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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.17 no.2 Brasília  1997

 

Psiquiatria, psicanálise e psicopatologia

 

 

Riva Satovschi Schwartzman

Prof. adjunto do Depto de Psicologia da UFMG (aposentada). Mestre (Duquesne University, Pittsburgh, Pa., U.S.A.) Psicanalista

 

 

A etiologia orgânica e ouso recorrente de drogas químicas constituem o discurso e a prática dominantes na psiquiatria atual. Outras abordagens psiquiátricas, a abordagem psicanalítica e estudos pslcopatológicos irão apontar outros caminhos e explicações para os distúrbios psíquicos.

Os meios de comunicação e divulgação têm sido insistentes em publicar descobertas médicas que prometem alívio para qualquer tipo de sofrimento psíquico. As notícias afirmam sempre que tais sofrimentos são na verdade, doenças orgânicas cujas causas acabam de ser descobertas, assim como o medicamento que as cura. Nessa perspectiva, a Psicopatologia é tomada como área de conhecimento que pertence naturalmente ao campo epistêmico da Medicina.

Mais do que no terreno da teorização, no entanto, é no cotidiano da prática médica que a abordagem do fenômeno psicopatologia) como doença tem sido grandemente reforçada pelas recentes e bem sucedidas descobertas de drogas que atuam de forma eficiente na eliminação ou abrandamento de muitos dos sintomas das chamadas doenças mentais. Esse inegável ganho prático obscurece e até mesmo exclui da discussão especializada o objetivo inaugural da investigação psicopatológica, cuja ambição é a de alcançar o esclarecimento sobre a origem, natureza e diferenciações entre as muitas expressões dessas doenças. O tratamento a ser dado ao sofrimento psíquico fica então reduzido aos limites da busca de alívio imediato; ou, pior ainda, condenado à conclusão de que "isso não é nada": nada que possa ser explicado por uma causa orgânica. Define-se nesse ponto o marco de separação entre os projetos da Psiquiatria e da Psicanálise, apontado por Freud já em 1915 (Freud,S., 1915): a Psiquiatria firmando-se na busca de causas orgânicas; a Psicanálise postulando a historicidade do corpo.

Proponho que se reflita não apenas nas razões que alimentam a postura guerreira que a Psiquiatria tem adotado ao afirmar a causalidade exclusivamente biológica de todo sofrimento psíquico, mas também nas razões que a têm levado a, concomitantemente, declarar que a Psicanálise está morta. Logo de início, não concordo com a opinião de muitos que vêem aí tão somente uma luta corporativista. Se a motivação de uma disputa pelo "mercado de clientes" preside parte dos interesses que alimentam esse esforço, pergunto-me sobre que outras forças motivadoras se somariam a essa, para que o empenho se mostre ao final tão forte. Um tal questionamento acaba por tornar-se exigência imposta a todos os que se interessam pelo estudo da Psicopatologia e pelo trabalho clínico voltado para o sofrimento psíquico, face à realidade da entusiasmada acolhida que as promessas de cura química recebe da maioria das pessoas. E se fizéssemos uma escuta psicanalítica daquelas declarações repetidas? "A Psicanálise está morta"!.... "A Psicanálise não está viva"!... "Todo sofrimento psíquico é fruto de uma causa orgânica curável através de medicamentos!". O que se pode ouvir aqui afirmado sob a forma de uma negativa tão reiterada?

O preconceito idealista na Psiquiatria.

Recorro a Paul Bercherie (Bercherie, P., 1989) para o encaminhamento dessa discussão. Esse autor mostra, em sua cuidadosa reconstrução da história do pensamento psiquiátrico, que o trabalho inaugurado por Pinel no século XVIII estagnou, após longo período fértil, diante de impasses que não pode superar. Destaca-se dentre eles o que o autor chamou com justiça de preconceito idealista. Ele consiste em "conceber a ordem dos fenômenos como uma casca opaca que encobre a essência pura, a realidade última que é responsável por eles" (Bercherie, P., 1989, p. 318) e que deveria ser a realidade de um corpo doente.

Deixo de lado muitas questões que inevitavelmente surgem desse postulado para dar atenção à sua qualidade dualista: ela se define na separação mente/corpo. Na Psiquiatria hoje, expressa-se não apenas pela divisão, mas, mais fortemente, pela afirmação do valor de determinação do lado do corpo, anulando o polo mental. A insistência nessa anulação faz-nos pensar numa reação à Psicanálise, numa formação reativa à descoberta do inconsciente.

Tomada como defesa, a força da repetição da notícia da morte da Psicanálise denuncia o quanto a revelação de um polo inconsciente que (pelo menos em parte) nos governa é mesmo desconcertante. A história do movimento psicanalítico está povoada de conflitos que atestam o desconforto de depararmo-nos com meandros de nossas próprias vidas que não podemos compreender e muito menos dominar. Reagir a esse impacto com tentativas variadas de negação tem custado à ciência psiquiátrica uma paralisação da construção teórica. Essa é a conclusão a que chega o estudo de Bercherie.

No entanto, não me parece estar aí o melhor de seu trabalho; considero melhor sua advertência: ela dirige-se a todos os que se propõem a estudar a loucura; não há como fazê-lo a não ser identificando e lutando continuadamente contra as resistências que surgem sempre no caminho dessa investigação.

Entendo então que a reação da Psiquiatria deve ter para a comunidade dos psicanalistas o valor de uma boa caricatura. Vê-se nela a instalação de uma cisão dualista que paralisa o fluxo da investigação das obscuridades da loucura e do funcionamento psíquico em geral. A existência de polos opostos, que regem a vida psíquica na tessitura de seu confronto permanente, foi uma constatação à qual Freud - mesmo enfrentando dificuldades, manteve-se fiel. O impedimento nas investigações do psiquismo faz-se pela redução da riqueza paradoxal do confronto de poios opostos inseparáveis e inerentes à condição humana a um de seus lados apenas.

Essa dificuldade não é um privilégio psiquiátrico. As descobertas mais cruciais da Psicanálise só se fizeram através de sua superação. Por outro lado, alguns dos importantes momentos de impasse e paralisia da pesquisa psicanalítica assentam-se também no apego a um dos polos de uma construção psíquica ambígua e complexa, negando e obscurecendo sua articulação a um polo oposto. Isso não pode ser entendido como simples sinal de imaturidade do pensamento psicanalítico: vislumbra-se aí o cerne do que constitui o objeto da investigação da Psicanálise, o qual mostra-se capaz de convocar uma defesa e, tendo sido já parcialmente revelado, ocultar-se mais uma vez. São esses enfrentamentos o que discutirei a seguir.

 

Retorno a Freud e o respeito às oposições na Psicanálise.

Uma das críticas que se faz com maior freqüência à Psicanálise diz respeito ao fato inegável de que em sua produção retoma-se maciçamente o texto freudiano. Não sendo essa uma prática comum em outras áreas de conhecimento, tal retorno à palavra do pioneiro é interpretado como estagnação, como dificuldade no progresso do conhecimento, cujo percurso é aí pressuposto como linear. Estariam os psicanalistas todos, tão somente presos à autoridade de Freud na validação de seu próprio trabalho? Ou podemos -tomando um pouco de distância da ideologia mecanicista e pragmatista que nos submerge - captar, na ironia daqueles comentários, um dos preconceitos acima discutidos?

Uma cisão subjacente ao preconceito acima é a que separa novo de velho. Nada aí é neutro: novo seria obviamente melhor que velho, e o progresso do conhecimento deveria brindar-nos sempre com novidades. O que a Psicanálise vem-nos dizer no entanto, é que o crucial dos fenômenos psíquicos é sempre um conhecido e desconhecido. Especialmente no terreno da loucura, sabe-se que a patologia faz parte do cotidiano e brinca de nos surpreender; não com algo novo mas, constrangedoramente, com lapsos, esquecimentos e enganos gerados e desenvolvidos por paixões por demais familiares.

A coexistência de desconhecimento e intimidade que qualifica o objeto da investigação psicanalítica obriga não apenas à sustentação dessa tensão novo/velho, mas também ao reconhecimento de que não se trata aí apenas da aplicação de um método já consagrado de pesquisa, nem dos espantos de uma descoberta. Trata-se de uma recuperação.

Se se toma como horizonte de reflexão a singularidade do objeto da investigação psicanalítica, vê-se que não é nada acidental a volta constante ao texto freudiano. O que se busca alcançar nesse retorno não é a certeza de um conhecimento fixo, garantido. Busca-se a postura pessoal que possibilita a abertura para o instante sempre fluido e fugaz no qual o inconsciente se faz ouvir. Aquele posicionamento, face a si próprio e ao outro, é o que define essencialmente o analista e seu trabalho. É com essa paixão pela verdade que ele se identifica e é ela o que primordialmente o constitui. Busca-se em Freud muito mais a inspiração do que a palavra final.

E só reconhecendo a importância do envolvimento do psicanalista com o seu objeto de investigação que se pode compreender o grande interesse que desperta qualquer depoimento que enriqueça o que se conhece da biografia de Freud. As muitas cartas que ele escreveu destacam-se nesse interesse. Um bom número delas não trata de temas psicanalíticos; elas mostram algo do olhar sobre o mundo, das atitudes, opiniões, gostos, afeições e desafetos do Mestre.

Freud é quem primeiro afirma a crucialidade da sustentação de uma paixão inspiradora para o desenvolvimento do trabalho em Psicanálise ao contar a Marta, em cartas coloridas de grande entusiasmo, o impacto que sofreu por ocasião de seu encontro com Charcot. Ele encontra em Charcot o modelo de cultivo da verdade, de espírito de investigação e de honestidade intelectual que o fazem diferente e destacado no cenário dos homens de ciência de sua época. O encantamento com o professor que estas cartas exalam não é dirigido tanto à obra, mas à atitude. É a partir de um tal modelo que o jovem Freud enche-se de coragem para enfrentar as barreiras nas quais esbarravam todos no tratamento de pacientes histéricos e que, já naquele momento, não lhe eram desconhecidas.

O retorno ao texto freudiano é uma marca muito visível que distingue a produção do pensamento psicanalítico da produção das ciências da natureza. Com maior sutileza, mas não com menor Importância, listam-se outras diferenças impostas pelo objeto de interesse da Psicanálise. Algumas delas são especialmente importantes para a Psicopatologia.

Tomo então os polos sujeito/objeto e alguns de seus derivados. O momento dramático de seu surgimento na história da Psicanálise dá-se quando Freud descobre em sua própria infância as mesmas paixões que tecem osofrimento de seus pacientes. Seu registro está na conhecidíssima carta dirigida a Fl iess, a 4 de outubro de 1897:

"Muito pouca coisa está acontecendo comigo externamente; contudo, internamente, ocorre algo muitíssimo interessante. Pois, nos últimos quatro dias, minha auto-análise, que considero indispensável para esclarecer todo o problema, tem prosseguido nos sonhos e me presenteou com as mais valiosas referências e indicações" (Freud,S., 1897).

Nas linhas que se seguem, Freud, em tom de confissão, relata a Fliess ter reconhecido em sua própria história infantil desejos e conflitos que ele (Fliess) identificara em seu filho: um envolvimento apaixonado por sua mãe, assim como um ciúme feroz do irmão um ano mais novo que ele, e que morreu com poucos meses de idade. Condensa-se aí o drama que sustenta a construção do sujeito psíquico e também de todo sofrimento neurótico: o triângulo familiar, o complexo de Édipo, os processos que resultam nas construções identificatórias e nas escolhas amorosas. É também em sua auto -análise que Freud reconhece ter captado o núcleo construtor da subjetividade que se expressa no sofrimento neurótico, nos sonhos, nos enganos da fala, nos esquecimentos.

Anula-se a separação pesquisador/objeto de pesquisa. A linha de divisão entre público e privado fita também, conseqüentemente, enfraquecida.

O mesmo cuidado que desperta no analista o relato de um caso clínico para que a vida particular de seu paciente não sofra exposição, lnibe-o quando o relato de suas reflexões atinge os meandros de seu próprio psiquismo e de sua vida privada. Quando lemos A Interpretação dos Sonhos (Freud.S., 1900), é com pesar que nos deparamos com interrupções no trabalho interpretativo, em momentos em que Freud declara que o prosseguimento implicaria em mostrar algo que prefere guardar. Concede-se ao analista que assim procede o direito de fazê-lo: o simples relato de um sintoma ou do fragmento de um sonho é revelador, já que a separação sintoma/doença, tal como entendida pela Medicina não se aplica aqui. Não há no sofrimento psíquico uma verticalidade que ordene as coisas de modo a colocar as causas da doença em lugar oculto e distante, deixando à tona apenas os sintomas. Os sintomas são os portadores de seu sentido, convidando-nos a esculá-los. Aquilo que se oculta emaranha-se com o artifício ocultador na horizontalidade da fala e então também se revela.

Finalmente, se pensamos o todo do trabalho em Psicanálise, constatamos que as divisões ordenadoras da Ciência não são aplicáveis a seu objeto. A limpeza de uma separação entre a teoria pslcopatológica e a metapsicologia psicanalítica não existe. Não se pode dizer também de uma teoria que se "aplica" à prática clínica ou de uma "técnica de pesquisa" que num segundo momento se preste à construção da teoria. Quem dedica-se ao tratamento de pacientes, pesquisa o inconsciente e constroi a teoria. Os três polos nutrem-se recíproca e continuadamente. A interrupção desse fluxo resulta em teorização empobrecida, clínica estereotipada e pesquisa estéril. Além disso, o objeto a que se dedica a Psicanálise não está lá, lá fora. O Inconsciente de que se ocupa o Investigador psicanalista, sendo também ele mesmo, não é propriamente objeto de uma "descoberta". Nem o tempo, nem o espaço medem-se aí da mesma forma. A distância inexiste e o tempo não obedece ao relógio. O tratamento de pacientes é também um trato de si mesmo, como é reconhecido na Psicanálise, na sustentação da tensão entre transferência e contra-transferência.

Retomei acima alguns dos importantes pares de polos opostos, cuja sustentanção resulta nas produções mais ricas da teorização psicanalítica. As dificuldades dessa sustentação são as mesmas que se interpõem no processo de um tratamento psicanalítico: a resistência que mantém a cisão inconsciente/consciente. Assim, um impasse teórico difícil de superar indica a força da resistência no teorizador. A construção da teoria psicanalítica é também, tanto quanto qualquer outra produção psíquica, afetada pelo recalcamento.

O trabalho desenvolvido desde há algum tempo por Paulo César Ribeiro (Ribeiro, P.C., 1993) atesta o efeito do recalcamento no pensamento do próprio pai da Psicanálise. Esse autor documenta momentos de "surdez" na escuta desenvolvida por Freud em alguns dos casos clínicos que a sua análise tornou clássicos. Ele demonstra de forma precisa o que se dizia acima: o progresso na construção do conhecimento em Psicanálise não é linear, pois os obstáculos impostos pelo recalcamento devem ser superados a cada passo. A construção teórica é, também ela, sofredora dos limites impostos pelo trabalho do inconsciente. É nesse cenário que se esclarece a diferença entre teoria psicopatológica psiquiátrica e teoria psicopatológica psicanalítica. Indica-se aí também que os momentos de psiquiatrlzação que invadem o pensamento psicanalítico são fruto de motivações mais complexas e não somente da disputa pelo mercado de clientes.

 

Referências bibliográficas

Bercherie, P. Os Fundamentos da Clínica: história e estrutura do saber psiquiátrico. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1989.        [ Links ]

Freud, S.,(1897). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol I. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976.        [ Links ]

Freud, S.; (1900). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol IV e V.Rio        [ Links ]

Freud, S.,(1915). Conferências Introdutórias sôbre Psicanálise. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol XV Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976.        [ Links ]

Ribeiro, P.C.. "O edipe et Castration selon le 'petit Hans'", in: Psychanalyse a l'Université, Tome 18, no.70, avril 1993.        [ Links ]