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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.17 no.1 Brasília  1997

 

Formação do psicólogo: uma breve análise dos modelos de intervenção

 

 

Deise Mancebo

Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Trabalharam no levantamento e análise dos dados, nesta etapa da pesquisa: Adriana Miranda de Castro e Leandro Vieira Osuna, bolsistas de iniciação científica da UERJ e do CNPq, respectivamente, e Alexandre Teixeira dos Santos, mestrando do Instituto de Psicologia da UERJ

 

 

Este artigo aborda a trajetória histórica das Faculdades de Psicologia do Rio de Janeiro, buscando configurar o campo ao qual vem sendo submetido o futuro especialista "psi" no interior das instituições de ensino superior. Outra questão presente é se a cultura psicológica constitui-se num referencial comum de análise se a natureza das instituições formadoras interfere no sentido dado à formação profissional.

 

INTRODUÇÃO

Este trabalho reporta-se a parte dos resultados de uma pesquisa intitulada "História dos Cursos de Psicologia no Rio de Janeiro (1956/1978): a Cultura Psicológica nas Instituições de Ensino Superior"1. 0 tema da investigação é a análise da trajetória histórica das Faculdades de Psicologia no Rio de Janeiro, desde a criação do curso da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 1953, o primeiro a ser idealizado no Brasil, chegando à década de 70, ao final da qual identificamos mudanças profundas na sociedade brasileira e nas instituições de ensino superior, a partir da reorganização da sociedade civil e redemocratização das instituições, inclusive das escolas de educação superior do país.

A intenção mais geral da pesquisa é configurar o campo ao qual vem sendo submetido o futuro especialista "psi" no interior das instituições de ensino superior, no período histórico selecionado. Para o alcance deste objetivo temos mapeado a filiação teórica e concepções dos formadores (professores, supervisores), identificado e analisado os principais dispositivos, concepções hegemônicas e ferramentas recomendadas aos futuros psicólogos. Enfim, tem-se procurado definir os "modelos" profissionais apresentados aos perscrutadores das intimidades, neste período histórico.

Parto da hipótese de que este campo de formação universitária do psicólogo, enquanto porta-de-entrada para a construção do profissional, constitui-se num território que compartilha da "cultura psicológica". Esta última temática tem sido amplamente discutida, por cientistas sociais (Castel, 1978; Duarte, 1986; Foucault, 1979; Machado, 1978 e Velho, 1986) e psicanalistas (Costa, 1979; Figueira, 1985; Figueiredo, 1992; Russo, 1993). Seus estudos destacam a intensa difusão das práticas "psi" nas camadas médias urbanas de nossa sociedade, após os anos 60, a partir da consolidação de um "ethos" individualista e "intimista", no qual os especialistas "psi" são um efeito e mais um dispositivo difusor, com um grande potencial de intervenção no espaço social.

O outro parâmetro analítico da pesquisa baseia-se no seguinte" pressuposto: se a "cultura psicológica", em expansão, por ocasião do surgimento das primeiras escolas superiores de Psicologia, constitui-se num referencial comum de análise, por outro lado, o fato de os cursos estarem inseridos em instituições com características diversas - universidades, faculdades isoladas, instituições públicas, privadas, religiosas, comunitárias-deve ter-lhes marcado o desenvolvimento, as formas institucionalizadas construídas e o sentido dado à formação dos profissionais. Neste trabalho, com resultados ainda parciais da pesquisa mais geral, discutirei as características mais marcantes dos cursos de Psicologia e das críticas a eles apresentadas, apontadas pelos próprios psicólogos.

 

METODOLOGIA E FONTES

Para a discussão da temática escolhida, os cursos de Psicologia e suas características principais, recorremos a fontes diversas. Primeiramente, foi localizada, organizada e analisada toda a legislação referente à profissão e aos cursos de Psicologia.

Os periódicos do Conselho Federal de Psicologia (CFP) constituíram um segundo grupo de fontes primárias analisadas. Refiro-me às 26 revistas editadas pelo Conselho Federal de Psicologia, sob o título Psicologia: ciência e profissão, desde o início de sua publicação, em 1979, à data atual. Nestes exemplares, foram selecionados, para leitura e análise, os artigos que se referissem, mesmo que indiretamente, à formação dos psicólogos em nível de graduação e pós-graduação e à criação da profissão.

Com o objetivo de fazer um mapeamento inicial dos formandos de Psicologia nas instituições de ensino superior do Rio de Janeiro, foi feito o levantamento, leitura e análise estatística dos processos de inscrição dos psicólogos no CRP-05. Foram analisados 4148 processos existentes, entre o ano de 1974, data em que o Conselho começou efetivamente a funcionar, e o ano de 1980, limite temporal da pesquisa.

Por fim, fontes secundárias - livros, artigos e teses referentes à formação do psicólogo -também foram utilizadas.2

 

OS CURSOS DE PSICOLOGIA: CARACTERÍSTICAS E CRÍTICAS

Desde o início do século passado, as práticas psicológicas já eram exercidas no país, e dentre estas o ensino de "psychologia" (Massimi, 1990; Penna, 1992). Os cursos eram ministrados então, no âmbito de diversas áreas do conhecimento: Teologia, Direito, Medicina, Pedagogia e Filosofia e era com este perfil fragmentado e "adaptado" a outros saberes, que ocorria o repasse e construção do pensamento psicológico entre nós.

No entanto, o marco assinalado pela maior parte do material trabalhado foi a promulgação da Lei 4119, de 27 de agosto de 1962. Constituiu-se no primeiro diploma legal específico sobre cursos de formação de psicólogos, seguido por ato do Conselho Federal de Educação que, através do Parecer n° 403 de 1962, fixou o currículo mínimo e a duração do curso de Psicologia, com vigência a partir do ano seguinte. Deste modo, a regulamentação da profissão, conforme tradição em nosso país, ocorre através do mesmo ato legal que normatiza os cursos de Psicologia. Nos primeiros anos de existência enquanto profissão, a Psicologia viveu uma fase de consolidação dos seus limites em relação ao campo médico e aos "saberes leigos" sobre as "faculdades mentais". Nossa análise deste período da história da Psicologia apontou, contudo, para a seguinte consideração: a delimitação legal deste novo campo do saber foi marcada por lutas corporativas quanto à ocupação de espaços institucionais e no mercado de trabalho, não tendo propriamente operado cortes no sentido da construção de um novo saber. Sem maiores problematizações ou conflitos, os conhecimentos psicológicos acumulados por profissionais médicos, educadores, engenheiros, filósofos, desenvolvidos dentro ou fora do espaço acadêmico, foram assimilados acriticamente.

Do mesmo modo, naturalmente que sem o aval explícito da corporação, muitas práticas consideradas místicas, logicamente infundadas, também foram trazidas para a nova profissão. Esta "matriz" não-científica era (ou é) especialmente detectada quando se tratava "do-que-fazer" da prática psicológica em sentido estrito. Nestas, a sobreposição de técnicas dissociadas de um corpo teórico, que não têm a possibilidade de se submeter a uma problematização e confronto com outras argumentações teóricas, transformaram-se, com muita facilidade, num pensamento obscurantista e mistificador, cujo único critério avaliativo era o senso-comum. Outro aspecto que deixou marcas na profissão foi o fato de seus cursos de formação e sua clientela crescerem desmesurada e desordenadamente, logo nos primeiros anos. Esta situação tornou-se mais complexa quando se sabe que os necessários embates no campo epistemológico não foram tratados com a devida atenção, na medida em que a corporação, em seus momentos definitórios, optou pela busca de soluções acomodatícias, à justificação de projetos de grupos, que visavam muito mais à manutenção do status já atingido, por alguns de seus membros, do que propriamente pelo enfrentamento teórico.

No entanto, a análise das fontes surpreendeu-me, desde o início, pelo fato de as referências à formação do psicólogo, em seus aspectos histórico, legal, características, críticas e análises aparecerem com uma freqüência bastante elevada.

Daí a idéia de, neste trabalho, realizar uma análise desta produção: uma reflexão sobre os modelos de intervenção psicológica, a partir das críticas dos próprios psicólogos sobre os cursos de formação.

1 - DA FORMAÇÃO TEÓRICO-PRÁTICA

Na maioria dos trabalhos analisados, os conhecimentos teóricos ministrados nos cursos de Psicologia são apontados como tendo um tratamento fragmentado e desvinculado da prática e da realidade de nosso país.

Na pesquisa, por exemplo, realizada por Bastos e Gomide (1989), onde foram entrevistados 2448 psicólogos, muitos dos quais formados nos anos 70, os resultados foram contundentes:

"...ao analisarmos as respostas dos nossos entrevistados verificamos que, no que se refere à fundamentação filosófica, metodológica e científica, mais de 50% deles estão insatisfeitos com os conhecimentos adquiridos na graduação e este índice aumenta para 64,4% quando se refere à experiência científica". (Bastos & Gomide, 1989: 12)

O caráter fragmentado dos conhecimentos teóricos oferecidos nos cursos, na realidade, refletem a própria situação da Psicologia na qualidade de disciplina autônoma. Seria difícil uma certa organicidade nos cursos, já que a própria disciplina psicológica não se constitui num corpo estruturado de conhecimentos, como freqüentemente pode ser identificado nas ciências naturais. É reconhecida a diversidade, e mesmo antagonismo, entre as diferentes abordagens psicológicas, bem como o caráter particular com que esta disciplina tenta se constituir como ciência. Figueiredo (1995) assinala, inclusive, "que nem temos uma delimitação unívoca do campo, uma compreensão partilhada do que é fundamentalmente nosso objeto". (Figueiredo, 1995: 96-97)

Este problema é agravado pela falta de prioridade com que a pesquisa é tratada nos cursos de graduação, caracterizando um. quadro de formação passiva, onde o aluno transforma-se em ouvinte e repetidor dos conhecimentos "prontos" que lhe são repassados.

Este aspecto traduz outra questão básica da formação acadêmica brasileira. Conforme Francisco e Bastos (1992):

"...somos apenas consumidores - no máximo adaptadores - de conhecimentos gerados pela ciência do primeiro mundo. A produção é reduzida e está muito aquém das demandas postas por um contexto cultural específico. A atividade de pesquisa, ainda incipiente e mal distribuída geograficamente carece do fortalecimento de grupos, da consolidação de tradições, do estabelecimento de linhas consistentes de investigação que dêem a cumulatividade necessária a qualquer empreendimento científico. Especialmente localizada nos programas de pós-graduação, a atividade de pesquisa tem o seu impacto reduzido, inclusive nos cursos de graduação, da maioria dos quais se encontra ausente." (Francisco & Bastos, 1992: 216)

Mesmo os atuais cursos de pós-graduação, que por excelência deveriam valorizar o desenvolvimento de novos conhecimentos, estão, em muitos aspectos, contaminados pelo afã da técnica, tomando o formato, em muitos casos, de verdadeiros cursos de especialização, complementos naturais da graduação defeituosa. Com poucas exceções, não vêm se constituindo num espaço para a formação do magistério superior e o desenvolvimento de pesquisas. (Botomé, Delia Coleta & Matos , 1988)

No entanto, as maiores críticas detectadas nos trabalhos percorridos, têm as práticas (ou estágios) como foco central de análise. Uma das restrições aponta para a pequena quantidade (em termos de carga horária de estágio), a pouca diversidade (somente Clínica, Trabalho e Escolar) e o franco predomínio da área Clínica.

No levantamento dos registros de psicólogos no CRP-05, expostos na Tabela 1 e Gráfico 1, os dados não confirmam estatisticamente esta hegemonia do modelo clínico r a realização de estágios pelos estudantes de Psicologia. Apesar da Clínica ser a área predominante nas respostas dadas (39,20%) vem seguida de perto pela áreas da Psicologia do Trabalho (31,40%) e Escolar (21,05%). No entanto, isto não invalida os resultados encontrados nas outras pesquisas publicadas pelo Conselho Federal de Psicologia, segundo as quais o modelo clínico individual penetra e impregna outros campos de estágio/trabalho existentes.

 

 

 

 

Esta realidade torna-se mais intranqüila quando se considera que - com a proliferação dos cursos de graduação em instituições de ensino superior rivadas, à época do regime militar - os arranjos organizacionais montados não propiciavam o oferecimento de estágios. Não era raro que o aluno simplesmente informasse a realização de um estágio através de uma declaração emitida por algum outro estabelecimento e a prática, a princípio tão valorizada num curso profissionalizante, transforma-se num mero procedimento burocrático. Neste sentido, é importante registrar o grande número de profissionais inscritos no CRP-05, que não se pronunciaram sobre a realização de estágios (79,09%).3

As instituições formadoras, portanto, têm atuado como reprodutoras de um modelo básico de atuação - as atividades clínicas desenvolvidas em consultórios particulares, na perspectiva de formação de profissionais liberais. Ratificando esta afirmativa, a profunda dicotomia entre os aspectos teóricos e práticos apresentada nos cursos, não admira que prolifere entre os alunos (e futuros profissionais) a busca de suporte "teórico" alhures -nos misticismos, nas iniciativas individuais/ isoladas ou na busca de soluções técnicas imediatistas, em especial quando atuando em ambientes não afeitos ao modelo dominante que lhes é ensinado, e mal.

Carvalho (1984), em pesquisa realizada no Estado de São Paulo, encontrou nas 367 entrevistas realizadas, queixas permanentes (86%) quanto à desarticulação entre teoria e prática, nos cursos de Psicologia. Na análise deste material conclui que esta ênfase na oposição teoria e prática, sugere uma concepção de formação profissional que prevalece na população estudada:

"a da formação especializada, ou da compartimentalização das áreas de atuação, como se, para atuar em diferentes situações de trabalho, o psicólogo devesse conhecer diferentes referenciais de análise e diferentes técnicas...Esse modo de pensar a formação profissional se aproxima perigosamente, de acordo com nosso (seu) ponto de vista, de um modelo de formação técnica, entendida como o treinamento do profissional no uso de instrumentos prontos, designados para cada situação específica de trabalho." (Carvalho, 1984: 8-9)

Deve-se ainda salientar que esta suposta oposição ou dicotomização entre formação teórica e prática não aparece gratuitamente na cabeça do aluno e pelo menos, em alguma medida, deve refletir as próprias características dos cursos de Psicologia, sua estrutura curricular, seu caiáter fragmentado, e, talvez, principalmente, sua desvinculação da nossa realidade.

2 - DA RELAÇÃO COM A SOCIEDADE

Muitos artigos, senão a maioria, apontam o fato de os cursos serem alheios à realidade brasileira. Na sua relação com os saberes já constituídos no campo "psi", não efetuaram um corte, ao contrário, mantiveram as tradições anteriores, não havendo empenho no desenvolvimento de pesquisas que pudessem instrumentalizar criticamente o "novo" profissional para o enfrentamento das nossas especificidades. Desse modo, a formação "psi" nos cursos de Psicologia tem modelado um tipo de exercício profissional cujo alcance social é pequeno, pelo fato de recaírem no modelo hegemônico (clínico-individual), dificultando a possibilidade de diversificação do exercício da Psicologia. (Francisco & Bastos, 1992: 213)

Cabe registrar que a ênfase na formação clínico-individual, tem um paralelo nas praticas dos profissionais. Na Tabela 2 e no Gráfico 2 pode-se observar que a área de atuação predominante em todo o período pesquisado (até 1980) foi a Clínica (45,45%), seguida pela do Trabalho (26,79%) e a área Escolar (17,38%).

 

 

 

 

O psicólogo, diante da formação que recebeu, aspira ao ideal liberal de atuar com os seus "iguais", os estratos médios urbanos. No entanto, em função das dificuldades cada vez maiores do mercado, termina prestando seus serviços também junto às camadas mais desfavorecidas da população, sem qualquer problematização prévia sobre esta aproximação. Uma situação que poderia significar uma positiva expansão da atuação psicológica para as camadas populares transforma-se em martírio para o profissional, que, ao se refugiar na "técnica aprendida", pode, com relativa facilidade, transmutar a sua nova realidade de trabalho em patologias e desvios.

Nas pesquisas patrocinadas pelo Conselho Federal de Psicologia (1994), as estatísticas apontaram para uma insignificante presença de trabalhos do tipo inovador. Deste modo, concluem que as instituições formadoras têm reproduzido, com raras exceções, um modelo básico de atuação profissional, apresentando aos futuros profissionais as tarefas tradicionalmente confiadas aos psicólogos, nos seus diversos ambientes de trabalho.

No entanto, em pequena escala, nos últimos quinze anos, têm sido desenvolvidos modos alternativos de atuação. Conforme Basto e Achcar (1994), o sentido destas mudanças, ainda pontuais, seriam os citados a seguir: (1) os esquemas conceituais, tradicionalmente centrados no plano individual (indivíduo a-histórico, isolado do seu contexto social) estariam se ampliando para uma concepção de sujeito visto na sua interdependência com o contexto sócio-cultural; (2) as fontes de conhecimento, norteadoras das práticas, estariam caminhando da perspectiva unidisciplinar para a multidisciplinaridade, abarcando, em especial, os conhecimentos produzidos no campo da Sociologia e da Antropologia; (3) a intervenção psicológica centrada na ação do psicólogo isolado sobre um indivíduo, dentro de uma perspectiva curativa (ou de remediação), estaria evoluindo para uma atuação em equipes multiprofissionais, centrada em contextos, em grupos, com características preventiva e de prospecção; (4) os recursos técnicos adotados, restritos e originários basicamente no âmbito da própria Psicologia, estariam se diversificando com a absorção de técnicas que extrapolam o campo propriamente "psi"; (5) a clientela atingida pelo campo "psi", predominantemente de classe média e com algum poder aquisitivo estaria mais diversificada, atingindo classes mais populares; (6) a postura "consumista" diante dos conhecimentos, técnicas e praticas, já que gerados em outros contextos e aqui aplicados de forma acrítica, estaria sendo substituída por uma posição mais "crítica", diante da preocupação em gerar conhecimentos e tecnologia apropriados à realidade em que atuam e, por fim, (7) as "práticas alternativas" vêm ampliando o compromisso ético do profissional, originalmente voltado para o atendimento de necessidades individuais ("preocupação humanista") e agora mais preocupado com o engajamento pela transformação social.

Esses novos delineamentos, trazidos ao campo "psi", provocam conseqüências diretas para a formação acadêmica, no sentido da superação das formas extremamente limitadas com que tem se desenvolvido o ensino da Psicologia. As fontes analisadas apontam para a necessidade de integrar, dentro dos próprios cursos, o vasto conjunto de enfoques e abordagens, sem reduzi-los a um único enfoque e sem fragmentar mais ainda a fundamentação ora apresentada. Um outro caminho apresentado é o da ampliação da concepção de ciência que embasa grande parte da produção científica na Psicologia. Este seria um requisito importante para permitir a contemplação destas novas práticas psicológicas e para o estabelecimento de um diálogo mais profundo entre a pesquisa em Psicologia, seu ensino e os profissionais.

Na prática, não houve propriamente uma estagnação nos cursos de formação. No entanto, as mudanças ocorridas foram superficiais, desenvolvidas somente nos currículos, abrangendo apenas ampliações de cursos, alterações de carga horária, trocas de disciplinas e modificações do período em que são oferecidas.

Deste modo, fica evidente que as mudanças curriculares realizadas estão aquém dos requisitos apresentados como necessários no parágrafo precedente, distando da possibilidade de atendimento às "queixas" de alunos, professores e profissionais. Parecem ter consistido tão somente num esforço de acomodação ou de busca de um certo equilíbrio, no sentido de minimizar a antiga hegemonia da área clínica. Por fim, cabe destacar alguns dos motivos para o surgimento das chamadas "práticas emergentes", apontadas nas fontes analisadas.

Primeiramente, embora não analisadas com a devida ênfase em vários trabalhos, estão as mudanças sociais, políticas e culturais mais amplas em curso no país. Conforme Bastos e Achcar(1994):

"... consolidam-se neste momento piáticas, posturas e concepções que foram geradas lentamente ao longo do período autoritário e que encontraram espaço mais propício à sua afirmação a partir do processo de democratização nos anos 80. Ao se preocupar em olhar a realidade brasileira e em privilegiar os segmentos sociais excluídos ou as camadas populares, alguns psicólogos estariam procurando redimir a profissão pelo modelo, também excludente, que a caracterizou desde os seus primórdios no país." (Bastos & Achcar, 1994: 266)

O crescente assalariamento do psicólogo, não devidamente ponderado nas fontes consultadas, é outro fator a ser considerado na busca de novas práticas. Resultante de condições econômicas nacionais desfavoráveis, o psicólogo vem-se transformando num trabalhador assalariado, o que "forçou" a uma revisão das práticas anteriormente calcadas no modelo profissional liberal, muitas vezes impregnadas de preconceitos contra o trabalho em situação institucional. Nesta busca, alguns psicólogos começaram a se inserir em instituições, o que lhes impôs o relacionamento com outros profissionais, outra clientela, outras práticas e modelos teórico e técnicos. Grande parte dos ainda modestos movimentos de transformação tem sido relacionadas a esta nova inserção dos profissionais.

Por fim, o desenvolvimento das "práticas emergentes" deve ser compreendido a partir da sua dupla motivação: o anseio por atender a uma demanda social mais ampla, mas também uma busca de maior conformidade às características de um mercado de trabalho cada vez mais estreito.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É preciso destacar, primeiramente, o empenho do Conselho Federal de Psicologia, durante várias gestões, em capitanear a discussão sobre a formação em Psicologia, transformar as questões centrais em pesquisas, que reuniram profissionais dos mais sérios de nosso país, e promover a publicação sistemática dos resultados encontrados. Foram destas fontes, reunidas em artigos e livros, que pude desenvolver algumas reflexões apresentadas no interior deste trabalho. No sentido de contribuir com a discussão, no entanto, gostaria de finalizar destacando alguns aspectos que considero importantes para futuros aprofundamentos.

O primeiro refere-se à constatação presente em praticamente todos os trabalhos, à dicotomia teoria e prática, ou ainda, produção científica versusatuação profissional ou mesmo cursos teóricos versus estágios. Numa análise mais acurada destas facetas da nossa profissão, considero mais indicado referir-se a uma certa complementaridade funcional entre teoria e prática do que afirmar dicotomias ou contradições existentes nos cursos de formação. Vejamos: as teorias defasadas de nossa realidade não seriam o grande alimento, na prática, da busca do tecnicismo, do uso de recursos místicos, do ecletismo funcional e mesmo da postura anti-teoricista encontrada em muitos profissionais e alunos estagiários? A ênfase na formação teórica para a clínica dentro do modelo chamado de tradicional, para o atendimento individual e com relações contratuais referentes ao profissional liberal, também não está em contradição com as práticas profissionais. São contundentes as conclusões das pesquisas mais recentes, desta década: ainda há um amplo predomínio das atividades clínicas, marcadas por atuação em consultórios particulares, com dedicação parcial de tempo, onde a psicoterapia é a atividade predominante na sua aplicação em clientela infantil e adulta de classe média. Não é esta também a demanda (espontânea ou não) que os alunos nos trazem para os cursos de Psicologia? Portanto, longe de serem contraditórias, teorias e práticas nos cursos de Psicologia têm-se complementado e retroalimentado.

Esta análise da "dicotomia teoria X prática", parece traduzir, em contrapartida, a insatisfação com este modelo frente a uma demanda potencial e um momento ainda incipiente, mas fértil, de busca de novos paradigmas, com aporte de outros profissionais, de outras práticas e de outras disciplinas.

É preciso, no entanto, estar atento às "praticas alternativas", ou "novos" paradigmas, que se avizinham. Além dos chamamentos já feitos, no interior dos trabalhos que analisamos, com os quais concordo, quanto aos perigos que cercam o pragmatismo técnico, eclético, místico ou anti-teórico, é preciso pensar, em profundidade, algumas das "soluções" encontradas e apontadas nos textos. Foram vários os trabalhos que destacaram as mudanças em curso quanto à concepção do fenômeno psicológico: as "novas práticas" estariam caminhando da ênfase no plano individual (indivíduo a-histórico, isolado do seu contexto) para o indivíduo visto na sua interdependência com o contexto sócio-cultural. Quanto à natureza da intervenção, chamou-se atenção para a mudança de foco: do indivíduo "intra-psi" para a intervenção em grupos e em contextos. Em ambos os casos, no entanto, não percebo "cortes" ou "novos" paradigmas. É a mesma concepção naturalizada de indivíduo, dotado de uma intimidade e em choque com o seu meio, anteriormente concebido e tratado isoladamente, que agora reaparece nas "práticas alternativas", dentro de um contexto e tratado em grupo.

As problemáticas mais recentes trazidas principalmente por cientistas sociais (Castel, 1978; Duarte, 1986; Foucault, 1979; Machado, 1978 e Velho, 1986) têm destacado a predominância da configuração de valores individualistas nas modernas sociedades ocidentais. Particularmente, a heterogênea vida metropolitana, com sua variedade de experiências e costumes, contribui para a diferenciação de papéis, para a multiplicação de domínios dando um contorno mais intenso à vida individual. Exposto a experiências diversificadas, visões de mundo contrastantes, o sujeito intensifica sua autopercepção de indivíduo singular. Os discursos e as práticas psicológicas são estimulados, em parte, em consequência desse tipo de subjetivação individuada e, por seu turno, estimulam a individualização. Na formação 'psi" tradicional ou "emergente" há uma prevalência do ensino teórico e de técnicas visando à construção de profissionais, cujas subjetividades individuadas estariam aptas à constante observação, avaliação e normatização das intimidades, com o objetivo de reconduzir os futuros clientes ao modelo individualista predominante nas sociedades ocidentais modernas.

Esta supervalorização da categoria indivíduo, no entanto, é particularmente complexificada em nosso país. São vários os autores que chamam atenção para o caso especial do Brasil "onde o indivíduo que é a noção moderna (encontra-se) superimposta a um poderoso sistema de relações pessoais". (Da Matta, 1983: 180)

Esta discussão do caso brasileiro assume contornos específicos, nos anos de proliferação das práticas "psi" e dos cursos de formação de psicólogos. Após o golpe militar de 1964, ter-se-ia intensificado o que Jane Russo chama de "individualismo autoritário", resultado de uma negociação entre o modelo hierárquico, que tende a regular as relações sociais no terreno público, e o modelo individualista, que tende a se expandir no espaço do privado, da intimidade. (Russo, 1983)

O "individualismo autoritário" leva a uma exacerbação do plano psicológico e decorrente valorização dos fatos da vida pessoal e dos motivos íntimos. Neste substrato cultural, ocorre a intensa expansão social das práticas e teorias psicológicas, dentre as quais o desenvolvimento dos cursos de formação de psicólogos.

Após o golpe militar de 1964 e, particularmente, depois de intensificada a repressão, em 1968, aprofunda-se o processo de individuação na sociedade brasileira. A família extensa é decididamente reduzida à família nuclear diante de uma conjuntura que reforçava o projeto individualizante. A interdição do espaço público aos movimentos reivindicatórios, o medo ao coletivo, diante da ameaça objetiva da repressão, intensificam este processo dos sujeitos procurarem, na família, o território de privacidade, intimidade e felicidade possível e seguro.

Por seu turno, esperava-se da família, com maior freqüência, a contenção dos desvios de seus membros e uma postura mais atenta à relação pais-filhos, à relação entre os cônjuges e aos seus comportamentos.

Estas transformações e novas exigências levam a família nuclearizada e seus componentes a perderem parâmetros, as regras que os conduziam e as piáticas anteriormente utilizadas para lidar com situações conflituosas. Cria-se, portanto, uma demanda por intervenções que possam totalizar e remapear as subjetividades dos seus membros, demanda respondida pelas práticas "psi".

Por seu turno, o saber e a intervenção psicológica, ao que se pode acrescentar a medicalização e pedagogização, ajudam na construção desta família nuclearizada, com membros individuados, autônomos, ocupados mais intensamente com sua intimidade e privacidade, uma vez que o espaço público lhe está interdito. O psicólogo se auto-representa e é percebido como agente da "nova felicidade", enquanto um dos artífices de uma subjetividade organizada em tomo da liberdade interior, da intimidade. Amplia seu campo de ação às situações de vida ditas normais, valorizando a auto-reflexão e o constante escrutínio do sujeito individuado.

Muito da "produção emergente" desenvolvida a partir dos anos 80, cujos eixos inovadores apresentamos sinteticamente, na seção anterior, compartilha deste movimento expansionista da Psicologia, não se constituindo numa construção nova, mas na exacerbação e proliferação mais minuciosa do velho paradigma individualista.

Por fim, gostaria de destacar que propostas e considerações a serem feitas para mudanças nos cursos de formação não podem se esgotar nos próprios cursos ou profissionais "psi". Nossa formação e os modelos de intervenção que utilizamos são marcas de uma época, a modernidade, e pensá-las criticamente implica, no mínimo, o aporte a outras disciplinas, além do saber "psi", ademais gerado nesta própria matriz.

 

Referências Bibliográficas

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Bastos, A.V.B.; Achcar, R. (1994). Dinâmica profissional e formação do psicólogo: uma perspectiva de integração. Em conselho Federal de Psicologia. Práticas emergentes e desafios para a formação, (p. 249-266). São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

 

 

1 Esta pesquisa está inserida no Projeto Integrado "A produção científica sobre educação superior no Brasil, 1968-1995: avaliação e perspectivas; coordenado pela Profª Marília Morosine da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e, no Rio de Janeiro, pela Profª Maria de Lourdes de Albuquerque Fávero da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Temos contado com o financiamento da FAPERJ, CNPq e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
2 No trato das fontes escritas, foram utilizadas as formulações teórico-metodo/ógicas da "Análise de Discurso" (ORLANDI, E. P. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2.ed. Campinas: Pontes, 1987; ORLANDI, E P. (org). Cestos de leitura: da História no discurso. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994.), principalmente, pelo relevo que dispensa ao processo e às condições da produção discursiva.
3 Este percentual é bastante elevado, mesmo considerando-se que esta resposta era espontânea na ficha de inscrição que os psicólogos preenchiam para requerer o seu registro.