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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.17 no.2 Brasília  1997

 

O que é Psicopatologia Fundamental

 

 

Manoel Tosta Berlinck

Sociólogo, psicanalista, PhD pela Universidade de Cornell (EUA) Diretor do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC/SP Coordenador da Rede Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental

 

 

O Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC-SP deu origem a Rede Universitária de Pesquisa em :Psicopatogia fundamental e reune pesquisadores de tfeze Universidades Brasileiras e duas Universidades Francesas. Posição e Pathos são palavras que definem o campo de trabalho em questão.

É necessário, então, que a palavra posição seja inicialmente entendida para que se compreenda, depois, o que é Psicopatologia Fundamental.

Posição, que se origina no vocabulário militar romano, quer dizer, inicialmente, lugar onde uma pessoa ou coisa está colocada. Refere-se, no vocabulário latino, à distribuição do exército romano e de seus recursos no espaço de batalha, já que a civilização romana se funda na conquista de territórios, ao contrário da civilização grega onde a guerra servia à hegemonia de um tipo particular de cultura e para a emergência do herói.

Uma vez ocupado um território, conquistada uma posição, o exército romano o integrava, com tudo o que continha, ao Império Romano. Os gregos, por sua vez, não tinham essa preocupação colonizadora. Na civilização grega, especialmente na Atenas de Péricles, a noção de posição, tendo também uma referência territorial, é de natureza muito mais relacional. As posições, em Atenas, referem-se à postura do corpo, à maneira, à pose como os moradores da polis - cidadãos e escravos, autóctones e estrangeiros - se relacionam numa trama discursiva que se realiza, por excelência, na agora, ou seja, no espaço da retórica. Richard Sennett em Carne e pedra. O corpo e a cidade na Civilização Ocidental (Rio, Record, 1997), chama a atenção para essa outra dimensão da noção de posição que se refere à postura do corpo, na Grécia de Péricles.

"A cultura grega", diz ele, "faz do andar e da postura ereta expressões de caráter. Caminhar com firmeza denotava masculinidade. Num trecho admirável da Ilíada, Homero escreveu que 'os troianos avançam em massa, seguindo Heitor, que os conduzia em largas passadas'. Por outro lado, 'quando as deusas Hera e Atena surgiram diante de Tróia para socorrer os gregos [segundo Homero], elas pareciam em seus passos de tímidas pombas - exatamente o oposto dos heróis de grandes passadas". Alguns desses atributos arcaicos persistiram na cidade. O andar calmo e firme também indicava nobreza; 'percorrer descuidado as ruas é um traço que reputo desmerecedor de um cavalheiro, quando se pode fazer isso de forma elegante', diz o escritor Alexis. Supostamente, as mulheres deviam caminhar lentamente, hesitantes, e o homem que fizesse o mesmo pareceria efeminado. Ereto, hábil, ciente de onde quer chegar; a palavra orthos - "irrepreensível" - carregava todas as implicações da retitude do macho e contrastava com a passividade desonrosa, marca dos homens que se submetiam à penetração anal". (Sennett,1997,p.44).

Orthos, então, que mais tarde resultou em ortopedia - arte de evitar ou corrigir as deformidades do corpo - e ortodoxia - qualidade que se refere ao fiel, exato e inconcusso cumprimento de uma doutrina e, por decorrência, à Intransigência em relação a tudo quanto é novo; a não aceitação de novos princípios ou idéias - era posição adquirida no Ginásio ateniense que ensinava "...que o corpo era parte de uma coletlvidade maior,a polis,e que pertencia à cidade. Um rapaz forte, obviamente, tornava-se bom guerreiro; uma voz educada garantia sua participação nos negócios públicos.... No ginásio, ensinava-se como usar o corpo de forma que ele pudesse desejar e ser desejado com honra". (Sennett, 1997, p. 42). O processo de aprendizado da posição irrepreensível - orthos - prolongava-se na convivência com os filósofos e, mais tarde, quando esses decidiram se organizar territorialmente, passou a ser praticado nas Academias onde se aprendia a caminhar, lutar, manter relações homoerótlcas com honra e, principalmente, a argumentar.

Quando o cidadão estava pronto para exercer sua posição irrepreensível ele passava a freqüentar a agora onde múltiplas atividades transcorriam simultaneamente, enquanto as pessoas se movimentavam, conversando em pequenos grupos sobre diferentes assuntos ao mesmo tempo. Não havia nenhuma voz dominante. A agora, amplo sítio urbano, apresentava perigo para a linguagem, pois nele, em meio às atividades concomitantes e ininterruptas, as palavras se dispersavam entre os murmúrios e vozes; a massa de corpos em movimento nada percebia além de fragmentos do sentido que elas expressavam. Por isso, os cidadãos tinham que aprender a se destacar através da postura corporal, do uso educado da voz e pela capacidade de argumentação aprendida com filósofos, para se distinguirem dos escravos e dos metecos - os estrangeiros -que frequentavam esse mesmo espaço. Orthos regia o comportamento dos corpos humanos na agora. O cidadão procurava andar de forma determinada e tão rapidamente quanto possível, através do torvelinho, encarando calmamente os estranhos. Tais movimentos, postura e linguagem corporal irradiavam seriedade e correção de maneiras.

Segundo Sennett:

"É evidente que o comportamento corporal que impõe a ordem na cena da ágora não bastaria para conter os efeitos de atividades simultâneas sobre a voz. Na corrente humana, as conversas eram fragmentadas com o movimento dos corpos de um grupo para outro, gerando uma tensão individual quebrada e dispersa". (Sennett, 1997, p. 50)

Essa posição se diferenciava pelo menos de outras duas: a do historiador e a do teatro. Cada uma dessas posições conferia à multidão uma experiência distinta da linguagem falada.

Segundo Jeanne Marie Gagnebin (1997), a palavra grega historiè tem, na época de Heródoto de Halicarnassos, uma significação bastante diferente das noções contemporâneas de história.

Naquele contexto

"...ela remete à palavra histôr, "aquele que viu, testemunhou".

O radical comum (v)id está ligado à visão (videre, em latim ver), ao ver e ao saber (oida em grego significa eu vi e também eu sei, pois a visão acarreta o saber). Heródoto quer apresentar, mostrar (apodexis) aquilo que viu e pesquisou. Trata-se, então, de um relatode viagem, de um relatório de pesquisa, de uma narrativa informativa e agradável que engloba os aspectos da realidade dignos de menção e de memória.... O que diferencia a sua pesquisa de outras formas narrativas não é o(s) seu(s) obJeto(s), mas o processo de aquisição destes conhecimentos. Heródoto fala daquilo que ele mesmo viu, ou daquilo de que ouviu falar por outros; ele privilegia a palavra da testemunha, a sua própria ou a de outrem. Esta preocupação -que podemos relacionar com a crescente prática judiciária, na Grécia do século V, de audição de testemunhas - traz consigo uma primeira diferença essencial entre a narrativa "histórica" de Heródoto e as narrativas míticas, a epopéia homérica por exemplo. Heródoto só quer falar daquilo que viu ou daquilo de que ouviu falar. O período cronológico alcançado se limita, portanto, a duas ou três gerações antes de sua visita, pois o resto do tempo se perde no não - mais - visto, isto é, no não relatável. Em oposição ao nosso conceito de história, esta pesquisa, ligada à oralidade e à visão, não pretende abarcar um passado distante. Tal restrição também a delimita em relação ao discurso mítico, que fala de um tempo longínquo, de um tempo das origens, tempo dos deuses e dos heróis, do qual só as musas podem nos fazer lembrar, pois, sem elas, não podemos saber (idein) daquilo que não vimos.

Multo mais que a consciência de inaugurar uma nova disciplina, designada posteriormente pelo nome de história, é esta oposição crescente à tradição mítica que determina, de maneira diversa, tanto a obra de Heródoto como a de Tucídides. É interessante notar que Heródoto, quando se refere às várias partes de sua obra, não usa a palavra história, mas sim a palavra logos (discurso) para identificá-las; não fala da "história" dos Scitas, do Egito ou de Darius, mas sim de logos scita, de logos egípcio ou de logos a respeito de Darius etc. O próprio vocabulário insiste na grande oposição entre logos e mythos, na qual vai se enraizar a distinção entre o discurso científico, filosófico ou histórico e o discurso poético-mítico. Distinção progressiva que não tem nada de necessário, nem de evidente, nem de eterno, como uma certa historiografia iluminista triunfante gostaria de estabelecer." (Gagnebin, 1997, p. 17).

O discurso do historiador, portanto, representa uma das posições existentes na polis. Neste caso, não se trata de freqüentar a ágora desde uma posição irrepreensível, mas de visitá-la para registrar o que ali ocorre, através de testemunhas e do olhar. Heródoto se confrontava, assim, com povos bárbaros construindo uma imagem convincente de "nós", dos gregos, em particular, dos atenienses. Como ainda observa a Professora Jeanne Marie Gagnebin,"...a confrontação com o "outro" permite, por um jogo de espelhos, pintar um retrato do "mesmo" muito mais coerente e pleno do que teria feito uma simples reprodução dos seus traços; somente a mediação pelo outro permite esta auto-apreensão segura de si mesmo". (Gagnebin, 1997,p. 23).

A posição de Heródoto, viajando pela Grécia e pelos povos bárbaros, visava, então, mais do que relatar o ocorrido, garantir aos gregos uma memória que lhes permitisse o reconhecimento de si ameaçado pela crescente presença dos estrangeiros na polis. Ver, escutar, anotar e relatar constituíam uma prática, mas, também, um movimento que ocorria de uma posição. A noção de posição, então, nem em orthos nem em historiè supõe a imobilidade, mas inclui o movimento corporal. Ao contrário dos cidadãos que se apresentavam na ágora, nas assembléias políticas e nos simpósios filosóficos, o historiador se revelava por viajar, observar, anotar e, principalmente, relatar o ocorrido estabelecendo as diferenças entre os gregos e os estrangeiros.

Uma terceira posição que se manifesta na polis é a que se expressa no teatro. Nos teatros da velha cidade, as pessoas Já ocupavam seus lugares para ouvir uma única e clara voz.

"No teatro, a voz singular assumia forma artística, através das técnicas da retórica. Os locais reservados aos espectadores eram tão organizados que amiúde a eloqüência os vitimava, paralisando-os e humilhando-os com seu fluxo".

(Sennett,1997,p.47).

Já no chamado século de Péricles, que coincide com o tempo dos grandes tragediógrafos -Ésquilo, Sófocles, Eurípides - e dos grandes comediógrafos - Aristófanes - o teatro sofre várias modificações.

Assim, Péricles reúne os diversos teatros da velha cidade fazendo construir um grande espaço - o teatro de Diôniso - que tinha capacidade para 30.000 espectadores, sentados em arquibancadas semicirculares escavadas na rocha das encostas da Acrópole de Atenas (Kury, 1992, p. 9).

Essas e outras circunstâncias possibilitaram mudanças nas representações teatrais. Entretanto, o que é necessário ressaltar, aqui, é que dada a distribuição do teatro, o público via-se na contingência de dobrar o torso para ver e melhor ouvir o que estava sendo dito. Sentada, a platéia dá muito mais atenção ao que ocorre à frente, fazendo pouco caso do que acontece ao lado ou atrás. Originalmente, nesses patamares, as pessoas ocupavam seus lugares em bancos de madeira; com Péricles, o teatro evoluiu para um sistema de largas passagens, separando assentos de pedra mais estreitos, o que evitava que elas incomodassem umas às outras com. suas idas e vindas. A atenção do espectador permanecia focada no - plano central. A palavra "teatro" deriva do grego theatrom, que pode ser traduzida literalmente como "um lugar para ver". Um theorus.- artista de teatro- era considerado como uma espécie de embaixador uma vez queo teatro realmente, corresponde a um tipo de atividade diplomática, ao trazer aos olhos e ouvidos da assistência uma história de outro tempo ou lugar. Mas, nos tempos de Péricles, o teatro já não era feito para a retórica que vitimava a platéia, paralisando-a e humilhando-a com seu fluxo.

Na nova época, quer na comédia, quer na tragédia, o relato teatral não podia provocar catharsis e sim experiência. Quando um tragediógrafo menos conhecido, pertencente já ao período da decadência ateniense, apresentou uma peça que desencadeou forte emoção nos espectadores, foi condenado ao ostracismo, ou seja, expulso de Atenas por 10 anos. As tragédias, representadas em Atenas, passam-se todas em Tebas, assegurando, assim, uma distância necessária para a existência da experiência, ou seja, o enriquecimento advindo dos pensamentos suscitados no público pelarepresentação.

A posição do teatro se opõe, assim, à do orthos porque aquele não pretende convencer o interlocutor da irrepreensibilidade de sua posição e, sim, apresentar um discurso mito-poiético epopéico que produza experiência. O teólogo Walter Burkett resumiu esse contraste da seguinte maneira:

"Mythos como oposto de logos, que deriva de legein, quer dizer "reunir", ou associar fragmentos de indícios, de fatos verificáveis; logon didonai, significa prestar contas diante de uma audiência crítica e desconfiada; mythos é contar uma história sobre a qual não se tem responsabilidade: ouk emos ho mythos, não inyentei isso, apenas ouvi falar por aí. (cf-Sennett, 1997, p. 72).

A linguagem de logos liga os elementos. Logon didonai permite conexões: existe um público suspicaz, julgando os argumentos do orador. Em todas as formas de logos - de onde se deriva a lógica, cada vez mais querida dos filósofos e que encontra em Aristóteles seu grande mestre grego - o orador é identificado por suas palavras; elas lhe pertencem e impõem uma responsabilidade inalienável.

O pensamento político grego moldava idéias de democracia em torno de aspectos de logos. Conforme assinalou Clístenes, liberdade de expressão e debate só fazem sentido se as pessoas estão cientes de sua imputabilidade; caso contrário, os argumentos não têm valor, as palavras carecem de importância.

O orador não é responsável pelo que diz no mito, cuja linguagem está vinculada à crença incorporada no aforismo helênico: "não inventei isso, apenas ouvi falar por aí". A maioria dos mitos, inclusive gregos, narra feitos de entes mágicos ou de deuses, o que leva a crer que tenham sido eles próprios seus autores; homens e mulheres apenas os passam adiante.

Portanto, a audiência não pode suspeitar do simples relator, como do orador que, na assembléia política, revindicasse crédito para o que diz. O mito é, assim, a ratificação do compromisso social. Segundo a famosa definição de Aristóteles, trata-se de "uma suspensão voluntária da descrença". A mitologia que deu origem - epos - aos primeiros dramas estabelece o verdadeiro contexto para tal afirmação. Mito diz respeito à crença nas palavras em si mesmas. (Sennett, 1997, p. 73).

Segundo o classicista Froma Zeitlin, o teatro trágico grego (entenda-se, aqui, também, o teatro da comédia já que, como se sabe, tragédia e comédia andavam juntas, não se separavam) mostrava o corpo humano "...em um estado não natural de pathos (sofrimento), quando se afastava de seu ideal de força e integridade (...). A tragédia insiste (...) na exibição desse corpo". (cf.Sennett,1997,p.53).

Nesse sentido, pathos, relato mito-poiético epopéico do sofrimento, era o oposto de orthos. Ora, assim entendida, a tragédia é pathos-logos, ou seja, linguagem de sofrimento que lança mão do recurso mito-poiético epopeico para permitir experiência.

Pathos

Além de sofrimento, de pathos deriva-se, também, as palavras "paixão" e "passividade". Assim, a Psicopatologia Fundamental está interessada num sujeito trágico que é constituído e coincide com o pathos, o sofrimento, a paixão, a passividade. Este sujeito, que não é nem racional nem agente e senhor de suas ações, encontra sua mais sublime representação na tragédia grega. O que se figura na tragédia é pathos, sofrimento, paixão, passividade que, no sentido clássico, quer dizer tudo o que se faz ou que acontece de novo, do ponto de vista daquele ao qual acontece. Nesse sentido, quando pathos acontece, algo da ordem do excesso, da desmesura se põe em marcha sem que o eu possa se assenhorear desse acontecimento, a não ser como paciente, como ator.

Ora, é digno de nota que esse significado de pathos traga em sua franja o sentido etimológico de passividade, sentido lembrado por Descartes no começo do Tratado das paixões:

"Tudo o que se faz ou acontece de novo é geralmente chamado pelos filósofos de paixão (pathos) relativamente ao sujeito a quem isso acontece, e de ação relativamente àquele que faz com que aconteça". (cf.Lebrun,1987,p.17).

Aqui Descartes recorda brevemente a definição aristotélica do agir e do padecer. Esses dois conceitos são inseparáveis, mas cada um deles designa uma potência bem distinta. Padecer é inferior a agir por dois motivos. Em primeiro lugar, é próprio do agente encerrar em si mesmo um poder de mover ou mudar, do qual a ação é a atualização, o ajuste está naquilo que faz ocorrer uma forma. Diz-se paciente, ao contrário, àquele que tem a causa de sua modificação em outra coisa que não ele mesmo. A potência que caracteriza o paciente não é um poder operar, mas um poder tornar-se, isto é, a suscetibilidade que fará com que nele ocorra uma forma nova. A potência passiva está, então, em receber a forma. Em termos aristotélicos, deve ser lançada à conta da matéria. Em segundo lugar, padecer consiste essencialmente em ser movido, ao passo que o agente, à medida que sua atividade própria está em comunicar uma forma, não é essencialmente mutável. Ocorre, decerto, que deve mover-se para agir sobre o paciente, mas enquanto agente. É porque ele também é um ser que contém matéria. O paciente, como tal, é que, por natureza, é um ser mutável, caracterizado pelo movimento.

Nessa inferioridade do padecer, encontra-se, assim, a desqualificação, própria dos clássicos gregos, da mobilidade relativamente à imobilidade. É por conter matéria, isto é, indeterminação, que um ser se move. O fato de ter que mudar (de lugar ou de quantidade ou de qualidade) para receber uma nova determinação mostra que ela não possui todas as qualidades de uma só vez, e que a aparição destas depende da intervenção de um agente exterior. Ora, este último aspecto é fundamental para a determinação do pathos. É reagindo a uma ofensa que sinto raiva. Sinto medo ao imaginar um perigo iminente que me possa prejudicar ou destruir. O pathos é sempre provocado pela presença ou imagem de algo que me leva a reagir, geralmente de improviso. Ele é, então, o sinal de que eu vivo na dependência permanente do Outro. Um ser autárcico não teria pathos.

Portanto, não existe pathos, no sentido mais amplo, senão onde houver mobilidade, imperfeição ontológica. Se assim for, pathos é um dado do mundo sublunar e da existência humana. Devemos contar com pathos. Devemos até aprender a tirar proveito dele. Tirar proveito de pathos significa transformá-lo em experiência, ou seja, não só considerar pathos como estado transitório, mas também como algo que alarga ou enriquece o pensamento. Na tradição trágica, pathos rege as ações humanas que, em determinadas circunstâncias, constituem um acontecimento. Assim é com o assassinato de Agamemnon, assim é com o assassinato de Laio. Quando isso acontece, pathos transforma-se em patologia, ou seja, um discurso sobre o sofrimento, as paixões, a passividade. Quando, entretanto, a experiência é anímica, ou seja, ao mesmo tempo terapêutica e metapsicológica, estamos, então, no âmbito da Psicopatologia Fundamental.

Pathos, então, não nasce no corpo pois vem de longe e de fora. Mas passa necessariamente pelo corpo e se expressa pela hybris, pela desmesura, fazendo parte da natureza humana, da physis, que melhor se traduz por brotação. Pathos brota no corpo sem dele fazer parte intrínseca e rege as ações humanas.

Ocupados com pathos - o sofrimento, as paixões, a passividade - os filósofos, desde a antiguidade grega lhe opuseram o discurso racional - logon didonai - que define a posição irrepreensível. Mas este, por se opor, sempre falha. (cf. Meyer, 1994). O psicopatológico, então, não solicita um discurso racional, mas mito-poiético epopéico que, à medida que produz experiência, é terapêutico. Em outras palavras, o psicopatológico contém uma terapéia no sentido empregado por Platão em O Banquete. Porque, em suma, faz parte da medicina como a arte de se ocupar dos fenómenos do amor. Quem se ocupa disso - os psicopatólogos - são médicos, no entender de Erixímaco. "É com efeito a medicina, diz ele, para falar em resumo, a ciência dos fenômenos do amor, próprios ao corpo". (cf. Fédida, 1988, pp. 28-29).

O médico, como nos lembra Platão, está constantemente na relação com o amor porque as doenças físicas, em sua evolução, se apresentam como pathos, paixões amorosas. O médico cuida de Eros doente. Terapéia, em grego, é o cuidado exercido sobre Eros doente. O médico deve restabelecer o equilíbrio do corpo para que Eros doente pelo excesso de amor, seja liberado desse excesso pelo amor que lhe traz o médico. Amor de médico é amor justo: estabelece uma contrapartida, um novo equilíbrio com a parte doente de Eros. Tal movimento é possível porque pathos pode ser dosado, pois tanto ele como as ações são movimentos e, como tais, contínuas, isto é, grandezas que podem ser divididas sempre em partes e em graus menores, de tal forma que, quando age, é sempre possível ao eu fixar a intensidade patológica apropriada à situação desde que com a ajuda de um médico.

Em O Banquete, o que se depreende é que a doença física não é somente uma perturbação do amor, como só pode ser cuidada, se o médico - porque ele é terapeuta -introduzir a justa proporção de amor.

Pathos, então, designa o que é pático, o que é vivido. Aquilo que pode se tornar experiência. "Psicopatologia" literalmente quer dizer: um sofrimento, uma paixão, uma passividade que porta em si mesmos a possibilidade de um ensinamento interno que não ocorre a não ser pela presença de um médico (pois a razão é insuficiente para proporcionar experiência). Como pathos torna-se uma prova e, como tal, sob a condição de que seja ouvida por um médico, traz em si mesma o poder de cura. Isso coloca imediatamente a posição do terapeuta. Pathos não pode ensinar nada, pelo contrário, conduz à morte se não for ouvido por aquele que está fora, por aquele que, na condição de espectador no teatro grego do tempo de Péricles, se inclina sobre o paciente e escuta essa voz única se dispondo a ter, assim, junto com o paciente, uma experiência que pertence aos dois.

O mesmo Platão, entretanto, no diálogo sobre As leis, afirma existirem dois tipos de médicos: os que cuidam dos escravos e dos estrangeiros que, não sabendo falar, são medicados em silêncio após detalhada observação, e os que cuidam dos cidadãos que, sabendo falar, narram, numa linguagem mito-poiética epopéica as origens e percursos, no corpo, daquilo que os fazem sofrer, daquilo que é pathos.

Essa última forma de medicina, que encontra seus fundamentos no teatro grego e na noção de cidadania predominante na Atenas de Péricles, é, em última instância, uma retórica que analisa pathos, de modo a permitir ao orador suscitá-lo ou pacificá-lo. Saber jogar com impulsos emotivos pertence à técnica retórica e é provável que os retores tenham sido os primeiros a atribuir ao pathos este sentido a que hoje chamamos psíquico.O estudo dos efeitos que o discurso produz sobre os homens é que faz com que o pathos perca o seu sentido mais amplo de fenômeno passivo (sentido que igualmente convém às percepções sensíveis, como dirá Descartes) para vir a designar as percepções da alma. O objetivo do orador, e, mais ainda, o do poeta, não consiste apenas em convencer através de argumentos. É necessário, também, que ele toque a mola dos afetos, e utilize os movimentos da alma que prolongam certas emoções. Desta forma, é preciso então saber a propósito de que objeto determinado e por que disposição determinada do autor se realizam estas variações afetivas.

 

Psicopatologia Fundamental

Em presença dessas posições, é possível, agora, passar a uma primeira aproximação da posição da Psicopatologia Fundamental. e terapia. Trata-se de uma posição porque reconhece a existência de outras posições na polis dentre as quais se destacam a do orthos e a do historiador. Essas posições nascem de posturas corporais e essas posturas - verdadeiras formas de existência dos corpos - engendram discursos - logos - que representam essas posições.

Na posição da Psicopatologia Fundamental, pathos - o sofrimento, as paixões, a passividade - assujeitam o ser humano criando um tipo particular de sujeito que também encontra suas origens no teatro grego do tempo de Péricles. Neste sentido, tanto o sofrimento como as paixões e a passividade se apoderam do corpo sem fazerem parte inerente dele. O pathos vem de longe e vem de fora e toma o corpo fazendo-o sofrer. Até mesmo na contemporaneidade é essa a noção que preside a definição de doença. O corpo, em sí, não é doente. Ele é natural. Por isso está sempre apto a ficar ou a cair doente, sendo possuído por algo que vem de longe e vem de fora, seja um vírus, seja uma crise psíquica. Mas o que vem de longe e vem de fora, introduzido no corpo aí brota dada a sua condição de natureza. O psiquismo, o aparelho psíquico, é, na ótica da Psicopatologia Fundamental, um prolongamento do sistema imunológico. Ele se constitui graças à violência originária e é uma resposta defensiva do organismo a ela. Pathos é sempre somático, ocorre no corpo; e a psique é, na tradição socrática, estritamente corporal não havendo, nunca, solução de continuidade entre essas duas instâncias, (cf. Reale, 1994).

Assim como a Psicopatologia Fundamental reconhece a existência de múltiplas posições corporais-discursivas na cidade, ela pretende, também, que os que ocupam outras posições na polis reconheçam a especificidade de sua posição. Desde as suas origens, a cidade abriga a multiplicidade e esta só cresce com os tempos. Além disso, a especificidade da posição da Psicopatologia Fundamental não quer dizer, também, que se trata de uma postura rígida e sem movimento. O psicopatólogo fundamental visita outras posições na cidade, assim como é visitado por aqueles que ocupam outras posições. Isso é particularmente verdadeiro na Universidade -uni[dade] na [di]versidade - onde, como propõe Fédida, as posições devem ser explicitadas e mantidas para que a experiência ocorra e se transforme em saber. (cf. Berlinck, 1997, p. 71).

Desde que a posição da Psicopatologia Fundamental é tal que se dispõe sempre a escutar um sujeito que porta uma única voz que fale do pathos que é somático e que vem de longe e de fora, ela é sempre objeto da transferência, ou seja, de um discurso que narra o sofrimento, as paixões, a passividade que vem de longe e de fora e que possui um corpo onde brota, para um interlocutor que, por suposição, seja capaz de transformar, com o sujeito, essa narrativa numa experiência. Esta palavra, aqui, adquire o sentido preciso de enriquecimento, ou seja, a experiência é a possibilidade de se pensar aquilo que ainda não foi pensado. Nunca é pouco repetir, a Psicopatologia Fundamental não ocupa o lugar do logon didonai, do discurso dos que estão sustentando uma posição irrepreenssível. É por isso que se diz que na posição da Psicopatologia Fundamental se produz metapsicologia, ou seja, um discurso mito-poiético epopéico que é uma experiência e que, como tal, é terapêutica.

Por todas essas razões, a posição da Psicopatologia Fundamental é assim denominada para se distinguir de uma outra posição que é a da Psicopatologia Geral. Enquanto esta rica posição é um discurso a respeito das doenças, das formas corporais-discursivas que assumem o pathos, a Psicopatologia Fundamental está interessada em suscitar uma experiência que seja compartilhada pelo sujeito. Trata-se, portanto, de uma posição médica, no sentido grego desta palavra, quando se refere ao médico de cidadãos. Por Isso, o psicopatólogo fundamental deve se interessar vivamente pela Psicopatologia Geral e deve visitá-la com a freqüência devida sem, no entanto, pretender habitar essa outra posição.

A descoberta do inconsciente freudiano como manifestação do pathos e como algo que surge da violência primordial, bem como a consequente metapsicologia que é conhecida por psicanálise é a casa mais confortável existente na contemporaneidade para a Psicopatologia Fundamental.

De fato, a psicanálise nasce e se desenvolve como uma Psicopatologia Fundamental, mas com a morte de Freud e a subsequente babelização da psicanálise, a casa da psicanálise fica tão vasta e comporta tantas posições que se torna necessário especificar cada vez mais precisamente qual a posição que se ocupa nesta enorme mansão. Assim, por exemplo, o psicanalista Fábio Herrmann, ao distinguir análise terapêutica e análise didática reconhece a possibilidade de uma psicanálise de e para normais. (cf. Herrmann, 1996, p. 204). Ora, a psicanálise didática parece não só se afastar da posição da Psicopatologia Fundamental, mas, ao sugerir que a doença psíquica é para psiquiatras e pslcoterapeutas, a psicanálise, contendo um lugar para a Psicopatologia Fundamental, não se confunde com ela. A Psicopatologia Fundamental só é psicanalítica porque, apesar de psicanalistas, há, na casa da psicanálise, um lugar para ela.

Realiza-se, assim, uma primeira especificação da posição da Psicopatologia Fundamental que orienta, dirige os trabalhos que estão sendo realizados no Laboratório de Psicopatologia Fundamental do Núcleo de Psicanálise do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, crescentemente, em outras Universidades brasileiras e estrangeiras como atesta a Rede Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental.

Como primeira especificação de uma posição, este texto é um tanto esquemático e categórico pois solicita clareza e concisão. Com isso, pretende-se afirmar que o trabalho de especificação dessa posição está apenas no início e que requer um esforço permanente e sistemático de pesquisa que já vem sendo feito por todos os que pretendem ocupá-la. De qualquer forma, a Psicopatologia Fundamental faz parte de uma rica e honrosa tradição que trata do sofrimento humano e, por isso, merece ser cultivada.

 

Referências bibliográficas

Berlinck, Manoel Tosta e Seincman, Monica, "Entrevista com Pierre Fédida" in Psicanálise e Universidade, no. 6, 1o. semestre de 1997, pp. 57 - 71.        [ Links ]

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