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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.16 n.2 Brasília  1996

 

O Édipo não é só gregos: considerações psicanalíticas sobre um mito africano

 

 

Ralph Ribeiro Mesquita

Mestre em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ

 

 

Tomando um relato oriundo da mitologia africana, o autor destaca algumas possíveis "coincidências " entre o pensar mítico e o pensar científico produzido pela Psicanálise freudiana.

"Se desejarem saber mais a
respeito da feminilidade,
indaguem da própria
experiência de vida dos
senhores, ou consultem os
poetas..."
[ou leiam os mitos...]
(Freud, 1932:165)

 

O fato de Freud se utilizar com freqüência de materiais de origem mítica, não causa maiores surpresas. Basta rápida consulta à obra freudiana para se dar conta de que grande quantidade de temas míticos são abordados pelo mestre austríaco com o intuito de esclarecer idéias acerca do funcionamento do aparelho psíquico e seus mecanismos.

Sem sombra de dúvida, o mito Édipo Rei, de Sófocles, representa importante papel no processo de edificação da Psicanálise. Freud vai buscar na mitologia grega elementos julgados por ele como expressões de manifestações do inconsciente, não apenas do homem grego recuado no tempo, senão, também, do homem de seu tempo (e de nosso). Assim, diz ele em A Interpretação dos Sonhos:

Se Oedipus Rex comove um auditório moderno não menos que o grego da época, a explicação somente pode ser no sentido de que seu efeito não está no contraste entre o destino e a vontade humana, mas que deve ser procurado na natureza particular do material sobre o qual aquele contraste é exemplificado. Deve haver algo que torna uma voz dentro de nós pronta a reconhecer a força compulsiva do destino no Oedipus...1

O que parece fundamental nesta decisiva passagem é o sentido de universalização do inconsciente, isto é, pode-se sustentar que Freud postula continuidade qualitativa do inconsciente, independente de época ou lugar onde se apresenta. De outra maneira: alguns conteúdos do inconsciente são atemporais e independem do lugar onde se revelam. O conflito edipiano, para Freud, é fenômeno universal presente em todo e qualquer grupo humano, ou melhor, a estrutura desse conflito pode ser reconhecida onde quer que se encontre o homem em sociedade.

A partir de outra proposta teórica, pode-se estabelecer algumas considerações quanto à universalidade do inconsciente, levando em conta os discursos míticos. Ainda que de modo distinto de Freud, Lévi-Strauss acredita na universalidade dos processos inconscientes, apontando as produções míticas como típicos exemplos disso. Para ele, os mitos possuem unidades últimas - os mitemas - comparáveis à estrutura lingüística. Sustenta que os mitos conversam entre si e que, qualquer que seja o ponto do planeta, sempre serão encontradas temáticas semelhantes. 2 Se aceitas como verdadeiras as premissas de universalidade do inconsciente e de seus conteúdos primários, pode-se tentar empreender uma viagem ao âmago de um discurso mítico, tendo como parâmetro interpretativo a teoria psicanalítica do complexo de Édipo. Vale ressaltar que não se pretende efetivar psicanálise das pulsões dos personagens que figuram no relato, isto é, não se quer colocá-los no divã e submetê-los à interpretação de seus desejos inconscientes, tal como com um analisando. Antes, tem-se,por objetivo destacar algumas possíveis "coincidências" entre o pensar mítico e o pensar científico produzido pela Psicanálise, ou seja, aproximar duas formas de pensar o mundo, posto que julgado possível o estabelecimento de significativas relações entre elas.

A fim de que se efetive a análise, tomar-se-á um relato oriundo da mitologia africana. O texto reproduzido em seguida faz parte do repertório de histórias sobre as epopéias de deuses cultuados na porção extremo-sul ocidental da África3, mais especificamente por grupos de língua yorúbá4 da Nigéria e países vizinhos, e trata da transformação de um tipo de sangue - o menstrual - em penas vermelhas denominadas ekódide.5 Como poderá ser observado mais claramente, este mito trata, fundamentalmente, da relação entre o fluxo menstrual e o poder de gestação, símbolo máximo das entidades sobrenaturais femininas.

 

II

O texto informa que uma sacerdotisa cujo nome era Omo-Òsun (filha ou descendente de Òsun6) servia a Órisànlá7 e estava encarregada de zelar por seus paramentos e particularmente por sua coroa. Alguns dias antes do festival anual, umas seguidoras de Òrísánlá, invejosas da posição de Omo-Òsun decidiram roubar a coroa e jogá-la nas águas. Quando Omo-Òsun, descobriu o furto, seu desespero foi profundo. Uma menina que ela criava aconselhou-a a comprar, no dia seguinte de manhã, o primeiro peixe que encontrasse no mercado. No dia seguinte, Omo-Òsun não conseguiu encontrar nenhum peixe e foi somente na sua volta que encontrou um rapaz que trazia um grande peixe à cabeça. Chegando à sua casa Omo-Òsun não conseguia abrir o peixe. A garota apanhou um pedaço de faca muito usado - cacumbu - e facilmene conseguiu fender a barriga do peixe no interior da qual luzia a coroa. Chegando o dia da grande cerimônia, as invejosas sabendo que Omo-Òsun havia miraculosamente encontrado a coroa, decidiram recorrer a trabalho mágico para desprestigiar Omo-Òsun em frente a Òrísánhá. Elas colocaram um preparado na cadeira de Omo-Òsun, situada ao lado do trono de Òrísánhá. Todo mundo estava reunido e esperava em pé a chegada do grande Oba8. Quando chegou, sentou-se e fez sentar-se todos os presentes. Em seguida pediu a Omo-Òsun que lhe desse os paramentos. Quando ela quis levantar, foi incapaz de fazê-lo. Tentou veementemente várias vezes até conseguir, enfim, mas o preço do grande esforço foi desgarrar as partes baixas de seu corpo que começaram a sangrar copiosamente, manchando tudo de vermelho. Òsàlá, cujo tabu é o vermelho, levantou-se, inquieto, e Omo-Òsun, aturdida e envergonhada, fugiu. Segue-se uma longa odisséia durante a qual Omo-Òsun foi bater à porta de todos os òrìsà e nenhum deles quis recebê-la. Enfim, ela foi implorar a ajuda de Òsun que a recebeu afetuosamente e transformou o corrimento sangüíneo em penas vermelhas do pássaro odide, chamadas ekódide ou ikoode que iam caindo dentro de uma cabeça, colocada para recebê-las. Diante desse mistério -awo-, a transformação do corrimento de sangue em ekódide, todos regozijaram-se, começando os tambores a rufar e a correrem de todas as partes para assistir ao acontecimento:

Yeye sawo: Mãe fez mistério
(Mãe conhece segredo, é mistério).

A festa se organizou e todas as noites Òsun abria as portas para receber os visitantes que, entrando, apanhavam um ekódide e colocavam cauris (dinheiro) na cuia colocada ao lado. Todos os Òrisà vieram tomar parte no acontecimento. Finalmente, o próprio Òsàlá foi atraído pelas festividades. Apresentou-se em casa de Òsun e, como os outros, saudou-a fazendo o dodobale9, apanhou um ekódide e o prendeu em seus cabelos. Um cântico relembra para sempre essa circunstância:

Odofin dodobale k'obinrin
Odofin (Òrìsànlá)
saúda prostrando-se frente à mulher.

Mesmo o grande òrìsà Funfun10 faz o dodobale -alongando-se no solo, tocando-o com o peito em sinal de respeito e de submissão - diante do poder de gestação11.

 

III

De início percebe-se que o relato fala, fundamentalmente, de uma trajetória onde o elemento "perda" está presente de forma decisiva. Na verdade, trata-se de uma sucessão de perdas e recuperações (ou tentativas de recuperação). Mais ainda, o texto põe a relevo a luta pela não perda da posse de algo considerado extremamente importante, assim como do prestígio oriundo dessa posse.

Entende-se poder ser efetuada uma leitura psicanalítica do texto a partir de diversos ângulos, isto é, tomar este ou aquele personagem e discutir teoricamente o significado que o recobre, bem como sua articulação com os demais personagens da trama. Aqui se opta por colocar no centro da trama, para fins de tratamento teórico, a personagem Omo-Òsun, entendendo que esta mobiliza elementos simbólicos importantes para o que se objetiva empreender.

Ora, se a teoria do complexo de Édipo revela-se um dos mais importantes postulados da construção psicanalítica freudiana, mais do que um jogo com características meramente incestuosas, tal complexo leva a termo a luta pela manutenção de uma situação imaginária onde a possibilidade de completude é tida como francamente viável desde que sejam eliminados da trajetória os elementos que a obstaculizam.

Dividindo o relato mítico a partir das passagens mais significativas e aproximando-as da construção psicanalítica, com relação à posição que ocupa a figura de Omo-Òsun, tem-se que:

1º) Uma mulher - não todas - detém a exclusividade da posse de elementos considerados como símbolos máximos de poder e prestígio, quais sejam, os paramentos e, particularmente, a coroa do "grande rei".

2º) A guarda dos pertences do "grande òrìsá" (Òrìsànlá) desperta o sentimento de inveja por parte de um grupo de mulheres.

3º) Começa a efetivar-se a perda do domínio sobre os pertences, uma vez que a coroa de Òsàlá é roubada.

4º) A recuperação, ao mesmo tempo que indica a manutenção da capacidade de guarda, desperta forte sentimento de vingança e o estabelecimento de estratégia mágica capaz de pôr fim ao prestígio da guardiã.

5º) Embora tivesse consigo os paramentos, sua reputação é abalada pela exibição de algo tido como tabu para o grande rei, isto é, o sangue, ou melhor, o vermelho expresso por um tipo de sangue.

6º) Após longa peregrinação, por intermédio de magia e conseqüente transformação do sangue em penas, pode ser restabelecida a harmonia, pelo reconhecimento de um mistério.

A primeira informação distingue a da guarda de importante objeto ligado ao mais respeitado dos deuses e remete especialmente ao primeiro momento de complexo de Édipo vivido pela menin. qual seja, o momento em que deseja receber do pai o que considera lhe ser de direito.

Sabe-se que a aceitação da castração não é algo fácil de ser empreendido, uma vez que a primeira ligação que o "pequeno infans" estabelece com o mundo é marcada por forte sentimento de exclusividade e completude. Freud sustenta que a menina viverá de forma bastante intensa e importante uma fase pré-edipiana, na qual a mãe é tomada como objeto. Assim como no caso do menino, "o primeiro objeto de uma mulher tem de ser a mãe; as condições primárias para uma escolha de objeto são, naturalmente [via narcisismo primário], as mesmas para todas as crianças".12 Mas ela (menina) deverá superar uma fase governada pela inveja do pênis, caracterizada por uma posição masculina ("complexo de masculinidade") e caminhar rumo ao acesso à feminilidade pela assunção de uma posição particular face ao fato inequívoco de sua castração, ou melhor, pela falta de pênis. Dessa maneira, dirigindo contra seu primeiro objeto a censura por não ter vindo ao mundo dotada de pênis, abandoná-lo ou substituí-lo por um objeto imaginariamente mais forte e capaz de indenizá-la, desenha-se como solução possível de aplacar sua ferida narcísica.

Se é verdade que o drama edípico mobiliza uma quantidade significativa de energia na criança, não é menos verdadeiro o fato de que mobiliza, também, elementos da história de cada um dos genitores. Ora, se do ponto de vista psicanalítico a guarda dos pertences de Òrisànlá puder ser equiparada a fantasia de tudo possuir, a inveja por parte das outras mulheres talvez possa representar, além de uma revivescência edipiana, o primeiro movimento rumo ao rompimento da relação narcísica até então sustentada pela "certeza" de que o outro é o detentor único do poder, representado pela posse do pênis. Por outro lado, é esse mesmo movimento que introduz um outro pedido (ou uma variação do mesmo) e possibilita à menina sua vivência edipiana. "Ela abandona seu desejo de um pênis e coloca em seu lugar o desejo de um filho, com esse fim em vista, toma o pai como objeto de amor".13

A questão da inveja revela-se particularmente interessante uma vez que imspede a permanência de um estado também gerador de ciúmes. No entanto, trata-se de um ciúme que aponta para o desejo, não de ter qualquer objeto, mas aquele considerado como único capaz de satisfazer plenamente. Na verdade, como diz Renato Me-zan, "o objeto da inveja é um objeto imaginário, fantasmático... O suporte da inveja é uma coisa empírica que encarna esse objeto imaginário..."14 Mas Mezan também sustenta que o objeto da inveja não pode ser compartilhado, posto que é imaginado como único;15 há idealização pela supervalorização e atribuição de um estatuto de perfeição. 16

Aqui se faz necessário um breve questionamento: se o objetivo da inveja é privar o outro de seu objeto e, no mito, tal objetivo é realizado, por que as "mulheres invejosas" não ficam com o objeto do roubo e assim conquistam, ainda que imaginariamente, o prestígio de que desfruta Omo-Òsun?

Talvez se entenda o sentido da inveja das outras mulheres se levada em conta a necessidade do processo de castração, pelo impedimento da realização do desejo incestuoso. Assim sendo, as mulheres invejosas estariam no lugar daquela que começa a efetivar o corte necessário para o rompimento da relação edipiana, isto é, a mãe. Como é sabido, a presentificação da lei paterna, representada pela palavra, dá-se à medida em que é reconhecida pela mãe, tomando valor de lei, tornando-a efetiva e eficaz sobre o desejo do "pequeno infans", assim como permitido ao sujeito ter acesso, como diz Lacan, ao "Nome-do-Pai" ou à metáfora paterna. Reconhecer a lei do pai significa admitir a própria castração e "saber" da impossibilidade de completude. Uma vez estabelecida a falta, os objetos disponíveis serão sempre provisórios. As mulheres "sabem" (porque castradas) que o motivo de sua inveja não reside no objeto real contra o qual dirigem seu (re)sentimento; antes é sobre o falo imaginarizado que recai a proibição. O que importa nesse momento é menos a posse (impossível) da coroa do que o seu (necessário) roubo.

O roubo da coroa é algo que se estrutura em nome da vida, que prepara o terreno para que a semente possa germinar, para que seja possível a individuação representada pelo terceiro elemento - o procriado -, terceiro termo capaz de fazer movimentar o circuito das trocas simbólicas. Como ressalta Hélio Pelegrino, "o falo é um objeto mítico, imaginário, impossível, uma vez que não existe nada que possa conferir a quem quer que seja a completude - a não ser a morte..." 17

Não parece necessário estender-se mais sobre a questão da inveja e de suas conseqüências, mas vale deixar sublinhado sua importância e relação com o narcisismo primário. "O desejo que acompanha a inveja é assim determinado como um desejo de coincidência, de restauração da plenitude narcísica rompida com a descoberta do limite e da diferença, isto é, do intervalo entre um e outro".18 Se se acostumou a pensar o complexo de Édipo no menino, seu desenrolar a partir do modelo masculino, o mesmo não se pode falar quando o que está em pauta é o processo por que passa a mulher. Aqui, a movimentação dar-se-á de modo bastante peculiar: ela deverá abandonar o que até então constituiu sua principal zona erógena - o clitóris - em favor de outra - a vagina -, e terá que abandonar seu primeiro objeto de amor, substituindo-o, mas a ele devendo retornar, via identificação. 19

Se, no caso do menino, é a ameaça de castração que o encaminha para a saída do complexo, em se tratando da menina, é a tentativa de compensação por sua "inferioridade orgânica" que a introduz na trama edípica mediante um deslizamento em direção ao pai e o estabelecimento de uma equação simbólica na qual o pênis cede lugar ao desejo de receber deste um bebê. É claro, como bem sustenta Freud, que o que efetivamente conduz a menina ao pai é o seu desejo de possuir o pênis negado pela mãe. Porém, para que seja possível a situação feminina, este deve ser substituído por um equivalente, qual seja, um bebê.20

Após ter sido efetuado um primeiro movimento em direção a perda definitiva da guarda, a subsequente tentativa de recuperação exibe características próximas do sentido do desejar ter um filho. Assim como, em termos psicanalíticos, processa-se uma transformação na formalização do pedido ao pai, no mito, a coroa é recuperada de forma indireta (e, curiosamente, dentro da barriga de um peixe). Quando tudo parecia perdido, é com o auxílio de uma criança que a coroa é reencontrada, mas não sem certa dose de sacrifício. 21

A própria Omo-Òsun não consegue encontrar o peixe. É somente na sua volta, talvez já tendo "desistido" de procurá-lo, que encontra o rapaz com o peixe. Mas é uma menina (que ela cria) que, munida de algo já muito usado (conhecido), facilmente retoma o objeto perdido. Ora, o que sustenta, em última análise, o desejo de ter um filho senão os resquícios do narcisismo primário, algo já de há muito conhecido e estimado (criado)?22

A recuperação da coroa reativa a esperança de manutenção da exclusividade da guarda e do prestígio do "grande rei". Algo deverá ser feito para que esse estado de coisas seja definitivamente abolido. O feitiço é a solução encontrada para pôr fim a ameaça e, quando da presença de Òrìsànlá, o plano se concretiza. Profundamente envergonhada e humilhada diante da reação do grande Oba - o "Não-do-Rei" -, é com Òsun, a "grande Mãe", que a personagem poderá identificar-se.

A exibição do sangue menstrual, tabu para Òsàlá, põe fim ao reinado imaginário de Omo-Òsun que inicia uma peregrinação com o fim de aplacar sua vergonha.

É interessante notar que, como ressalta o mito, é somente depois de ter batido à porta de vários deuses que Omo-Òsun consegue refúgio e finalmente, via magia, passa da condição de repúdio à admiração. Entende-se que a dificuldade em encontrar acolhida se dá pelo fato de que o reconhecimento da castração não é algo fácil de ser empreendido. Omo-Òsun exibia, não simbolizada, sua (e de todos) grande falta.

Se a marca da castração está inscrita no próprio corpo da mulher, pela ausência de pênis, a feminilidade parece funcionar como algo capaz de amenizar esta ferida narcísica. O reconhecimento e o desejo do outro, o brilho do olhar do homem em direção à mulher, surgem como recompensa pelo objeto para sempre perdido. 23 Mas, antes, a passagem pelo Édipo, pela castração (para ambos os sexos), introduz o sujeito no mundo do símbolo, da linguagem, da cultura, do desejo. Deixar de ser o objeto do desejo do outro, isto é, o falo, significado da falta, é o passaporte para a assunção do próprio desejo, ainda que sempre referido à situação primitiva.

Se a trajetória do complexo de Édipo, nos meninos, requer apenas uma linha reta no sentido das identificações, no caso das meninas, estas devem abandonar seu primeiro objeto de amor e a ele retornar, via identificação secundária.

O final do mito mostra como Omo-Òsun passa a ser reconhecida enquanto detentora de um grande mistério: o poder de transformar, de individualizar, de gestar. Poder exclusivo das mulheres, Òsun (ou Omo-Òsun) personifica a própria feminilidade, ao mesmo tempo em que sublinha a necessidade do encontro para que a vida se concretize. Agora todos os deuses podem ter acesso, ainda que indiretamente, ao mistério da transformação porque significado, simbolizado. Assim, mesmo o grande Òrisà Funfun, após depositar cauris (búzios, i. e., dinheiro24), pode exibir e reconhecer o símbolo do poder genitor feminino. Na verdade, o próprio reconhecimento se dá mediante troca simbólica -dinheiro-ekódide -, ambos equivalentes do mesmo significado: o da falta.

É antes de tudo por amor que Òsun abre sua porta. Omo-Òsun é recebida afetuosamente, seu pedido é acolhido; Òsun transforma, aplaca, (re)significa. É em nome do amor e da vida que o mistério da transformação pode acontecer.

É antes de tudo por amor que a barreira contra o incesto tem de ser erigida, para que um novo pedido (ou o mesmo transformado) seja possível e, via identificação, inaugure o sujeito propriamente dito.

 

IV

A passagem pelo Édipo provoca mudanças significativas na relação do indivíduo com o mundo, ou melhor, é só a partir dele que se pode, efetivamente, falar de um sujeito, ainda que para sempre barrado.

Analogamente, o texto utilizado nesta análise também marca uma passagem ou, se se quer, uma mudança de estado. Aproximando-se da prática religiosa do candomblé, 25 pode-se entender de forma mais clara o sentido do mito. O que significa, na prática, ekódide?

Caracterizada fundamentalmente como uma religião iniciática, o condomblé exibe uma série de rituais ricos em simbolismos e complexidade. A iniciação é um rito de passagem que permite o ingresso em um mundo regido por outra lógica. Diz-se que o iyàwó - um iniciado - que não usou ekódide não pode ser considerado verdadeiramente iyàwó. Por outro lado, o texto informa que o ekódide é criado (misteriosamente) pela transformação do sangue menstrual e que todos os órìsà o carregaram. Viu-se ainda que o reconhecimento do feito permite que seja aplacada uma situação anterior de decepção e vergonha.

O momento mais importante da iniciação é aquele em que o iyàwó, 26 exibindo na testa um ekódide, profere seu novo nome - o oruko27 - e então pode ser, efetivamente, considerado um novo membro da comunidade, apto a participar de suas movimentações comunicacionais. O momento do nome fala, ao mesmo tempo, de morte e renascimento simbólicos. O que ficou para trás está definitivamente perdido em favor da possibilidade de individuação.

Nesse sentido, o ekódide, representante do elemento procriado, da individualização dada pela iniciação, da mesma forma que a castração, marca a entrada em uma outra ordem caracterizada pela alienação de si mesmo, assim como sublinha a necessidade eterna de complementação pelo reconhecimento da existência do mistério que não poderá ser esgotado por nenhum saber. Se o real é impossível, saber do mistério da vida (e da morte) também o é. Só se tem acesso a eles via símbolo; seus segredos estão por eles mesmos guardados.

Nas palavras de Pelegrino, "a castração simbólica (...) marca o segundo nascimento humano, ou melhor: introduz a criança no universo do simbólico e, como tal, faz dela candidata a sócia plena da sociedade dos homens". 28 E, dizemos nós, o ekódide, testemunha da individualização, marca (também) um segundo nascimento, posto que introduz o sujeito em um outro universo e, como tal, faz dele candidato a sócio pleno de uma sociedade governada por uma ordem que o aproxima (mas não o iguala) de símbolos e deuses que não desejam; senão, poder desejar e fazer com que o Destino se cumpra.

 

Referências Bibliográficas

FREUD, S. (1900). A interpretação dos sonhos. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro, Imago, 1980, v. IV, p. xvi-360.        [ Links ]

(1925). Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro, Imago, 1980, v. XIX, p. 301 -320.        [ Links ]

(1931). Sexualidade feminina. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro, Imago, 1980, v. XXI, p. 255-279.        [ Links ]

(1932). Novas conferências introdutórias sobre Psicanálise. Conferência XXXIII: Feminilidade. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro, Imago, 1980, v. XXII, p. 139-165.        [ Links ]

MEZAN, R. A inveja. In: CARDOSO, S. et al. Os sentidos da paixão. São Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 117-140.        [ Links ]

PELEGRINO, H. Édipo e a paixão. In: CARDOSO, S. et al. Os sentidos da paixão. São Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 307-327.        [ Links ]

SANTOS, J. E. Os nàgó e a morte: pade, ase se e o culto égun na Bahia. Petrópolis, Vozes, 1976. (Mestrado, v.4)        [ Links ]

 

 

2 Para melhor entendimento das questões relativas aos mitos, ver LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. 3. ed., Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1967, p. 237-265 (A estrutura dos mitos).
3 As entidades sobrenaturais deste espaço geográfico africano são conhecidas, genericamente, pelo nome de òrisà (orixá) e estão relacionadas a aspectos específicos da natureza e/ou de atividades próprias dos grupos sociais.
4 Para melhor compreensão do sentido do texto reproduzido e das palavras e expressões em yorúbá, manteve-se a grafia tal como convencionou-se internacionalmente. As vogais, quase sempre, mantêm o mesmo som que em português, com exceção das letras e, o e s que têm, respectivamente, os sonos de "é", "ó" e "x". A letra y tem o som de "i" e o w tem o som de "u". Os acentos (') e (') correspondem, respectivamente, aos tons alto e baixo.
5 Ekódide é uma pena vermelha da cauda de uma espécie de papagaio africano conhecido por odide ou odidere, e é revestida de significativa importância religiosa quando, principalmente, da iniciação. De modo geral, essa pena (bem como todas as penas) representa o elemento procriado, a individuação. Para uma importante ocasião em que o ekódide, sob o nome de egán, é utilizado para marcar a distinção do elemento procriado, ver Santos, 1976:171-181.
6 Òrisà feminino, deusa do rio africano do mesmo nome, símbolo do poder de gestação.
7 Òrisà mais importante do panteão iorubano, lit. "rei do alà" (grande pano branco). O mesmo que Òsàlá e Òrisànlá.Também Babanlá("o grande pai").
8 A palavra Oba significa, literalmente, "rei".
9 O dodobale, ou dobale, é a forma como, no Brasil, os iniciados para òrisà masculinos reverenciam sacerdotes, deuses e lugares sagrados; consiste em alongar-se no solo, tendo o peito encostado no chão e os braços estendidos ao longo do corpo. O correspondente para pessoas com òrisà femininos é conhecido por ika e consiste em um movimento que objetiva o toque alternado dos ombros no solo, a partir de uma posição de semiflexão do corpo no chão.
10 O conjunto dos deuses do panteão iorubano pode ser distinguido, dentre outras maneiras, de duas formas: deuses "brancos" (ou do "branco") - os òrisà funfun-, e deuses que exibem, ao contrário dos primeiros, elementos ligados a outras cores, isto é, que veiculam âsepertencentes, principalmente, ao vermelho e ao preto.
11 Santos, op.cit.,p. 87-88.
12 Freud, 1931:262-263. Grifou-se.
13 Freud, 1925:318.
14 Mezan, 1987:123.
15 Cf. Mezan, ibidem, p. 122.
16 Cf. Mezan, ibidem, p. 126.
17 Pelegrino, 1987:315.
18 Mezan, op.cit.,p. 135.
19 Cf.Freud,1931:259 e ss.
20 Cf. Freud, 1932:157-158.
21 Talvez seja demais estabelecer relação direta entre o fato de a coroa ser reencontrada na barriga de um peixe e o desejo de ter um filho do pai. Porém, em ambas situações, parece claro que recuperação do objeto perdido só pode (imaginariamente) acontecer de forma indireta ou "mais sofisticada". Por outro lado, atente-se para o fato de que é um rapaz (i. e., um homem) quem possibilita a retomada da esperança de manutenção da guarda da coroa.
22 É interessante notar que os movimentos de busca e retomada da coroa são estimulados (e mesmo levados a termo) por uma menina que Omo-Osun, cria. O que tal fato pode sugerir, se mantida a analogia com os postulados psicanalíticos, é a possibilidade, ao mesmo tempo, de transformação e permanência de um desejo infantil; a figura da criança aponta exatamente para o lugar da crença na recupeação do objeto perdido.
23  É claro que a marca da castração não é exlusividade da mulher, ao contrário, está inexoravelmente presente em quem quer que se pretenda sujeito. Entretanto, sustentada imaginariamente pela premissa universal do falo, premissa esta que encontra respaldo na presença concreta do pênis, a constatação da incompletude parece ser mais imediatamente perceptível na mulher, por razões da ordem da anatomia humana. A ausência de pênis na mulher ou, o que vem a ser equivalente, a conclusão de que não vai crescer, estabelece distinção na maneira como cada um dos sexos irá equacionar suas faltas.
24 Antigamente a moeda de troca utilizada nos reinos iorubanos era o búzio ou cauri, chamado owó-eyo;ainda hoje alguns resquícios deste uso podem ser reconhecidos, principalmente em cantigas e práticas rituais e os búzios figuram, dentre outras coisas, como indicativos de riqueza ou abundância.
25 Religião de origem africana de culto aos òrisà praticada no Brasil, principalmente nos Estados da Bahia e Rio de Janeiro.
26. Lit. noiva, mulher recém-casadà, esposa. Ritualistjcamente refere-se ao recém-iniciado.
27 O oruko è o nome pelo qual o novo iniciado é conhecido no grupo religioso.
28 Pelegrino, op. cit., p 322.