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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.16 no.3 Brasília  1996

 

Verbo inane, arte muda

 

 

Eduardo Dias Gontijo

FAFICH - UFMG

 

 

A Medicina Psiquiátrica e as práticas alternativas são discutidas do ponto de vista do naturalismo que veiculam e são contrastadas com as "terapias da fala". O texto aponta as implicações éticas de cada perspectiva e sua relação com a cultura individualista.

Obras son amores, y no buenas razones. DITADO ESPANHOL

 

O verbo inane

Basta falar e ouvir? São as palavras e as conversas eficazes para se lidar com o sofrimento humano? Serão elas suficientes para mitigar de forma efetiva o mal da dor que aflige a alma? Uma boa escuta transforma um falante?

O que, de um modo ou de outro, tanto ontem como agoraa, está sempre em questão, senão o poder ordenador do verbo?

Relata VIRGÍLIO (70-19 a.C), em sua Eneida, que o velho Iápix, filho de Iaso, para prolongar os dias e aliviar o sofrimento do impaciente Enéias, gravemente ferido na perna por uma seta, preferiu "conhecer as virtudes das ervas, e os usos de curar, e exercitar sem glória as artes mudas"1.

Fiel a esta virgiliana caracterização, a medicina técnica e científica, de caráter naturalista, se fez denominar, logo ao início de nossa era, muta ars, arte muda ou mister obscuro2 de uma técnica sem palavras. Este adjetivo, que lhe serviu de epíteto, não raro se fez acompanhar da declaração do verbum como inane: dando continuidade a esta tradição, quatro séculos mais tarde afirmava VEGECIO em sua Mulomedicina3 que "os animais e os homens não hão de ser tratados com palavras vãs, mas com a arte segura de curar".

Diferentemente dos seus primitivos ancestrais, que esposavam uma concepção mágico-religiosa do mundo, mas igualmente adeptos de um holismo ingênuo, que não distinguia muito claramente as esferas do somático e do psíquico, os médicos antigos, após o século V a.C.4, não souberam ou não quiseram empregar a palavra como recurso terapêutico5: a arte curativa por meio de palavras — a talking cure — identificou-se, para muitos, às práticas populares e supersticiosas. O parecer de SORANO, citado no tratado De morbis acutis et chronicis, de CÉLIO AURELIANO, é, neste sentido, explícito: "jactam-se néscia e vaidosamente — dizia SORANO — aqueles que crêem que a força da enfermidade pode ser expelida com melodias e cantos"6.

Vinte séculos passados, ainda existem aqueles que persistem em paradoxalmente se servir do infinito poder persuasivo do verbum para        vituperar como pseudocientíficas quaisquer técnicas terapêuticas—incluindo em uma só classe tanto os rituais mágicos, como a psicanálise e as psicoterapias — que se fundamentam no uso das palavras.

Exemplo recente disso são as "conclusões" de E. Fuller TORREY, um renomado psiquiatra americano, associado ao National Institute of Mental Health de Washington, D.C. Em seu livro Freudian Fraud7, TORREY questiona o pressuposto básico implícita ou explicitamente admitido por qualquer proposta terapêutica baseada na palavra: ou seja, a idéia de que a natureza humana seja maleável, isto é, que o psiquismo humano seja constituído primordialmente através de experiências infantis e modificável pela mediação da linguagem, tal como ocorre em psicanálise ou psicoterapia. Apoiando-se nos notáveis progressos da Genética e da Farmacologia, TORREY afirma, de maneira agressiva e contundente, que atualmente existem evidências suficientes para sustentar que a personalidade e o sofrimento humanos sejam determinados primariamente por genes e outros fatores fisiológicos, de modo que, mais cedo ou mais tarde, terapias genéticas e medicamentos tornarão as diferentes modalidades de talking cure totalmente obsoletas.

Diferentemente de outras épocas, em que a acirrada disputa entre paradigmas manteve-se relativamente equilibrada, a situação neste final de século é de fato inquietante, para não dizer alarmante. No que se refere ao trato com o sofrimento propriamente humano, de cunho psíquico, que concerne ao homem como tal, em sua diferença específica — a capacidade de linguagem—em relação ao reino animal, a arte da palavra terapêutica fundamentada no lógos demonstrativo está em baixa, e as artes mudas e os ministérios obscuros — as cirurgias, os remédios e as ervas — estão em alta.

Noutras palavras: exagerado ou não, o ponto de vista do autor de Freudian Fraud representa uma versão extrema daquele que inequivocamente tem se tornado o paradigma francamente dominante no campo da saúde mental8.

Ouve-se melhor hoje o que não fala: Listening to Prozac, de Peter D. KRAMER, tornou-se rapidamente um bestseller nacional nos Estados Unidos da América. Humilhados, os velhos psicanalistas e psicoterapeutas tristemente se aposentam, ao mesmo tempo em que os recém-chegados magos da felicidade prosaquiana reúnem em seus gigantescos e suntuosos templos, financiados pela poderosíssima indústria farmacêutica, milhões e mais milhões de adeptos fiéis. Enquanto o encontro anual da Divisão Psicanalítica da AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION não consegue reunir mais do que quatrocentos membros no ano de 1996, comparecem ao encontro da AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, realizado em maio do mesmo ano, mais de 15.000 psiquiatras, para discutir novas e mais novas aplicações — para além de suas já tradicionais funções como anti-depressivos — de inibidores da degradação da serotonina, tais como PROZAC, ZOLOFT e seus derivados, que rapidamente se transformam em uma nova panacéia médica.

Caminhando lado a lado ao enorme sucesso da psiquiatria biológica —e amparando-se no descrédito atual com os modelos científicos e institucionalizados de talking cure para os problemas vitais, ao mesmo tempo que fazendo coro ao crescente número de insatisfeitos com o caráter reducionista da ciência moderna — florescem nos campos marginais aos muros da Academia uma pluralidade de formas alternativas de tratamento, reminescentes dos antigos naturalismos holistas e de pontos de vista espiritualistas9 arcaicos — tais como Florais de Bach, Astrologia e Taro, terapias através da regressão para vidas passadas, etc. — que se fazem alimentar por formas excêntricas e muitas vezes aberrantes de justificação e pseudofundamentação científica.

A problemática de fundo é, no entanto, equivalente. De uma forma ou de outra, quer estejamos falando de poder das ervas naturais ou dos químicos, da influência dos astros, das estrelas ou dos fenômenos físicos sobre o comportamento humano, de engenharia genética ou de representações e lembranças fantásticas contidas nos genes imaginários, ou mesmo da magia do destino, o que basicamente é postulado, de maneira disfarçada ou não, é o retomo do velho paradigma naturalista, que pressupõe que as origens e as soluções para o sofrimento humano se encontram em algo que se coloca muito aquém dos intercâmbios e das interlocuções humanas concretas10.

De modo que, enquanto professor universitário e psicanalista, discípulo declarado do lógos científico e indivíduo ético preocupado em salvar não apenas a própria pele, mas também a de outros—alunos e clientes—não posso deixar de me indagar pelo real significado destas tendências no campo da saúde mental, de modo a preparar um esboço de resposta para a pergunta: qual será o futuro profissional de meus pupilos, discípulos da palavra sensata e da escuta eficaz, e qual será o destino daqueles que buscam remédio para as aflições da alma?

 

Arte Muda

Disse uma vez VIRCHOW que a "política é medicina em grande escala"11. Dado o parentesco, assinalado por PLATÃO e ARISTÓTELES, entre a persuasão política e a persuasão terapêutica, poder-se-ia também afirmar que a medicina é política em pequena escala12.

Ao asseverar a existência de relações entre Medicina e Política, procuramos convidar à discussão, não uma veleidade ociosa, mas algo verdadeiramente fundamental, que nos permitirá assinalar como as pretensões atuais de hegemonia da arte muda no campo dos distúrbios anímicos constituem expressão de tendências sociais, econômicas e políticas vigentes nas sociedades contemporâneas e nas formas de racionalidade moderna. Mais especificamente falando, trataremos de aludir, ainda que mui brevemente, tanto ao predomínio dos paradigmas médico-naturalistas e da psiquiatria biológica, como do florescimento das práticas alternativas, no campo da saúde mental, como sintomas do individualismo moderno e da vigência exagerada da racionalidade instrumental na globalizada cultura contemporânea.

Mas de que modo a quasi-hegemonia da psiquiatria biológica e da medicina holística, de cunho naturalista, podem ser consideradas sintomas do individualismo moderno?

Enquanto ser biológico, pertencente à classe 'animal', o homem é um ser de necessidades submetido às leis da natureza e do instinto, e habitante de um universo em princípio harmonioso — e portanto essencialmente fechado — no qual a cada necessidade dada deve corresponder um objeto existente no mundo potencialmente capaz de restabelecer o equilíbrio homeostático/ homeopático introduzido pela falta. O indivíduo biológico está deste modo apenas cercado pelo imperativo de subsistir, conservando-se como ser da natureza: para ele basta aquele nível ínfimo do possível que traduz a sua permanente luta pela vida.

Para um ser de necessidade, ou para o organismo animal, o outro enquanto outro — uma consciência-de-si livre constitutivamente voltada a outra liberdade consciente-de-si—é absolutamente opaco: ou melhor, virtualmente não existe, na medida em que aquilo que possui realidade humana só pode concretamente existir pela mediação da linguagem.

O ser animal vive a satisfação de suas necessidades exclusivamente nos estritos limites onde se sente: isto é, como puro indivíduo no interior de sua própria pele. Estruturalmente incapaz daquela reflexividade e apercepção que lhe permitiria representar-se a si mesmo e ao outro, o organismo animal não poderia — na ausência de domínio do sistema da linguagem que é condição sine qua non de possibilidade para exibir condutas características do símbolo13 — até mesmo compreender uma imagem como imagem.

Tratar o sofrimento do homem na perspectiva da Medicina, que o considera estritamente enquanto ser biológico, pertencente ao reino animal, implica portanto em considerá-lo sob o ponto de vista específico da necessidade do organismo individual e particular.

Esta redução é sem dúvida necessária. A Medicina, ciência do homem qua corpo biológico, tornou-se possível enquanto campo de saber efetivo na exata medida em que assumiu, humilde e decididamente, a perspectiva reducionista que é a marca registrada de qualquer ciência particular e de qualquer antropologia setorial: donde se segue que, mantendo-se em seus limites, ela é sem dúvida eficaz, mas apenas nas estritas premissas do somático, e só enquanto realiza uma abstração metódica do ser histórico e social, psíquico e ético do homem, o que equivale a concebê-lo apenas secundariamente como um ser de linguagem e desejo.

Não fosse assim, isto é, se a Medicina compreendesse, por exemplo, o homem primordialmente como um ser de linguagem que se dá normas, mas não segue necessariamente — como o faz uma simples pedra que cai, sob o efeito da lei da gravidade — as normas que ele próprio se dá, ela não seria mais, rigorosamente falando, medicina: seria uma ética.

Mas os homens falam. E falando, desejam e constróem o espaço do ethos enquanto espaço humano que, não sendo dado de imediato ao homem, deve ser por ele incessantemente construído e reconstruído. Instalando a sua morada na pólis e articulando palavras, uns aos outros, a linguagem — gênio protetor do ethos — lhes põe nos lábios, que escapam à barreira dos dentes14, uma grata, e preciosíssima esperança: a esperança de que, algum dia, não seja mais a força bruta da necessidade, filha de um poder gratuito, que lhes remedeie a fome e a miséria, a violência, a rivalidade, a mentira, o engano, o ressentimento e o ódio.

Isso porque, no momento mesmo em que balbucia uma primeira palavra, o indivíduo entrega, precisamente, o privilégio de posse exclusiva de sua singularidade e se retira de uma vez por todas do cubículo de seu corpo privado, para então ingressar definitivamente no domínio do político e do coletivo, espaço onde se entretece a memória do social e se inicia, propriamente falando, a humanização do homem. Mais do que isso, escolher viver na linguagem é sinônimo de alistar-se nas fileiras dos que lutam contra o cego poder do efêmero: significa crer que a existência, através do lógos, pode ir muito mais além dos humildes limites assinalados para uma existência singular, e é infinitamente mais valiosa do que a simples particularidade que a encarna15.

A linguagem — encaminhando-se ao dever-ser e enquanto superação do puro estado de  natureza16 — é constitutivamente ética: eleger a palavra significa proferir uma "basta!" à violência cega dos impulsos17 e romper as duras cadeias da necessidade; é introduzir, pela liberdade do possível, uma fissura no muro monolítico do destino18; é cultivar a verdadeira vida que se encontra ausente19; é engajar-se no ato de prometer que, indo além da imprevisibilidade das coisas20, busca tornar presente um porvir; é transcender, pelo mais que lindo apelo ao perdão, os elos de irreversibilidade que nos atam às obras passadas.

Para se preservar o existir anímico e viver eticamente é conseqüentemente necessário defender desde sempre — face ao individualismo corrente e diante do predomínio da lógica da eficácia contida na racionalidade instrumental — o poder do verbum contra todas as pretensões totalitárias de emudecer o homem, reduzindo-o, ou a um simples organismo, ou, no melhor das hipóteses, a um animal adestrado.

Se viver, afinal, é escolher, falar por sua vez é sinônimo de valorizar e de buscar estabelecer critérios sensatos que nos projetem em direção a um dos caminhos possíveis para a existência em comum.

Renunciar à palavra, por outro lado, significa, em suma, renunciar a possuir uma alma—ou um psiquismo — e dispensar-nos de viver em um mundo onde, existindo inevitavelmente outrem, nos são ofertados diariamente os elementos imprescindíveis a uma valoração que faz dos homens seres propriamente humanos.

Operários da palavra, dedicados ao ofício de praticar a arte de uma escuta que se insinua por detrás da impassibilidade das máscaras em que o homem se oculta, dividido e desamparado, psicanalistas e psicoterapeutas não podem se furtar ao dever ético de defender a talking cure contra todas as pretensões de hegemonia da muta ars e suas variantes.

E isso não apenas para resgatar o seu mísero salário, mas pela obrigação moral de envolver-se em um combate fundamental, onde o que está verdadeiramente em questão não é a sua simples sobrevivência enquanto indivíduo singular, mas o próprio destino do homem enquanto homem.

 

NOTAS REDACIONAIS

1  Scire potestatem herbarum, usumque medendi maluit, et mutas agilare inglorius artes. In VÍRGILIO, Eneida, Canto XII. Apud ENTRALGO, Pêro Lain. La curación por la palabra en la Antigiiedad Clásica. Barcelona: Antropós, 1987. pág. 7.

2  A medicina foi muitas vezes considerada pelos antigos uma arte obscura, na medida em que não proporcionava fama aos que a praticavam.

3 Animalia et homines nan inanibus verbus, sed certa medendi arte curentur, In VEGECIO. Mulomedicina. Leipzig: Ed. De Ernst Lommatzsch, 1903, pág 199, 3-4.

4 Época aproximada de surgimento da medicina naturalista, que passou a conceber as doenças físicas e mentais como fenômenos que poderiam Frank, J. Persuasion and Healing. New York: Schocken Books, 1973.

5 Ver ENTRALGO, Pero Lain. La curación por la palabra en la Antigiiedad Clásica. Barcelona: Antropós, 1987.

6 Sed Sorani indicio videntur hi mentis vanitate iactari, qui modulis et cantilena passionis robur exeludi posse crediderunt. Ver CAELIUS AURELIANOS, De morbis acutis et chronicis. Amstelodami: J. Cr. Amman, 1709, pág. 555.

7 TORREY, E.F. Freudian Fraud. New York: Harper-Collins, 1992.

8 HORGAN, John. Why Freud Isn't Dead. Scientific American. Dec. 1996, págs. 74-79.

9 Como, por exemplo, o ponto de vista da metempsicose, doutrina assumida por PITÁGORAS de Samos, bastante semelhante às idéias de reencarnação mantidas pelos modernos espíritas.

10 O leitor atento poderá facilmente observar, após uma breve reflexão, que muitas formas de psicoterapia — em particular aqueles que contém, por assim dizer, tecnicismos exagerados — muito embora se apresentem como mediadas pela palavra, constituem na realidade outras tantas versões de procedimentos fundamentados naturalisticamente. Uma análise mais pormenorizada destes procedimentos, no entanto, ultrapassaria o modesto escopo do presente trabalho.

11 Em ENTRALGO. P. L. Op. cit., pág. 203.

12 Ver ENTRALGO, P. L. Op. cit., pág. 203

13 Ver MERLEAU-PONTY, M. As relações com o outro na criança. Belo Horizonte: SEGCP/Imprensa Oficial, 1984.

14  Esta é uma conhecida expressão de Homero.

15 Inspiro-me aqui — para não confessar o plágio deliberado — nas belíssimas palavras de Emilio Lledó, contidas no seu texto "El Mundo Homérico", In CAMPS, V. (Ed.), Historia de la Ética. Vol.1 : De los griegos al renacimiento. Barcelona: Editorial Crítica, 1988, págs. 15-34.

16 A linguagem se concebe dialéticamente como negação do natural, negação esta que o supera e suprassume enquanto negado. Esta Aufhebung é um conceito central na filosofia hegeliana. Ver HEGEL. G.W.F., Fenomenologia do Espírito. São Paulo: Vozes, 1992.

17 Ver PERIME, M. Filosofia e Violência. São Paulo: Edições Loyola, 1987.

18 Ver LLEDÓ, E. El mundo homérico. In Camps, V., op, eit,, pág- 31,

19 Ver LEVINAS, E. Ética e. infinito. Lisboa: Edições 70. 1988.

20 Ver ARENDT. H, A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.