, principalmente por Tomaz que lhe diz: "Você vai ser meu professor, me ensina?" A partir dessa sessão Júlio tornou-se mais próximo do grupo e tem descoberto novas habilidades: joga dominó e monta quebra-cabeça mais rápido e com mais eficiência do que qualquer um, inclusive a terapeuta.

E importante mencionar o cuidado que sempre houve aos limites dados por estes pacientes - seu desejo de não participar de uma atividade, sua necessidade de deitar-se e dormir durante o grupo, não querer conversar e até poder afastar-se, retornando em seguida. A relação com estes ocorre a partir de dois pólos: contato, troca, presença; e respeito por suas necessidades de afastamento, retraimento e quietude.

Peter Pál Pelbart, num trecho de seu livro A Nau do Tempo Rei, compara os loucos aos anjos do filme Asas do Desejo: "Há na loucura um sofrimento que é da ordem da desencarnação, da atemporalidade, de uma eternidade vazia, de uma ahistoricidade, de uma existência sem concretude (ou com excesso de concretúde) sem começo nem fim, com aquela dor terrível de não ter dor, a dor maior de ter expurgado o devir e estar condenado a testemunhar com inveja silenciosa a encarnação alheia... E alguns de nós, terapeutas de psicóticos, que nos encarregamos dessa tarefa insensata de ajudar a encarnar os anjos, o que pretendemos com isso? ... Um Hospital-Dia para psicóticos ou um Serviço Experimental podem ser muita coisa, entre outras coisas podem vir a ser um dispositivo institucional a mais de normatização do social".

Retirei este trecho porque durante o meu trabalho com essas pessoas, esta tem sido a minha maior preocupação. O não desejo de que este espaço seja "um jardim de infância pedagógico, uma indústria de cera ou um depósito de estranhos personagens". (3) Acredito que estas pessoas têm podido ser sujeitos deste trabalho, na medida em que o encontro ocorrido no espaço operativo se faz através de um compartilhar, ou seja, de uma tentativa de um penetrar no mundo do outro, sem que exista uma intenção ou desejo de dizer qual é o mundo "normal" ou correto. Isto fica claro no relato descrito abaixo.

Joana sempre observa-me, nota se estou magra ou gorda, arrumada, cansada e comenta: "Ingrid, você está cansada, abatida; seu cabelo não está legal" (normalmente nestes dias eu realmente estou mais cansada); "Hoje você está bonita"; "Esta calça eu gosto em você". Eu escuto suas observações, agradeço os elogios e quando é o caso reforço sua percepção dizendo: "Joana, você está realmente atenta a mim. Eu hoje estou sentindo-me cansada e não me arrumei muito". Esta paciente normalmente chega às sessões com o cabelo e a roupa desarrumados. A relação estabelecida por ela com a minha imagem, a tem levado, naturalmente, a ficar atenta a sua auto-imagem. Atualmente no final das sessões, ela se aproxima do espelho, olha-se por alguns minutos e pergunta: "Tem escova? Tem batom?" - em função destas solicitações existe na sala uma caixa com escova, batom e blush. Passa então a escovar os cabelos, prendendo-os de diversas formas: com laços enormes, fitas... e a utilizar o batom como blush. Faz cada movimento com cuidado e atenção. Fica sempre atenta ao seu olhar dizendo: "Este olhar é de vampiro". "Hoje meu olhar está mais bonito". "Com este modo de olhar eu fico mais sedutora". Arruma a roupa, prendendo às vezes as mangas da blusa nas alças do sutiã para esta virar camiseta. Vai criando, a partir destes instrumentos, o seu referencial de beleza. Quando está satisfeita diz: "É, agora eu estou bonita, estou bem". Comentou, certa vez: "Neste espelho eu fico mais bonita do que no espelho da minha casa; no da minha casa eu não consigo ficar assim". Este ritual repete-se em todas as nossas consultas, sendo sempre original e criativo. Compartilho em silêncio desta construção. Vejo não apenas uma mulher enfeitando-se, mas sim uma pessoa tentando construir, naquele momento, uma imagem de beleza e sedução possível para si.

O comportamento desta paciente tem feito com que outra, já referida anteriormente, que se acha feia, comece atualmente a arriscar pequenas olhadelas no espelho. Numa sessão após olhar neste, disse: "Estou desarrumada. Meu cabelo está de maluca". Digo: "Quer a escova?" Ela me olha, sorri e aceita. Começa, lentamente, a pentear os cabelos, arrumando-os do jeito que prefere. Não aceita qualquer pintura. Ao final diz sorrindo: "Até que fiquei bonitinha" e vai embora.

Estes exemplos mostram como uma mulher a partir de um vínculo com outra, dita normal e que possui um outro referencial do que seja belo, pode criar a sua própria percepção e possibilidade de beleza. Desde que, é claro, exista uma relação onde se permita a esta pessoa manifestar sua singularidade - "talvez entendendo que ele está tocando outra música, ou compondo um ritmo novo ou inventando um instrumento inusitado. E aí, por mais que ele soe desafinado na orquestra da cidade, é preciso acomopanhá-lo musicalmente". (4) O espaço operativo tem tido a preocupação de oferecer diferentes dispositivos, para que estes pacientes possam reconstruir-se a partir de seus próprios recursos. Ainda referindo-me a Peter Pál Pelbart, lembro-me de um trecho do seu livro, A Nau do Tempo Rei, onde ele fala sobre a importância dos terapeutas de psicóticos estarem atentos à questão do tempo. Ele comenta: "É preciso dar tempo a essa gestação com que se confronta a loucura, a essas tentativas, a essa construção e reconstrução, a esses processos, a esses acasos. Um tempo que não é o tempo do relógio, nem do Sol, nem o do campanário, muito menos o do computador. Um tempo sem medida, amplo, generoso... A questão seria saber como as propostas alternativas em Saúde Mental pensam preservar a possibilidade de uma temporalidade diferenciada, onde a lentidão não seja impotência, onde a diferença de ritmos não seja disritmia, onde os movimentos não ganhem sentido apenas pelo seu desfecho".

No espaço operativo esta questão encontra-se sempre presente. É fundamental que eu suporte e conviva com o tempo destas pessoas em relação ao que fazer com o espaço oferecido. Em muitas sessões existe apenas o caótico, o desorganizado, em outras, o parado. Neste espaço não funciona o programável, o controlável. O planejamento de uma atividade de uma sessão para outra, pode ou não ocorrer. Muitas vezes combinamos algo para o próximo encontro e esta atividade não acontece, devido a uma mudança de interesses, ao desejo de fazer algo diferente ou mesmo o de nada fazer. É necessário que o terapeuta disponha-se a vivenciar o imprevisto, o não organizado, assim como a inércia e o não acontecer o que se planeja. Entretanto se for dado ao psicótico o tempo que ele necessita para organizar-se da sua forma, surgem propostas surpreendentes, como a descrita abaixo.

Joana fala numa sessão sobre o seu desejo de ser professora e dar aula para o grupo. Combinamos esta atividade para o próximo encontro. Todos comparecem. Uma paciente traz caderno e lápis. Joana traz seu livro. Arrumamos um quadro negro, giz, folha e lápis. Joana dá uma aula de Geografia onde o tema é espaço. Explica aos outros membros do grupo o fato de uma rua pertencer a um bairro, o bairro a uma cidade, esta a um Estado... Ao final propõe o exercício do livro: a construção de uma bússola, passando a descrever os pontos cardeais. Todos ficam atentos, alguns riem, mas atendem aos seus pedidos. Copiam, respondem as perguntas. Permitem que ela seja professora e tornam-se seus alunos.

Alguns destes pacientes solicitam além do espaço operativo, uma escuta individual que é realizada por mim, antes ou após o grupo. Outros se satisfazem apenas com o contato grupai recusando qualquer outra forma de atendimento. Todos possuem consultas regulares com o psiquiatra. Existe uma atuação conjunta entre Psicologia e Psiquiatria, através da discussão freqüente da evolução dos casos e possíveis estratégias terapêuticas - alteração na medicação, visitas domiciliares... Com relação aos familiares, é necessário que eu possua certa disponibilidade para ouvir suas angústias e dificuldades no trato com estes pacientes. Alguns se contentam com este contato, enquanto outros buscam atendimento psicoterápico.

É interessante notar como a possibilidade dada a estas pessoas de direcionarem as atividades grupais, as têm capacitado a direcionarem melhor suas vidas. Participam das festas realizadas no Posto: Festa de Natal, Festa Junina e reivindicam uma maior inserção nas atividades familiares. Com exceção do paciente já referido anteriormente, nenhum sofreu internação neste período de atendimento (três anos).

Além disso elas têm sido capazes de estabelecer relações diferenciadas com os diferentes espaços e pessoas com quem convivem. Numa consulta individual, Joana comenta: "Ingrid, outro dia eu perguntei ao rapaz da venda se ele achava que meu olhar era de vampira, embora eu fosse de cavalo (este comentário tem haver com a vinculação que esta paciente faz do surgimento de seus sintomas com um filme de Drácula. Acredita que foi mordida por um vampiro e correlaciona isto com o horóscopo chinês). Ele não entendeu nada e ficou olhando-me". Comentei: "É Joana, nem todo mundo entende o que você está falando. Você tem que conversar com as pessoas o que elas podem entender". Ela me olha e diz: "É verdade, com ele eu tenho que falar sobre o Fernando Henrique, sobre a falta de dinheiro...".

O estabelecimento de uma atmosfera de cumplicidade e afeto no espaço operativo, em muito tem contribuído para o êxito deste trabalho. Para isso foi necessário que eu me aproximasse da minha loucura, podendo assim compartilhar da loucura dos pacientes, e criar um contato real com eles.

Utilizando-me das descrições de Sérgio Buarque (5) sobre os elementos necessários para um bom contato com pacientes esquizofrênicos, eu diria: "A minha relação com estas pessoas tem se apoiado não no medo, estranheza e agressividade mas sim num "contato amplo e seguro", onde eu posso compartilhar do "incompreensível", da imobilidade, da periculosidade e permito-me participar dos "sintomas" e "delírios", sem uma "intenção de cura".

Finalizo com as palavras de Sérgio Buarque (6): "O trabalho com esquizofrênicos nos levam a perceber o poder do contato pessoal em toda sua plenitude... Um contato no qual o terapeuta participa da sintomatologia, permitindo se "sujar", assumir papéis falsos, dizer coisas sem nexo... Onde o esquizofrênico possa perceber que a loucura não é privilégio, nem desgraça puramente sua. É do terapeuta também. E se isto acontecer de uma forma atuantemente serena, com certeza o paciente perceberá que sua loucura não é um caminho de mão única; ele pode sair dela como faz seu terapeuta".

O trabalho com estas pessoas é um processo que se constrói e transforma-se a cada momento, a cada sessão.

"Não devemos parar de explorar
E o final de toda a nossa exploração
Será chegarmos ao lugar de onde partimos
E conhecemos o lugar pela primeira vez".
T.S. Eliot

 

Referências Bibliográficas

BERG, J. H. Van Den - O Paciente Psiquiátrico - Esboço de Psicopatologia Fenomenológica. Ed. Mestre Jou, 1981, SP.        [ Links ]

BENNETTON, JÔ -Trilhas Associativas. Ed. Lemos, 1991, SP.        [ Links ]

BUARQUE, Sérgio (1991) A Abordagem Gestáltica e a Esquizofrênia Mimeo, Trabalho apresentado no III Encontro Nacional de Gestalt-Terapia, realizado em Brasília em 1991.        [ Links ]

CARVALHO, Maria Margarida M. J. (Coord.) - A Arte Cura? Recursos Artísticos em Psicoterapia. Ed. Workshopsy, 1995, SP.        [ Links ]

CASSANO, Luiz Carlos Júnior - Uma proposta política para a psicose ou psicose - fascismo e multirealidade. Mimeo, dezembro de 1993.        [ Links ]

GUATTARI, F. e ROLNIK, Suely (1986) Cartografias do Desejo. Ed. Vozes, 1986, RJ.        [ Links ]

LAING, R. D. - O Eu Dividido, Ed. Vozes, 1987, RJ.        [ Links ]

PELBART, Peter Pál - A Nau do Tempo Rei. Ed. Imago, 1993, RJ.        [ Links ]

POLSTER, Erving e Miriam -Gestalt - Terapia Integrada.Ed. Interlivros, 1979, Belo Horizonte-MG.        [ Links ]

GINGER, Serge e Anne - Gestalt - Uma Terapia do Contato. Ed Summus, 1987, SP.        [ Links ]

 

 

(1) Serge e Anne Ginger-Gestalt - Uma Terapia do Contato.. Cap. 8 - A Teoria do Self. Ed Summus, SP, 1987.
(2) Experimentos: é um conceito e uma técnica da Gestalt - Terapia que busca restaurar a ligação da abordagem perifrásica ("falar sobre") com a ação. Através da experiência no presente da situação conflituosa, o indivíduo é capaz de romper a paralização perifrásica e mobilizar seus recursos a superação desta dificuldade, vivenciando formas novas de lidar com a situação. Ver Gestalt-Terapia Integrada Erving Poster - pág. 208 (vide bibliografia).
(4) Pelbart, Peter Pál - A Nau do Tempo Rei. Imago, 1993, RJ - pág. 70.
(5) Buarque, Sérgio - A Abordagem Gestática e a esquizofrenia. Apresentação no III Encontro Nacional de Gestalt - Terapia - mimeo.
(6) Buarque, Sérgio - Op. Cit.