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Psicologia: ciência e profissão

versión impresa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.17 n.1 Brasília  1997

 

O psicólogo e algumas práticas no serviço público estadual de saúde

 

 

Sonia Leite

Professora Assistente da Universidade Estádo de Sá, Psicóloga do Instituto de Assistência dos Servidores do Estado do RJ

 

 

O lugar da Psicologia no contexto social, o papel do psicólogo na instituição hospitalar e a formação do psicólogo para novas atribuições e funções são analisadas através de uma pesquisa com psicólogos da área de saúde, levantando uma necessária discussão sobre este campo de trabalho. O profissional de saúde deve se instrumentalizar com o saber, tendo sempre em vista o não-saber.

-"Quando chegamos aqui, o Hospital não estava esperando. Não tínhamos sala, nem orientação.."

-"A sujeira, o descuido, o abandono com a saúde...as pessoas aqui vivem uma condição desumana. Isso às vezes me paralisa, me dá uma sensação de impotência"2

A questão da inserção do psicólogo na área de Saúde tem sido tema de reflexão e debate, especialmente nas duas últimas décadas3 . Estas discussões têm se intensificado a partir da década de 90 inserindo-se num campo mais amplo onde se destacam temáticas tais como, o lugar da psicologia no contexto social, o papel do psicólogo nas instituições sociais, formação do psicólogo e as práticas sociais, etc. que retratam, em última instância, uma preocupação até certo ponto generalizada, com um quadro de crise cultural, social e ética que tem atravessado, não apenas, a sociedade brasileira com suas peculiaridades, mas também o mundo como um todo. São temáticas que revelam, enfim, a necessidade de reavaliarmos as relações do sujeito com a cultura, as possibilidades de reconstrução de novos valores norteadores da inserção do sujeito na sociedade e a revisão do próprio conceito de sujeito que tem direcionado as práticas sociais e as investigações científicas que se iniciaram na Modernidade.

Acompanhando essas transformações sócio-culturais, verificamos o aparecimento de novos espaços para a prática da Psicologia, reveladores de novas tendências no próprio "perfil" profissional4. A entrada do psicólogo em novos campos de atuação profissional tem exigido respostas para problemáticas até então desconhecidas no campo da formação acadêmica delineando-se, assim, questões relativas à própria identidade profissional do psicólogo nos campos de trabalho recém construídos. Este fato tem, por outro lado, exigido das instituições formadoras uma ampliação dos debates neste campo, além de novas propostas curriculares que acompanhem efetivamente as novas exigências do contexto social.

Além destes fatos, apontaremos algumas questões mais específicas que impulsionaram nosso interesse nesta área de investigação:

a) Uma dada tendência ao imobilismo do sujeito profissional no Serviço Público, caracterizando-se como uma espécie de identificação com o aspecto instituído da instituição5.

b) O fato, ainda presente, de uma predominância na formação do psicólogo de um modelo clínico-liberal-psicanalítico funcionando, algumas vezes como justificativa para 'marcar' uma impossibilidade de trabalho na área institucional pública.

c) Pesquisa realizada pelo CFP (Conselho Federal de Psicologia)6 em 1992, apontando uma tendência ao assalariamento profissional, tendo-se o Estado como um dos principais empregadores nos últimos anos.

d)  Realização de concursos para a área da Saúde Pública e a oficialização de estágios curriculares, a partir de 1991 (Estado).

e) Um interesse no que diz respeito à teoria da constituição do sujeito, seus contornos na relação sujeito-cultura e mais especificamente no que diz respeito à relação sujeito-instituição.

A amostra escolhida constou de 34 (trinta e quatro) profissionais dos quais 31 (trinta e um) do sexo feminino e 3(três) do sexo masculino, lotados nas Unidades Médicas do Estado do Rio de Janeiro7 aprovados em concurso público em 1990, ou seja, à época da pesquisa os profissionais acumulavam em média 3(três) anos de atividades profissionais. O objetivo principal era o de cartografar as atividades que estariam sendo realizadas, supondo-se do ponto de vista da formação profissional uma predominância no campo clínico-liberal e sabendo-se, ainda, que na maioria das Unidades onde os profissionais teriam sido lotados, não havia uma tradição de trabalho profissional, sendo que, em alguns casos, o psicólogo entrava para os quadros da instituição, pela primeira vez.

A seguir, delinearemos os principais pontos encontrados ao longo das etapas desta pesquisa (Análise Documental e Entrevistas) e algumas reflexões e conclusões a que fomos conduzidos durante este processo.

Com relação à primeira etapa desta investigação - a análise documental - foi possível constatarmos, a partir de contatos com a Secretaria de Saúde, através da Comissão de Saúde Mental do Estado, a inexistência de Programas ou Planejamentos prevendo a atuação do psicólogo nas Unidades Médicas do Estado8 (Hospitais Gerais e Institutos), sendo que o único programa existente diz respeito à atuação nas Unidades Psiquiátricas (Hospitais, Centros e Postos), elaborado em 19869. Este programa, vinculado à chamada Luta Anti-Manicomial, norteou a abertura de um concurso público realizado neste período (1986). O que ficou evidenciado foi um verdadeiro desinteresse pela atuação psi nos Hospitais Gerais e Institutos, ou seja, quando se fala em saúde mental o que está em foco é o chamado paciente psiquiátrico e, consequentemente, a atuação profissional nas Unidades Psiquiátricas10. O concurso de 1990 ocorreu a partir de negociações diretas do Sindicato dos Psicólogos e do CRP 05 (Conselho Regional de Psicologia)11 com o representante da Secretaria de Saúde daquele período.

A partir das entrevistas realizadas com os profissionais foi possível obter informações sobre dois aspectos: formação profissional e contexto de trabalho.

 

FORMAÇÃO PROFISSIONAL: Algumas Questões

Os psicólogos entrevistados são oriundos das seguintes faculdades de psicologia: Faculdade Celso Lisboa; Faculdades de Humanidades Pedro II (FAHUPE); Universidade Estadual de Londrina(UEL); Universidade do Estado do RJ(UERj); Universidade Federal Fluminense(UFF),- Universidade Federal do RJ(UFRJ),Pontifícia Universidade Católica do RJ (PUC/Rj). Do total, 68,5% dos profissionais são oriundos da universidade pública, com maior concentração na UFRJ(Universidade Federal do Rio de Janeiro). Os 41,5% restantes oriundos da universidade privada com maior concentração na USU(Universidade Santa Úrsula).

Foi possível verificar uma concentração do ano de formação dos profissionais entre 1985 à 1988 (61,7%) sendo que o maior índice foi em 1988, ou seja, a maior parte dos profissionais eram recém formados à época do concurso, caracterizando este tipo de concurso como uma verdadeira opção de campo de trabalho.

Identificamos uma concentração de cursos, grupos de estudo, durante a formação profissional, no campo do saber psicanalítico (55,8%) e estágios na área de saúde mental/psiquiatria (61,7%). Apenas 17,6% dos entrevistados tiveram experiências de estágios em Hospitais Gerais.

Estes últimos dados foram apontados como geradores de um certo descompasso entre instrumental teórico dominante (psicanálise, fundamentalmente) e a realidade de trabalho. Além disso, diante da impossibilidade de uma "verdadeira" prática psicanalítica atribuída a entraves institucionais o que verificamos, de fato, foi uma predominância do discurso psicanalítico.12 Com relação as tendências em termos de pós-graduação, 55,8% dos entrevistados procuraram cursos de especialização na área de saúde/saúde mental. Verificamos um interesse significativo por cursos de formação em Psicanálise, principalmente, e outros tais como, Gestalt-Terapia, Linha Rogeriana, Existencialismo e Arteterapia. Este tipo de opção pode ser reportado ao fato de que dos 34 (trinta e quatro) entrevistados, 26 (vinte e seis), ou seja, 76,44% dos profissionais, mantêm como atividade paralela a clínica particular. Verificamos, ainda, uma grande incidência em duas questões apontadas pelos entrevistados como fundamentais para a prática profissional neste campo:

- leituras e estudos objetivando a construção do saber e da prática;

- contatos com outros profissionais da área visando romper o isolamento no campo de trabalho.

 

CONTEXTO DE TRABALHO: Atravessamentos e Demandas

Quanto as principais características do contexto de trabalho circunscrevemos dois tipos principais de atravessamentos13:

- do campo médico-psiquiátrico;

- da burocracia pública.

I) O Campo Médico-Psiquiátrico

A questão do atravessamento do campo médico-psiquiátrico diz respeito à constituição histórica do próprio saber médico e suas consequências no que diz respeito à função do campo hospitalar daí por diante.

Como nos mostra Foucault (1984), o Hospital não foi desde sempre instituição médica com fins terapêuticos. Antes do séc.XVIII, o Hospital era, fundamentalmente, lugar de recolhimento e exclusão, com o objetivo de transformação espiritual de loucos, doentes, prostitutas, pobres, etc. Um "morredouro", local de "libertação das almas" dirigido por uma ordem religiosa. Sendo assim, o pessoal atuante nos Hospitais tinha, fundamentalmente, uma função filantrópica, caritativa (religiosa ou não). É somente numa tentativa de anulação dos efeitos "negativos" do Hospital (presença de doenças passíveis de transmissão e "locus" de desordem social) que este passa a ser visto como espaço terapêutico, saneador, tendo como eixo central a idéia de disciplina. Nesta perspectiva, a partir do séc. XVIII, o médico torna-se o principal responsável pela organização hospitalar e pelo funcionamento econômico, ocupando um lugar privilegiado na hierarquia institucional.

Neste processo de organização institucional paulatinamente se constituíra a chamada Medicina Especial que herdara dos higienistas e filantropos a proposta de reforma social, atuando diretamente em termos de "problemática social" e que terá no louco e na loucura seus principais representantes. São, fundamentalmente, os psiquiatras que representarão o saber e a prática capazes de combater e anular as desordens na organização da sociabilidade. Ou seja, a Medicina Especial, antes de ser uma medicina orgânica, é uma medicina social.

Verificamos, então, a pratica médica instituindo dois tipos de objetos como conseqüência de uma "fratura" instaurada historicamente. Temos, a partir daí, uma Medicina Geral e o objeto corpo (racionalidade anatomopatológica) indicativa de uma preocupação cientificista da medicina e, por outro lado, a constituição do objeto mente/alma para uma Medicina Especial com características de cunho filantrópico (racionalidade psicológica). Configurar-se-á, em torno deste último eixo, uma linha de "tratamento moralizante", visando a integração/adaptação do sujeito ao campo social (Birman, 1980). Há, assim, uma tensão que se estabelece entre Medicina Geral e Medicina Especial e uma verdadeira desvalorização deste último campo em função de "suas precárias bases científicas", cuja proposta de atuação o aproximava dos antigos filantropos.

Podemos supor que, hoje, a entrada do psicólogo no Hospital Geral tende a suscitar e a reativar algumas dessas contradições. Uma das principais queixas, por exemplo, dos psicólogos pode ser apontada exatamente na direção de uma não valorização e de um não reconhecimento de suas atividades no campo de trabalho, pela maioria dos médicos voltados para questões sintomáticas e orgânicas. O que podemos verificar ao longo da história é a produção de uma oposição entre dois modelos médicos: um baseado numa racionalidade anatomopatológica e outro baseado numa racionalidade psicológica.

Birman (1980) mostra como, posteriormente, na década de 50, haverá uma tendência de redefinição da medicina somática pela psiquiatria, devido à incorporação do discurso psicanalítico, fundamentalmente, ou do que ele denomina dispositivo das inter-relações pessoais. Um dos paradigmas deste dispositivo é a proposta de humanização da medicina a partir da ênfase na relação médico-paciente e da chamada medicina psicossomática. Apesar de o autor fazer referência a este processo como algo que já teria se instaurado de forma dominante, ou seja, a passagem ou transformação do campo médico em campo médico-psicológico, encontramos a partir desta pesquisa outros indicativos.

O que parece, ainda, predominar é uma atuação por "áreas", onde caberia ao médico o "orgânico" e ao psicólogo o "psíquico". Isto levou-nos a considerar que o chamado campo médico atualizado nas instituições públicas tende a se caracterizar prioritariamente na chamada abordagem anatomopatológica, como afirma uma entrevistada:

-"...O médico cuida da parte orgânica...quando eles precisam de ajuda nos pedem.."

Esta questão associada a outras características como a pobreza, o abandono e o descaso político a que são relegadas estas instituições tende a transformar os Hospitais Estaduais algumas vezes em verdadeiros "morredouros", como bem caracterizou Foucault ao falar do Hospital do séc. XVIII. Encontramos algumas demandas institucionais predominantes dirigidas aos psicólogos. Por um lado, um tipo de demanda que denominamos de emergencial-circunstancial relacionada a situações de "crise" institucional visando, em última instância, a manutenção da ordem hospitalar; ou seja, o que se atualiza nestes espaços é uma proposta de disciplinarização. É preciso enfatizar que este tipo de demanda surge quando o médico "não dá conta", o que evidentemente carrega de tensão a relação entre esses profissionais. Segundo a expressão dos entrevistados eis alguns exemplos de demandas dirigidas aos psicólogos: -"Calar a boca do paciente indócil.."

-"Colocar ordem na enfermaria..."

-"Agir quando o comportamento do paciente impede o trabalho da equipe." Por outro lado, por parte dos usuários das Unidades verifica-se uma demanda de atenção e afeto ou ainda demanda de escuta que, neste último caso, mais do que um pedido de "escuta psicanalítica", como pareceria à primeira vista, trata-se de um simples pedido de reconhecimento, enquanto cidadão, muitas vezes negado pelas condições precárias do atendimento médico.

Segundo uma entrevistada, a princípio os pacientes não sabem que existe psicologia, mas a seguir a demanda fica clara:

-"Chegou alguém que finalmente me escuta..."

Esta situação, como nos indicam alguns profissionais, parece apontar algumas vezes uma ocupação de espaço institucional muito mais de caráter filantrópico do que propriamente profissional por parte dos psicólogos. Outro tipo de demanda bastante freqüente é de psicoterapia por parte dos funcionários das Unidades e de seus familiares, levando-nos a considerar as condições da própria organização do trabalho que facilitariam a produção deste tipo de demanda.

II)A Burocracia Pública

Quanto ao atravessamento burocrático, uma das características frequentes se situa na propagação de uma dada subjetividade que se expressa no profissional como falta de vontade ou de desejo. Uma maneira de compreendermos os efeitos deste tipo de atravessamento é a partir da questão da temporalidade (Leita, 1994). O que podemos observar nas instituições públicas é que o tempo enquanto devir, movimento, parece ser substituído por um tempo pré-visto, pré-determinado, que submete as ações dos sujeitos. Tende-se, então, a viver num passado idealizado ("Antigamente o serviço público funcionava...") ou num futuro previsto que pode ser representado pela expectativa dos benefícios (licença, férias, aposentadoria, etc.) permeados de características vitalícias. Esta parece ser uma forma de escapar ao mal-estar produzido na relação sujeito-instituição pública. A temporalidade assim absolutizada (Virilio, 1983), desvincula-se do cotidiano e do próprio ato de trabalho, ocorrendo uma forma de alienação da subjetividade. O setor público ao se revestir, ainda, como "Terra de Ninguém" (Costa, 1991) produz uma espécie de "autonomia forçada" onde o "fazer ou não-fazer" torna-se indiferente e o não-reconhecimento do trabalho seu fundamento.

 

DESDOBRAMENTOS: Identidade e Modelos na Formação do Psicólogo

Finalizando, gostaríamos de apontar algumas questões que se desdobram a partir da inserção do psicólogo neste campo de atuação:

- discussões sobre a identidade profissional;

- a questão do modelo médico-psiquiátrico na formação do psicólogo;

- o fator da preponderância do discurso psicanalítico na formação do psicólogo banalizando, algumas vezes, a própria prática psicanalítica;

- os limites e as possibilidades no campo da formação profissional no sentido da instrumentalização do sujeito para a produção de movimentos no campo profissional, onde as ações possibilitem a desconstrução do instituído, a produção do desejo e a invenção de novas intervenções, como ilustra a fala de um entrevistado:

-"...A formação do psicólogo também é uma dificuldade, pois não dá conta do trabalho no Hospital... é preciso ampliar esta noção de saúde mental. Em função do despreparo as pessoas acabam saindo, pois o psicólogo ou fica no lugar do paramédico ou não tem lugar. Falta, então, uma identidade do psicólogo no espaço hospitalar".

O espaço hospitalar, antes de mais nada, coloca em questão a identidade profissional do psicólogo. Certas faltas sobressaem e, diante deste vazio, buraco, como se referem alguns profissionais, surgem condições tanto para um verdadeiro imobilismo, quanto para novas construções, tentativas efetivadas no próprio ato de trabalho, como ilustra a fala de uma entrevistada:

-"A Oficina tinha como objetivo discutir o que era o trabalho na área de Saúde e também ser um espaço alternativo para os pacientes. Surgiram questões sobre como trabalhar aqui e o esfacelamento das funções, cargos e trabalho."

O próprio conceito de identidade pode nos levar a pensar algumas questões. Segundo Aurélio (1993) uma das definições possíveis de identidade é o "conjunto de caracteres próprios e exclusivos", neste caso, de uma dada profissão, ou ainda como afirma Ciampa (1989): "...manifestação de um ser idêntico a si mesmo na sua permanência e estabilidade". O espaço hospitalar ao atualizar o campo médico-psiquiátrico demanda do psicólogo a manutenção de uma dada identidade e simultaneamente produz um verdadeiro questionamento dos lugares estabelecidos, em função da heterogeneidade de acontecimentos que este espaço possibilita.

Isso nos leva a reconsiderar o próprio conceito de identidade no sentido de aí incluir, de uma maneira mais radical, a relação do sujeito com a cultura, com o campo social, onde a idéia de transformação e de construção contínua se viabilize e onde o sujeito profissional ao afetar-se pela realidade crie possibilidades de (re)construí-la sob novos parâmetros. Isso significa, por exemplo, que apesar de a prática do psicólogo se "localizar" num Hospital, não, necessariamente, deverá pautar-se no modelo médico de entendimento da assistência, de modo a não proceder a uma naturalização das demandas institucionais ou dos usuários, criando outros modos de intervenção na realidade.

Apesar de alguns entrevistados afirmarem não ter expectativas de mudança com relação ao trabalho realizado, outros consideraram que uma transformação das práticas realizadas se estabeleceria a partir da promoção de discussões e troca de experiências com outros profissionais. Este parece ser um caminho favorecedor da delimitação de um lugar neste campo profissional evitando-se um papel de disciplinarização institucional. Procuramos, ao longo deste relato, caracterizar algumas condições que circunscrevem as práticas do psicólogo no contexto hospitalar público. Nosso intuito foi o de contribuir para uma discussão sobre este campo de atuação procurando romper, simultaneamente, com um certo isolamento que como profissionais somos muitas vezes conduzidos. Gostaríamos de assinalar que consideramos a formação profissional espaço privilegiado para o fornecimento de certos instrumentos ao modo da caixa de ferramentas deleuziana14 onde o saber não seja simplesmente adquirido, mas fundamentalmente questionado e relativizado, criando-se condições para formas variadas de inserção profissional. Para isso é necessário que o profissional se instrumentalize com o saber tendo sempre em vista o não-saber, ou seja, o fato de que nenhum conhecimento é capaz de totalizar o homem, pois o que sempre se anuncia no horizonte é o viés do desconhecimento.

Assim consideramos, por exemplo, que o saber psicanalítico no campo médico-psicológico deverá funcionar menos no sentido de uma simples aplicação teórico-técnica e mais no sentido do fornecimento de um direcionamento ético que valorize o singular de cada situação, onde as rupturas e a criação encontrem expressão questionando a mera reprodução de modelos. Ou seja, mais do que valorizar a saúde, trata-se aqui de resgatar continuamente o existir enquanto processo nos contextos institucionais, onde os discursos dos sujeitos possam encontrar expressão e reconhecimento apesar dos lugares instituídos na configuração institucional, como afirmam nossas entrevistadas:

-"...A instituição espera um trabalho de adequação, integração, controle, e isso se choca com o trabalho de potencializar o sujeito não centralizando na doença..."

"O que é possível ser feito? Uma atuação do psicólogo que não se cristalize na lógica da instituição, não se deixando capturar, aderindo a crítica...".

 

Referências Bibliográficas

Birman, J. (1980). Enfermidade e Loucura Rio de Janeiro, Ed. Campus.        [ Links ]

Ciampa, A.C. (1989). Identidade in: Psicologia Social O Homem em Movimento São Paulo, Ed. Brasiliense.        [ Links ]

Costa, J.F. (1991). Psiquiatria Burocrática - Duas ou Três Coisas que sei dela in: Clínica do Social São Paulo, Ed. Escuta.        [ Links ]

Figueiredo, A.C.C. (1984). Estratégias de Difusão do Movimento Psicanalítico no Rio de Janeiro PUC/RJ, Tese de Mestrado.        [ Links ]

Foucault, M. (1984). O Nascimento do Hospital in: Microfísica do Poder Rio de Janeiro, Ed. Graal.        [ Links ]

Leite, S.C. (1994). A Questão do Vínculo Sujeito-Instituição Pública ou o Tempo Morto nas Burocracias Rio de Janeiro, No Prelo, ENSP (Escola Nacional de Saúde Pública)        [ Links ]

Virilio, P. (1983). Guerra Pura - A Militarização do Cotidiano São Paulo, Ed. Brasiliense.        [ Links ]

 

 

1 Este artigo sintetiza alguns dos dados obtidos na pesquisa denominada Análise das Práticas do Psicólogo no Serviço Público Estadual de Saúde vinculada a UNESA (Universidade Estado de Sá) que coordenei no período de março de 1994 à março de 1995 e que contou com a participação dos seguintes auxiliares de pesquisa: Adriana Silveira Pena, Nícia Maria M. Barroso, Rogério Scheer, Simone M. Delgado, Valéria Cristina G.C. Mendonça.
2 Fala dos psicólogos entrevistados.
3 Um exemplo desta discussão encontramos na pesquisa realizada por um grupo de psicólogos do CRP-06 denominada: Estudo sobre a inserção dos Psicólogos nas Unidades Básicas de Saúde, publicada durante a gestão Movimento nos CADERNOS CRP-06, out/91.
4 Com relação ao tema ver: Psicólogo Brasileiro - Construção de Novos Espaços, organizadores: Ana Lúcia Francisco, Carolina do Rocio Klomfahs, Nádia Maria Dourado Rocha, Campinas, Ed. Átomo, 1992.
5 Esta constatação, a partir da minha própria inserção neste campo, serviu de temática para a elaboração de um trabalho denominado "O Vinculo Sujeito-Instituição Pública ou o Tempo-Morto nas Burocracias"apresentado em set/ 94 no Seminário "O Mal-Estar do Corpo no Encontro com o Trabalho" na ENSP (Escola Nacional de saúde Pública).
6 Jornal Federal - Conselho Federal de Psicologia -Ano VIII, n.33, jan/abr de 1993.
7 Trata-se de 18 (dezoito) Hospitais Estaduais dos quais 4 (quatro) são Hospitais Colônias (dois psiquiátricos, um de hanseníase e o outro de doenças infecto-contagiosas), sendo os demais Hospitais Gerais e Institutos Especializados (Hematologia, ínfectologia, Cardiologia e Diabetes-Endocrinologia).
8 Durante as entrevistas obtivemos alguns programas elaborados pelos próprios profissionais a partir da inserção em suas Unidades.
9 Programade Saúde Mental -Secretaria do Estado de Saúde e Higiene Departamento Cerai de Programs Especiais - Rio de Janeiro/1986.
10 Das 18 (dezoito) Unidades Médicas que se constituiu como amostra da pesquisa apenas duas referem-se a Hospitais Psiquiátricos: Hospital Estadual Psiquiátrico (HEP) e o Hospital Estadual Vargem Alegre (HEVA).
11 Margareth P. Ferreira e Luiz Claudio Teixeira, enquanto representantes das referidas entidades elaboram na época um documento denominado "Sobre a Intervenção Psicológica na rede de Assistência Pública" onde afirmavam a importância do trabalho do psicólogo nas Unidades Médicas do Estado.
12 cf. Fiqueiredo, 1984.
13 Vinculado ao conceito de transversalidade em Análise Institucional que considera, em última instância, a impossibilidade de universalização do conhecimento da realidade, supondo uma multipicidade de causalidades no campo solcial (de ordem afetiva, política, profissional, etc.).
14 Deleuze afirma que uma teoria deve ser como uma caixa de ferramentas, ou seja, é preciso que sirva, que funcione e não para si mesma.