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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.16 n.3 Brasília  1996

 

Equilíbrio da diferença, a comunicação reabilitadora

 

 

Fábio A. Moraes - relatorI; Andréa Christello MileskiII; Flávia R. PetryIII; Maristani WeiandIV

I(Psicólogo)
II(Terapeuta Ocupacional)
III(Assistente Social)
IV(Estagiária de Jornalismo)

 

 

O grupo como uma alternativa para ressignificar as produções psicanalíticas. Experiência que toma de empréstimo conceitos da reabilitação social, da clínica psicanalítica e do institucionalismo: a loucura e a sua circularidade nos espaços sociais.

" Comunicar é tornar comum, estabelecer comunhão, fazer participar da comunidade, compartilhar, através da troca de informações." (BELTRAMI, 1976, p.24)

O grupo enquanto alternativa para ressignificar as produções psicanalíticas.

Experiência que toma de empréstimo conceitos da reabilitação social, da clínica psicanalítica e do institucionalismo: a loucura e a sua circularidade nos espaços sociais.

Em primeiro lugar, gostaríamos de frisar que o presente trabalho se encontra em fase de elaboração. Por isso, o que passaremos a descrever, tanto no âmbito da atividade prática quanto teórica é o resultado das discussões que ainda estão ocorrendo entre os técnicos que participam do trabalho.

Pensamos que são vários os caminhos pelos quais este trabalho poderia trilhar. Mas seremos obrigados, para não incorrer no risco de perder a coerência, a demarcar alguns pontos que irão nos guiar nesta caminhada. Demarcaremos três: a questão grupal, a interdisciplinaridade e a reabilitação social. Não nos comprometeremos em seguir exatamente esta ordem.

Antes, porém, caberia situarmos um pouco a nossa experiência.

A nossa experiência é recente. Este fato, talvez, nos impulsiona a ter uma vontade muito grande de inventar, de criar novas formas de lidar com uma problemática complexa e, historicamente, ligada à invenção do que chamamos de "o louco". Estamos falando das formas de "tratar" o louco (compreendido aqui como o sujeito que vive a "condição psicótica" (GOLDBERG, 1994).

Tivemos a oportunidade de acompanhar alguns movimentos que passaram a questionar os modelos convencionais de tratamento da psicose. E o modelo convencional é o que coloca como centro da atenção o hospital psiquiátrico. Este representa uma forma de lidar com o enfermo que é baseada na segregação e no isolamento social. Logo descobrimos que o modelo de atenção do hospital não se refere, somente, à existência do hospital como ambiente físico. Falamos de uma maneira de ver o sujeito psicótico, de um modelo que está presente em outros lugares e que, muito provavelmente, se situa na relação técnico-paciente, exigindo-nos uma análise mais cuidadosa do lugar que ambos estão ocupando, no inconsciente e no social, na transferência e nas relações de poder (FOUCAULT, 1978).

Assim, a experiência que ora discutimos surgiu dentro do movimento que questiona a visão puramente "psiquiatrizante" da doença. E o lugar onde tivemos condições de colocar algumas dessas idéias em prática foi no Serviço Municipal de Saúde Mental de Novo Hamburgo, que desde 1989 vem desenvolvendo ações de prevenção primária, secundária e de reabilitação social, tendo como prioridade o atendimento do sujeito em "condição psicótica". É no interior desse Serviço que funciona o Centro de Convivência, que reúne um grupo de 30 usuários em torno de uma série de atividades que situamos como reabilitadoras. Reabilitação social, conceito que adiante questionaremos.

O Centro de Convivência funciona das 8h às 16h , podendo o usuário permanecer todo este período ou comparecer em alguma atividade específica. O acesso ao Centro é o mais livre possível. As principais atividades são: brechó, aprender e ensinar (aula), grupo do jornal, vídeo show, horto, reunião administrativa, Grupo Renascer e outras atividades livres ou previamente programadas (atelier de pintura, cozinha, roda de música, chimarrão, etc.). A idéia básica do Centro de Convivência é que ele deva ser um espaço aberto às manifestações espontâneas dos seus usuários, podendo eles criar as suas redes sociais e de comunicação, através das atividades ou da "simples" convivência. O eixo central do Centro de Convivência é a autogestão, a busca constante de que os próprios usuários possam definir as atividades (que efetivamente são definidas por eles), a forma como elas ocorrerão, o tempo, as pessoas envolvidas, os objetivos e a administração dos recursos disponíveis. A dimensão coletiva está sempre presente. Coletivo tomado como grupo, mas também como efeito dos atravessamentos de ordem social que devem sempre ser considerados. O que queremos dizer é que não compreendemos o grupo apenas como resultado de interações de ordem psicológica, mas fundamentalmente interações de ordem representacional, onde cada sujeito busca um determinado lugar para se diferenciar.

Dentro desse "espírito" passamos a discutir com os usuários a idéia de criarmos um jornal. Um "veículo" (palavra que retomaremos o sentido mais adiante) onde eles pudessem organizar um material que, de qualquer forma, já estava sendo produzido. Eram poesias sendo fixadas nas paredes do Centro de Convivência, desenhos, avisos, lista dos aniversariantes, combinações de passeios, oferecimento de pequenos serviços, etc. Anteriormente, houve duas tentativas de confeccionar um pequeno jornal, mas o grupo não conseguiu dar continuidade. Eles necessitavam da outra dimensão que um trabalho como este exige: a dimensão do coletivo institucional - ou poderíamos dizer do "terapêutico institucional"? Em suma, que a instituição criasse alguns instrumentos facilitadores. Afinal de contas, o que os usuários fossem dizer, através do jornal, também interessaria à instituição, movimentando forças produtivas.

Começamos com o que, a princípio, passamos a chamar "a reunião do jornal". Ela iria acontecer uma vez por semana, nas terças-feiras, com uma hora e meia de duração. Hoje falamos em equipe do jornal e, normalmente, usamos boa parte da manhã para discutir os vários assuntos que envolvem o trabalho, como: conteúdo das editorias (escolha dos temas e entrevistas), leitura dos textos e poesias (o grupo indica o que vai ser, ou não, publicado), a questão dos anúncios, a distribuição e a divulgação. O jornal circula no Serviço de Saúde Mental, nos Postos de Saúde, em outros órgãos da Prefeitura e na UNISINOS (Universidade do Vale do Rio dos Sinos). Por decisão dos participantes, o grupo é aberto à comunidade, podendo outras pessoas contribuir com material, como se o jornal fosse um canal concreto de ligação com o mundo externo. Externo à instituição saúde-mental e externo ao material subjetivo (inconsciente) que os sujeitos e o grupo produzem. Às vezes a reunião transforma-se num sarau, às vezes numa entrevista coletiva (com convidados) e às vezes numa aula de português. Aliás, do grupo do jornal derivou-se o trabalho com professoras voluntárias que discutem o uso da língua e alfabetizam os usuários que não sabem ler e escrever.

A coordenação do grupo é feita pelo psicólogo, com a co-coordenação da terapeuta ocupacional, da estagiária de comunicação (UNISINOS) e da assistente social.

O grupo tem algumas regras básicas. Primeiro, toda a contribuição para o jornal deve ser falada e depois escrita. Quem não sabe escrever pede ajuda para quem sabe. Assim, poderá dar passagem a outras formas de comunicação, através de outros códigos e através de um outro e para um terceiro, o leitor.

Servimo-nos do recurso "jornal" para orientar processos terapêuticos, onde a atividade serve como meio através do qual se tem acesso ao "mundo interno" do usuário, oportunizando as mais variadas expressões. Trata-se de um "campo terapêutico", conceito que BENETTON (1991) utiliza.

Sempre é oportuno, quando o assunto se refere a grupo, trazer as contribuições da nossa, ainda, grande referência: a psicologia social de Pichon-Rivière(1986). Em colaboração com o Bauleo, o referido autor trabalha a noção de tarefa, onde distingue três momentos: a pré-tarefa, a tarefa e o projeto. É na pré-tarefa que situam-se as técnicas defensivas, as que dificultam os processos de mudança. Defesas essas que são mobilizadas pela presença da ansiedade de perda, diríamos que de uma certa posição (lugar), e da ansiedade de ataque, que o desconhecido sempre alimenta. É um momento onde impera o "reino da fantasia" e o "como se", apontado pelos autores. A dissociação entre o pensar, atuar e sentir são marcantes. São várias as maneiras de não entrar na tarefa, predominando a organização psicótica.

O advento da "tarefa" consiste num movimento de elaboração das ansiedades mais primitivas, psicóticas, onde diminuem as dissociações e as estereotipias, possibilitando a aprendizagem e o alargamento das redes de comunicação. Aumenta a capacidade perceptiva do sujeito, onde a inclusão do "outro" diferenciado ganha maior consistência (PICHON-RIVIÈRE, 1986).

Certamente, todos nós conhecemos bem essas noções, mas gostaríamos, a partir delas, reforçar o nosso ponto de vista. A idéia da existência da pré-tarefa, da tarefa e do projeto, além de fornecer elementos mais seguros para que o terapeuta possa intervir, na transferência, sublinha a condição situacional da manifestação psicótica e dos movimentos que ocorrem quando colocamos elementos facilitadores, ou intermediadores, desses processos definidos como patológicos. São os movimentos do homem-em-situação (LAGACHE, apud PICHON-RIVIÈRE, 1986). Isto reforça a importância do grupo como um elemento de organização, com reflexo nas atitudes individuais.

A questão que associamos, enquanto revisamos esses pontos, é quanto ao papel do instrumento através do qual o terapeuta age. No percorrido das atividades grupais tradicipnais, encontraremos sempre uma certa disposição do terapeuta em intervir utilizando-se das interpretações. Na intermediação que o trabalho grupai com o jornal nos coloca, não abrimos nenhuma possibilidade de interpretar. Não que ela não possa ocorrer, mas a forma será outra e, muito provavelmente, ela virá de um outro interlocutor, não do terapeuta.

LANCETTI(1994)em seu texto sobre a "clínica grupal com psicóticos", também questiona o uso da interpretação nesses grupos. Coloca que: ""o silêncio analítico" ou "operativo", as interpretações do tipo tradução simultânea são atos terroristas que só contribuem para a desagregação dos grupos". Porque, acima de tudo, a principal função do grupo é criar um espaço para a continência, para a integração e a re-significação histórica dos processos individuais. Essa re-significação é "produto de um trabalho coletivo"(LANCETTI, 1994, p.158). O terapeuta deve incentivar as relações afetivas, de confiança e de sociabilidade, através das quais o "tecido social" vai se originando. O trabalho grupal, nesta perspectiva, vem colocar-se, intermediariamente, entre o indivíduo e a sociedade (BARROS, 1991).

Esta facilitação para uma relação afetuosa e socialmente produtiva faz muito sentido em se tratando de paciente na "condição psicótica". Alguns autores apontam que este fortalecimento da relação terapeuta-paciente, o vínculo, deve ser o trabalho prévio para qualquer possibilidade de interpretação transferencial.

Esta intermediação poderá ser construída na medida em que valorizarmos o potencial criador das composições heterogêneas. Assim poderemos pensar em novas redes, ou tecidos, onde os 'diferentes' podem negociar as suas inclusões no social. São aberturas para processos de subjetivação. Mas, para isto, são necessários os dispositivos que permitam esses processos.

Portanto, ao invés de falarmos de grupo operativo (Pichon-Rivière), passaremos a falar em dispositivo grupal.

Nesse dispositivo o que procuramos é juntar partes, fragmentos de discursos extremamente particularizados.

Onde até o significado de certas palavras se modificam, representando outras coisas, se ligando a outros sentidos. Com essas partes, que vão se moldando, se colando, os fragmentos podem ganhar uma expressão inusitada, obtendo uma forma que somente no plano coletivo ela adquire visibilidade. Criando significados e representações sociais. Tomamos este conceito como um lugar onde o nosso usuário possa se enganchar, percebendo outras possibilidades de existência, também identificadas no fora do grupo, pela circulação (do jornal e da loucura) na comunidade.

Antes de prosseguirmos em nossas pontuações de ordem mais teórica, gostaríamos de trazer um pequeno fragmento de uma situação comum nesse campo terapêutico. Transcrevemos, literalmente, a fala de Horário, a partir da qual o grupo construiu uma cadeia associativa de idéias e interesses.

"O neozine é um antibiótico junto com tranqüilizante. Isso não é alopatia, isso é homeopatia do esquecimento da memória. E eu me esqueço das idéias e não há progresso na inteligência".

"Os remédios da homeopatia, ocorre que o ser humano perde a identidade interior pessoal na mente, fazendo o paciente ser humano a ficar esquecido na vida pessoal (...) A fé e alopatia une o tratamento na luz da família. A homeopatia causa câncer no fígado e a pessoa perde a sua identidade. O ser humano não sabe quem foi ontem, hoje e amanhã. E o ser humano perde o seu horizonte no progresso do tratamento no instante e cura do atraso da doença e na atenção e desígnio no alto de cura na família e da preocupação no instante da alegria da família".

O discurso delirante trazido na reunião, foi compreendido, pelos demais participantes, como algo a ser conhecido e do interesse deles: o que vem a ser a homeopatia? Tem utilização para as enfermidades mentais? Discutiram a possibilidade de alguém, um especialista, vir ao Serviço para explicar o que vem a ser a homeopatia. Solicitaram a nossa ajuda e a ajuda da coordenação. O discurso, no início fragmentado, delirante, passa a ser capturado coletivamente, sendo aproveitado pelo grupo como possibilidade de dar sentido e transformar-se em algo comunicável. E, talvez o mais importante, algo do interesse da maioria. A partir dali organizou-se um debate sobre o tema e, o que era a princípio um delírio, passou a circular por toda a instituição, como uma demanda do grupo. O debate ocorreu na sala de espera do Ambulatório, envolvendo todas as pessoas que aguardavam as suas consultas. Uma médica homeopata e uma farmacêutica discutiram os usos e indicações e as pessoas trouxeram as suas dúvidas e fantasias. O assunto foi publicado no jornal.

Nos perguntamos: será que isto tem a ver com aquela velha frase: "temos que entrar no delírio do paciente"?. Entrar, certamente! Mas o mais importante é achar um lugar para enganchá-lo no mundo. Aí reside o novo.

E este caminho percorrido mereceria uma atenção maior. Nós poderíamos dizer que é justamente este caminho que mais nos interessa.

Nas interlocuções das áreas envolvidas, a Terapia Ocupacional vai dizer que o jornal é muito mais que uma atividade estruturada, com início, meio e fim (produto final). Por ela passam sentimentos, desejos, fragmentos de discursos e histórias de vida, da vida de cada um dos participantes. E vai ser terapêutica na medida que tenha significado para o sujeito. Logo, a busca de um significado passa a ser uma meta do trabalho. O gancho que falávamos acima.

A partir das editarias, essa significação aparece na curiosidade de saber sobre dores lombares, joanetes, os questionamentos sobre a homeopatia e a alopatia, dicas sobre como tirar manchas, ou o próprio sofrimento de alguém que, naquele momento, se encontra em surto. O caminho estabelecido é promover a infinidade de trocas que vão ser feitas, partes que se encaixam, diferenças que se equilibram.

BENETTON (1991) faz uso de um conceito que nos parece extremamente rico, e que vem ao encontro com a maneira como temos conduzido a experiência grupai. Ela coloca que existe algo a ser feito antes, por exemplo, um caminho que demonstre a correlação entre fatos, objetos e pessoas. A isto ela tem chamado de "composição de uma trilha associativa num campo transferencial". E no mesmo momento em que traz esta idéia, exemplifica com as inúmeras atividades que um grupo de pacientes pode realizar mas que, tendo a preocupação e a investigação clínica como base, vai, paciente e ela, ou nós, buscar lugares comuns, semelhantes ou diferentes, com identificações, nomeações, de tal forma que possamos fazer parte de um todo historicamente composto nessas relações. Assim, muitas das atividades propostas aos pacientes, terão, como objetivo maior, permitir a continuidade das associações.

"Assim como espera-se que através delas o paciente possa também contar a sua própria história". (BENETTON, 1991, p.47). E, complementaríamos, compartilhar a sua história com o grupo.

Voltamos a Horário. Trouxe como idéia, para ser publicado no jornal, uma série de informações sobre o leite materno. Horário foi à biblioteca da Prefeitura, pesquisou o assunto e escreveu um pequeno texto, onde continha essas informações, e o texto iniciava mais ou menos assim: "o leite materno é o alimento mais completo que existe, tem todos os elementos que alguém precisa para crescer bem."

Não precisamos buscar tão profundamente as razões que levaram Horário a se interessar pela questão do leite, a pesquisar e a necessidade de dividir esta importante "descoberta", que foi para ele, saber que o "leite materno" é tão importante para o crescimento das pessoas. O grupo ouviu a leitura do texto em completo silêncio, onde percebíamos que compreendiam cada palavra que era lida. Ao final alguns se manifestaram, dizendo que acharam um belo trabalho e de muito valor. Naquele momento foi decidido que a editoria "Só Saúde" teria o texto sobre o aleitamento materno. Podemos perceber, muito claramente, a trilha associativa que está presente neste exemplo, e que dimensão isto adquire no momento que entra em contato com o grupo.

Vemos, portanto, que a atividade do jornal leva a este tipo de comunicação, que pode utilizar os caminhos mais variados, de acordo com a dinâmica do próprio paciente.

Como apontamos no início da nossa exposição, pretendíamos falar sobre o que denominamos "reinserção social" ou "reabilitação social". Mas ao estudarmos alguns textos, principalmente os voltados à terapia ocupacional, fomos confrontados com posições não muito confortáveis.

"Hoje, quando se fala em Reabilitação somos remetidos a, pelo menos, duas fortes imagens imediatas, ou seja, à idéia da recuperação de uma determinada capacidade funcional (física ou mental) e, a preparação para o trabalho, se possível remunerado. Nesse caso a reabilitação vem chamada de profissional. (...)

As instituições de reabilitação do país permanecem vinculadas ao princípio custodial, impondo a seus usuários uma relação de tutela, coerente com o papel de administração e controle social, sua principal (mas nem sempre explícita) atribuição." (BARROS, 1991, p. 101-2).

Sempre compartilhamos da idéia de que precisávamos reinserir o sujeito no convívio social, dando a entender que, em algum momento, ele esteve inserido, participando do seu grupo, tendo um lugar para a sua fala. Revendo as proposições teóricas que discutem a psicose, chegamos à conclusão que o discurso que predomina é o discurso resultante da simbiose com o objeto primário. As fronteiras do sujeito se encontram perdidas na fala da mãe, ou em seu silêncio ou ainda na percepção puramente corpórea que o "filho" lhe sugere.

"A mãe do psicótico não é alguém que faz a lei, ela é a lei (...). Parece que existe uma espécie de impossibilidade a toda representação imaginária da criança que vai chegar: a relação parece se dar entre a mãe e essa massa em seu próprio interior, uma espécie de enchimento corporal, de órgão justaposto que, nela e graças a ela, se desenvolve. A relação real com a criança se dá enquanto embrião."(AULAGNIER, 1991).

Logo, trata-se de um simples prolongamento do narcisismo materno, onde a separação será vivida como uma experiência de morte e luto. A existência, como sujeito, está deslocada do tempo da gestação e do parto. Urge o corte, o nascimento desse ser como alguém que produz marcas, sinais da sua existência.

E Pedro, outro usuário do grupo, nos diz:

"Acho que tu te sentes como um pneu de carona. Sempre esquecido em algum lugar". Ou ainda: "é como aquele menino que sempre vai para a aula com a sua lancheira vazia".

Isto introduz, a partir da abordagem terapêutica, um aspecto inédito, um discurso que deverá ser inaugurado na sua capacidade de expressar-se, fazer-se nascer. É uma coisa nova para o sujeito e para quem aceita o desafio de acompanhar as "trilhas" que se abrirão no transcorrer do trabalho. Assim, aceitamos a opinião de BENETTON (1991, p.39): " que o processo que pretendemos é o de criar formas, que podem ser praticamente infinitas, através das quais objetivamos a inserção social". Trata-se de um "novo" a ser acrescentado, de um nascimento.

Para melhor compreensão das nossa posições, seria melhor abandonarmos o conceito de reabilitação social que tem a sua origem muito ligada às aptidões físicas para o desenvolvimento do trabalho e deixarmos o campo livre para o exercício dos novos

processos, porque seria muito complicado, e contraditório, imaginarmos que poderíamos habilitar ou reinserir o sujeito a se adaptar àquele discurso que contribuiu para o seu próprio adoecimento. Os limites do seu corpo, do seu discurso e das suas vontades devem ser o leme a dirigir o trabalho grupai, inserindo o sujeito nas novas redes que se abrirão.

"E é por causa de significações que precisamos reinventar a reabilitação. Humanizá-la, tirá-la dos laboratórios e do universo das experimentações hipercontroladas e fazê-la "cair na vida", contraditória e desordenada como é, onde profissionais e reabilitandos moram." (BARROS, 1991, p. 104).

Concluindo, o dispositivo grupai que criamos, juntamente com os usuários do Centro de Convivência, poderá ser compreendido melhor se pensarmos na idéia de veículo. Veículo que nos leva, nos transporta para lugares ainda não visitados (as "trilhas associativas"). Veículo pelo qual se deixam passar as notícias e as histórias dos interiores.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

01 - BARROS, D.D. Habilitar - Reabilitar... O rei está nu? Revista Terapia Ocupacional - USP, São Paulo, v.2, n. 2/3, p.100-104, 1991.        [ Links ]

02- BELTRAMI, Arnaldo. Comunicação constrói? Noções de comunicação social e educação. 1976. Fotocópia, p/fins didáticos.        [ Links ]

03- BENETTON, Jô. Trilhas Associadas: ampliando recursos na clinica da psicose. São Paulo: Lemos, 1991.        [ Links ]

04 - FOUCAULT. M. Microfísica do poder. 4. ed. Rio de Janeiro Graal 1984b.        [ Links ]

05 - GOLDBERG, Jairo. Clínica da psocose: um projeto na rede pública. Rio de Janeiro Te Corá, 1994.        [ Links ]

06 - LANCETTI, Antônio, et alii. Saúde loucura 4. São Paulo Hucitec 1994.        [ Links ]

07 - KATZ, Chaim S (org.), AULAGNIER, P. et alii. Psicose: uma leitura psicanalítica. 2. ed. rev.e ampl. São Paulo: Escuta, 1991.        [ Links ]

08 - PICHON-RIVIÈRE, Enrique. O processo grupal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1986.        [ Links ]