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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.18 n.1 Brasília  1998

 

Sobre a ética das práticas psi: felicidade e cidadania

 

 

Eduardo Ponte Brandão

Psicanalista com formação em Psicologia pela UFRJ, graduação, e PUC/RJ, mestrado. Professor nas Universidades Cândido Mendes e Estácio da Sá

Endereço para correspondência

 

 

Novas Práticas na relação entre psicologia e sofrimento mental conduzem a novas políticas diante do sofrimento mental e dos direitos humanos.

A falência de valores modernos é a causa do interesse atual pela ética. A um só tempo, fracassa também a ética naturalista, pois a busca de fundamentos morais na biologia é questionada a partir da tecnologia. Esta obriga que se façam novos juízos, não devendo ser tomados como universais. Para tal, é importante abdicar da suposta unidade ética, objetivando a interdisciplinaridade através da qual diferentes dispositivos se suplementam por convergência ética. As práticas psi são divididas em duas medidas éticas: uma, herdeira do naturalismo, outra, visando à singularidade da experiência. Ambas determinam o modo de responder às demandas de felicidade, possuindo diferentes concepções de cura. Mas, através da segunda ética, propõe-se uma nova cidadania, passando por questões sobre o homossexualismo, a loucura e a felicidade.

É conhecida a máxima de que os problemas filosóficos não são superados, mas esquecidos. Embora não se restrinja somente ao domínio da filosofia, o problema da ética, longe de ser esquecido, é o que há de mais atual neste momento do homem em fin-de-siècle. Tal fato leva-nos a indagar: por que esse tema, discutido desde a Grécia Antiga, promove atualmente inúmeros debates, torna-se assunto de palestras e conferências, chama a atenção de editores para publicação de artigos, sendo por fim algo que está na ordem-do-dia?

A falência de valores da modernidade é uma explicação possível para tamanho interesse. Atualmente respiramos numa atmosfera, denominada de pós-modernismo, em que se questiona a Razão, bastião da modernidade, enquanto fundamento ético. Na modernidade, privilegia-se a racionalidade, o desenvolvimento sem percalços da civilização, as verdades absolutas e a "padronização dos conhecimentos e da produção económica como sinais da universalidade" (Chaui, 1992:346). No pós-modernismo, é realçada "a heterogeneidade e a diferença como forças liberadoras da cultura", "o pluralismo contra o fetichismo da totalidade", "a fragmentação" e "a indeterminação, a descontinuidade e a alteridade" (Chaui, 1992: 346). Com efeito, a ética iluminista da Razão, vista na modernidade como libertadora do homem, é revelada em sua face opressora no pós-modernismo, fazendo a ressalva de que, segundo Chaui (1992), este é apenas um prolongamento da primeira. A crise de valores tem início na própria modernidade.

Para ilustrar as consequências desta crise, através da qual estamos convencidos de que os valores modernos não são os melhores para impedir segregações devastadoras, convém citar Rinaldi (1996), que, num outro contexto, na articulação entre ética psicanalítica e antropologia, aponta para os paradoxos da democracia liberal burguesa. Sabemos que esta cultiva o ideário iluminista, que, privilegiando a Razão como atributo universal do homem moderno, celebra a liberdade, igualdade e fraternidade:

"Quando se falou em liberdade, o que se viu foi servidão, ainda que de uma forma diversa da servidão antiga e medieval; quando se falou em igualdade, o que se viu foi o aumento das disparidades em escala mundial nunca antes experimentada; quando se falou em fraternidade, o que se viu foi o aumento da rivalidade." (Rinaldi, 1996:128)

Seguindo o fio das argumentações de Rinaldi, poder-se-ia dizer: quando se fala em Bem Supremo, pressupõe-se um ideal do amor genital que exclui, como infantilismo ou bestialidade, todas as tendências não-adequadas à sexualidade "normal"; quando se fala em Lei moral pura, o mal apresenta-se na história da humanidade como uma banalidade sem precedentes; quando se fala em amar ao próximo, o homem afasta-se com horror do mal que está em si como no outro, apesar de não conseguir evitar que as formas mais sutis de agressividade permeiem as relações humanas.

Todos os parâmetros éticos acima têm em comum o pressuposto de que, enquanto valores universais e totalizadores, são capazes de ordenar as ações humanas. A falência deste mito moderno gera o sentimento atual de crise ética, em que metade da população terrestre busca valores que pendem ora para o lado de novas utopias ora para o resgate de certezas perdidas. Tal crise deve manter-se como tema de discussão ainda por um bom tempo, pois atravessa todos os níveis sócio-econômico-político-culturais do momento em que o homem, celularizado, internetizado, globalizado, permanece por sua vez infeliz, como Freud (1930/1990) diria, no papel de Deus de prótese.

Poder-se-ia supor mais uma outra causa para o sentimento atual de crise: o solapamento da ética naturalista.

 

1- ÉTICA NATURALISTA E TECNOLOGIA

A ética naturalista é compreendida, segundo a definição de Costa (1992) num estudo sobre Gide, como a "que busca na natureza os fundamentos da vida moral" (Costa, 1992: 275). Os fundamentos independem das crenças particulares e contingentes, encontrando-se nos imperativos a-históricos da biologia, ou genericamente, na natureza, de modo que as obrigações morais se tornam válidas para todo e qualquer indivíduo. Em oposição a esta perspectiva, Costa lança mão da ética historicista, que pressupõe, como resultado de nossas crenças, todo e qualquer juízo. Ao invés de recorrer a fundamentos universais e a-históricos, a ética historicista reafirma a "pluralidade da condição humana" (Costa, 1992:276).

Convém ressaltar que, a partir destas diferentes perspectivas, Costa demonstra como Gide, ao mesmo tempo que aponta as circunstâncias históricas que fabricam a idéia de "natureza heterossexual" e de "instinto de reprodução", cai no engano de fazer do homoerotismo uma obrigação ancorada na ética naturalista, na medida em que considera a pederastia como a forma mais adequada de sexualidade. Desse modo, Cide permanece atado às noções de desvio e norma sexual, submetendo-se inversamente à ideologia moral que tanto o discrimina.

O que interessa apontar é o fato de a ética naturalista resistir aos dias de hoje, apesar das evidências que a colocam em xeque. Em tempos de crise, vemos diferentes atitudes sendo tomadas, algumas truculentas, outras mais brandas, mas não menos surpreendentes, como as dos nossos "representantes em Brasília" suspendendo a votação do Projeto de Lei de Parceria Civil Registrada entre pessoas do mesmo sexo, com medo de serem rejeitados pelas suas bases eleitorais. A suspensão de um projeto que garante direitos civis e cidadania para parceiros do mesmo sexo, tirando da clandestinidade as relações homossexuais, obriga-nos a indagar: até quando uma escolha sexual e amorosa vai continuar sendo vista como aberração, definindo homens como uma espécie à parte, com um perfil psicológico e moral específico, de modo que sejam destituídos dos direitos que pertencem somente à espécie dos heterossexuais?

Sem haver uma resposta para a pergunta acima, vejamos ao menos algumas evidências que abalam os alicerces da ética naturalista. Paradoxalmente, o questionamento da fundamentação moral calcada em parâmetros biológicos tem como origem a própria tecnologia.

É o que se nota a partir do avanço de novas técnicas de fertilização, através das quais são recriadas as frágeis relações entre filiação e reprodução. Por exemplo: conhecemos o caso de inúmeras famílias que pedem a retirada de sêmen dos parentes falecidos com a intenção de fertilizar as respectivas viúvas. Ou, particularmente, o caso da menina Elisabetta cuja mãe biológica morre num acidente de carro, tendo entretanto congelado seus óvulos, poucos meses antes, por não conseguir ter filhos. Após sua morte, o viúvo pede à cunhada que aceite abrigar no útero um dos óvulos congelados da irmã, fecundado por ele, nascendo, desta inseminação artificial, Elisabetta. Por fim, sabemos também o rumor de que o príncipe herdeiro do Japão, Naruhito, consentiu que sua mulher, a princesa Masako, tenha sido inseminada artificialmente com o sêmen do pai dele, o imperador Akihito, a fim de garantir uma dinastia de 2700 anos.

Todos estes exemplos servem para mostrar que, em nenhum dos casos, se trata de "incesto tecnológico", desde que as lentes da ética naturalista não sejam utilizadas. Ao invés de considerá-los moralmente condenáveis, podemos julgar que a filiação não é simplesmente biológica, dissociando a função paterna ou materna da reprodução.

Fazer novos juízos sobre a questão da filiação é um dos inúmeros desafios éticos impostos pela tecnologia.

Novos juízos são necessários quando se oferecem recursos para administrar a morte de forma indolor e discreta. Tal fato gera discussões sobre a eutanásia que podem ser resumidas na seguinte questão: podemos matar alguém em nome de nosso ideal de Homem, ferido em sua imagem de felicidade e saúde por moribundos que agonizam nas U.T.I.s?

Seguindo esse raciocínio, existem questões semelhantes sendo delineadas na discussão sobre a experiência com embriões, onde há tentativas patéticas de definir o que é a vida humana a partir de determinada fase do desenvolvimento biológico. Serve como exemplo o fato de uma comissão do governo britânico, em 1982, ter arbitrado que é proibido manipular o embrião depois dos quatorze dias de vida biológica. É inevitável fazer a primeira pergunta que vem à nossa cabeça: que autoridade é essa capaz de julgar que, até os quatorze dias, não se trata de vida humana?

Finalmente, novos juízos tornam-se urgentes quando também se fala em manipulação genética para melhorar grupos humanos, abortos consentidos através de diagnósticos pré-natais, clonificação de seres vivos, entre outros avanços tecnológicos.

Face a todos os exemplos acima, pede-se licença para imaginar um interlocutor que decide perguntar: "Qua/ é o interesse para os profissionais psi, maneira genérica de nomear psicólogos, psicanalistas, psiquiatras e outros que atuam no campo da saúde mental, discutir tais questões éticas? Não seriam estas objeto de interesse somente para filósofos e legisladores ?"

Para tais perguntas, a resposta não pode ser outra: além de provocar profundas mudanças sociais, a tecnologia impõe questões ligadas às idéias que temos sobre o homem, a vida e a morte, a felicidade, a sexualidade, as leis, de tal modo que não podemos ficar simplesmente de braços cruzados supondo que elas habitam numa estratosfera dez quilómetros acima de nossas cabeças. Colocadas em xeque-mate, estas idéias afetam-nos diretamente, assim como afetam os que chegam aos nossos consultórios, ambulatórios e hospitais.

Visto que estamos comprometidos até ao pescoço com tais questões, veremos como a ética naturalista, que, como vimos, é incapaz de resolvê-las, repercute no campo das práticas psi. Não obstante, convém abordar antes a suposta unidade da ética que determinados campos do saber impõem ao pensamento.

 

2. O IMPASSE DA UNIDADE

Partamos do princípio de que não existe somente uma ética, mas várias, que podem até caber num mesmo campo do saber. A psicanálise pode ter várias éticas, assim como a. psicologia, a psiquiatria, o neoliberalismo, o "esquerdismo", a "vanguarda", havendo em cada um desses campos subdivisões que definem a si e aos outros através de seus respectivos parâmetros éticos.

Para restringir a conversa ao que estamos mais familiarizados, sabemos bem que Lacan se esforça em distinguir ética, restrita à práxis psicanalítica, e moralidade.

Relacionando o domínio da ética à verdade particular ancorada no desejo, o "Wunsch imperioso" (Lacan, 1991: 35), Lacan inicia uma interlocução original com a filosofia. Nesta perspectiva, proceder de acordo com o Bem Supremo, tal como Aristóteles propõe em Ética a Nicômaco, é moralidade, referindo-se a um ideal de comportamento que diz o "que devemos fazer para agir de uma maneira reta, correta, dada nossa condição de homens" (Lacan, 1991:30). Ou, senão, agir por respeito à Lei moral pura, como Kant propõe, independentemente de qualquer particularidade, entre outras contingências empíricas, é tampouco agir eticamente. Enfim, orientar-se de acordo com a lógica do "serviço de bens", bens privados, de família, da Cidade, da profissão, é também moralidade, pois o individuo, ao tentar encontrar ali pequenas realizações pessoais, rivaliza de tal maneira com os outros que levanta "uma muralha poderosa na via do desejo" (Lacan, 1991: 76).

Levantando tal muralha, o sujeito deixa de ter acesso à unica condição de agir eticamente: o seu desejo. Existe somente ética quando se age em conformidade ao desejo. Através deste, o sujeito faz um juízo sobre a ação, responsabilizando-se por algo que a habita, mas que é impossível de satisfazer. Revelando-se na experiência psicanalítica como uma verdade particular, o desejo é aceito sem culpa pelo sujeito. Fora isso, tudo que resta é disciplina moral.

A distinção proposta por Lacan tem uma importância para o contexto de sua obra, conhecida pelo retorno a Freud, cuja intenção é mostrar, entre outras coisas, a sua ruptura em relação ao que vinha antes sendo reunido sob o nome de Psicanálise. Sendo um crítico veemente da psicologia do ego norte-americana, Lacan lança mão de sua ética para definir a experiência analítica, onde o desejo do analista está orientado a responder à demanda "profundamente inconsciente" (Lacan, 1991:87) que lhe é endereçada.

Por sua vez, insistir até hoje na distinção lacaniana não faz mais do que impedir que o debate prossiga. Se ela constitui o juízo que o analista faz, ao se responsabilizar pelo desejo levado à "condição absoluta" (Lacan, 1991:353), por um lado, por um outro, ela supõe que não existe ética fora deste domínio. Quanto mais os lacanianos tentam provar que a chamada psicanálise "em extensão" é possível, mais nos convencemos de que ela faz presumir que não existe ética na Cidade, na família, na profissão. A menos, é claro, que não se abra mão do desejo.

Acreditar que é somente ético o juízo que se ancora no desejo, é cair na esparrela de que os outros campos do saber são dominados pela coerção moral, ou, na melhor das hipóteses, aplicações impuras de sua "intensão". Desse modo, uma práxis interdisciplinar não seria mais do que uma formação hierárquica, um castelo formado por paredes de gesso e torres de cristal.

Para ficar num só exemplo: não seria ético o esforço de Rotelli (1990) em propor a desinstitucionalização em oposição à razão médica que domina a psiquiatria? Ora, sabemos que esta adota, antes da reforma italiana, a lógica causal entre o problema - doença - e a solução -cura. O que Rotelli diz é que o louco desconfirma esse modelo, de tal maneira que o manicômio serve para ocultar todas as incoerências relativas aos padrões de normalidade. Assim, propõe que se enfoque não mais a cura calcada na Razão, mas a multiplicidade de formas de saúde, renunciando à idéia de normalidade como bem universal.

Tal como Lacan, Rotelli não visa a educar os sujeitos de acordo com um bem pré-estabelecido, abrindo a possibilidade para que cada um descubra-o por conta própria. Não obstante, por não caber nesta perspectiva nenhuma referência estrita ao desejo, podemos desqualificá-la como não-ética?

Não seria mais interessante supor que existem diferentes dispositivos, mas que possuem certa convergência ética, mantendo um espaço fecundo de interdisciplinaridade?

Longe de sugerir o mero somatório de diversas disciplinas, suponhamos que cada uma cria o seu objeto, havendo, entretanto, intersecções e confrontos que produzem transformações sociais e criação de novos paradigmas. Para tanto, convém repetir que é necessário haver alguma convergência ética, não sendo outra coisa senão o diapasão deste trabalho.

Para não nos determos mais sobre o que é ético e não ético, que, como vimos, emperra o debate, falemos de várias éticas que dominam o cenário das práticas psi. Neste momento, concordamos com Katz que rechaça a unidade da Ética (...) como "instrumento de pensar", vista pela tradição ocidental como o eixo central "onde as diferenças se produziriam apenas por referência a seu centro articulatório" (Katz, 1984:15).

Nem por isso aderimos a um relativismo em que toda e qualquer psicoterapia, com sua visão ética, se toma válida, bastando que o fim seja atingido independentemente dos meios. Assim, vale tudo para tornar feliz a pessoa que, com toda a sua carga de sofrimento, busca o psi: terapia quântica, exercícios tibetanos, hipnose, regressão, massagem, palavras amigas, mapa astral, reza e bênção. Os efeitos nefastos desse voluntarismo acrítico são bem conhecidos, pois são oferecidos por muitos que, para agravar a situação, se intitulam psicólogos, psiquiatras e psicanalistas.

Façamos uma distinção que nos oriente minimamente, servindo para que cada um se posicione de acordo com suas convicções éticas. Situada no contexto sócio-histórico, sabemos que tal distinção pode ser mudada mais adiante. Por ora, ela ajuda a mostrar que o lado em que nos posicionamos influencia a escuta e a maneira de lidar com demandas que são, em última instância, demandas de felicidade.

 

3-DUAS ÉTICAS, DUAS MEDIDAS

Façamos a divisão do bolo psi em duas éticas divergentes, sabendo que existem áreas que se encaixam mais ou menos nesta distinção, além das que possivelmente ficam à margem.

A primeira pressupõe fundamentos a-históricos e universais, características da ética naturalista, fazendo a ressalva de que não se resumem aos parâmetros da biologia, mas correspondem também a tudo que prescinde das crenças particulares ou sócio-culturais. Assim, cabem neste pedaço, como diz Costa sobre tal perspectiva, "os códigos genéticos; as leis da economia; os invariantes psíquicos; as estruturas de parentesco e da linguagem (...)" (Costa, 1992: 285), entre outros fundamentos.

Nesta concepção ética, existe uma promessa de felicidade revestida das mais variadas formas, desde a normalidade ou o equilíbrio previamente estabelecidos até o sono tranquilo e sereno dos deuses. De acordo com estes ideais, são feitas divisões de patologias que podem se multifacetar ad infinitum, onde se oferecem soluções que incidem somente sobre o estado mórbido aquém desse ideal.

Expliquemo-nos: o ideal de saúde visto como plena capacitação racional e equilíbrio orgânico faz com que qualquer manifestação que não se adeque ao mesmo seja taxada como desvio, doença ou tara. Assim, são produzidos diferentes quadros nosológicos com o objetivo de identificar e controlar as manifestações que insistem escapar do ideal pré-estabelecido. Por exemplo: para não falar da síndrome do pânico, "descoberta" nesses últimos tempos, vemos promessas de todo tipo para solucionar stress, insônia, ansiedade, fadiga, gagueira, tiques nervosos e, pasmem, o mau-humor.

Este último recorte nosográfico preocupa-nos particularmente: identificado pela Organização Mundial de Saúde, divulgado na mídia com a estatística alarmante de que 5,3 milhões de brasileiros estão "contaminados", o mau-humor, codinome distimia, é mais uma daquelas doenças em que a pessoa não sabe que está doente, mas é diagnosticada graças ao "aprimoramento" da psiquiatria médica. Atribuindo a causa a uma disfunção cerebral e genética, os teóricos do mau-humor recomendam a clássica dobradinha remédio-terapia adaptativa a todo e qualquer distímico. O que acontece é que, em nome de um equilíbrio universal do humor, eles supõem a existência de uma natureza fora do contexto sócio-cultural. A idéia de que o mau-humor cai de pára-quedas na cabeça da pessoa reforça tão somente a apatia que esta deve manter ao invés de recriar a sua vida íntima e suas relações familiares, institucionais e sócio-políticas.

Esta visão estritamente médica não se limita aos resultados pretensamente "naturais", pois estabelece um sistema de crenças onde o valor científico é utilizado até mesmo para fins publicitários. Assim, vemos inúmeras propagandas de remédios fabricados com tecnologia de ponta, onde aparecem pessoas lindas, loiras, radiantes, acordando em manhãs maravilhosas, quando a maioria da população assistida nos hospitais é pobre, mestiça e sem dentes.

Numa realidade social marcada pelo desamparo, a assistência psiquiátrica raramente leva em conta a experiência subjetiva de seus pacientes. A consequência desta perspectiva, situada na ética naturalista, é supor que existe saúde independente das transformações sociais.

Nesse compasso, a ética naturalista impõe uma determinada forma de atender às demandas. De um lado, sabemos que, ao buscar o profissional psi, as pessoas costumam dar nomes ao mal que as afligem, chamando-o de síndrome do pânico, doença dos nervos ou complexo edípico mal-resolvido. Por sua vez, o psi do time naturalista encaixa a demanda manifesta ou inconsciente do paciente num quadro nosológico, abolindo qualquer experiência nova que corrompa tal enquadramento, propondo por consequência uma solução previamente respaldada num ideal de felicidade. Quando não ocorre de considerar o paciente não-tratável ou não-analisável, como acontece aos psicóticos.

Em suma, o ético naturalista visa a encontrar códigos universais. Caricaturando, poder-se-ia dizer que ele senta no topo do conhecimento, sentindo-se pouco disposto a rever seus conceitos.

Em oposição à ética naturalista, propomos uma outra que não pressupõe fundamentos a-históricos e universais, não havendo nenhum Bem prévio à singularidade da experiência subjetiva. Enraizada nesta, e a partir do contexto sócio-histórico, esta outra-ética não se encerra na intimidade do consultório, onde se poderia presumir que a pessoa adquire somente jogo de cintura para lidar com os ideais sociais.

Não existe necessariamente uma disciplina que se adeqüe melhor a esta perspectiva, que depende mais da crença, concepção de mundo, ou, se alguns assim preferem, do desejo do que da filiação teórica. Importa pouco se é lacaniano, kleiniano, sistêmico, embora, por exemplo, o organicista convicto talvez tenha dificuldades em se situar neste lado.

É óbvio que cada campo do saber tem o seu próprio objeto e sua concepção de causalidade, mas adotar tal visão ética é o que permite psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, terapeutas ocupacionais, nutricionistas, entre vários outros, sentarem-se juntos para discutir um propósito comum: o sofrimento alheio. São concepções diferentes até mesmo para as formas de evitar o sofrimento; mas, ao invés do imobilismo que se impõe através da hegemonia de determinada disciplina, acreditamos em mudanças a partir da suplementação de uma disciplina por outra. Consequentemente, cria-se um espaço de tessitura entre vários saberes que se cruzam e criam novas verdades: é o que se chama interdisciplinaridade.

Seguindo esse raciocínio, a singularidade da qual falamos acima resulta do que se reinventa a cada enunciado, a cada dispositivo, a cada mudança, possibilitando aproximar o sujeito de uma felicidade a ser construída, e não dos nossos ideais. É por isso que, nesta ética, não se promete a felicidade previamente à experiência, como se fosse possível escolher o que é originalmente bom e mau para todos.

Por fim, ninguém melhor do que Freud para lembrar que "não existe regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo" (Freud, 1930/1990:102-3).

 

4-A CURA

Poder-se-ia objetar tudo que foi dito até agora com o argumento de que seria ingenuidade nossa supor que a ética naturalista não cura, e que este dom seria somente privilégio da nossa. É verdade que as duas curam, sendo importante ver o que se entende por isso.

Vimos acima que é comum as pessoas procurarem os psi com uma demanda pré-estabelecida, e normalmente o fazem para quem oferece a solução do mal que as incomoda. Assim, quem sofre de stress procura o especialista que cura o stress através de regressão às vidas passadas. Não há mal nenhum até agora se as pessoas saem curadas quando descobrem um trauma no Neolítico (desde que, por questões que não convém agora discutir, o especialista não se intitule psicanalista ou psicólogo). Existe remissão de sintomas até quando se entra num credo religioso, nem por isso devemos vestir a batina.

É possível até que o especialista acima se junte a um organicista que ataca o stress através de neurolépticos, pouco lhe interessando o que o paciente, ou seu próprio colega, tem a dizer: cada um cuida de sua parte, eliminando o mal que supostamente preexiste a ambos os saberes.

Convém indagar: existe neste caso interdisciplinaridade? A resposta: não. Existe sim a ideia de natureza que pode ser desvendada pela somação de saberes parcializados. Se isso cura, o paciente paga e fica satisfeito com a vida por não ter mais stress, não vejo por que reclamar. Tal perspectiva, chamada também por Costa (1996) de ética da tutela, num contexto em que discute as éticas da psiquiatria, não é má em si. Ao contrário, é necessário muitas vezes que alguém "diga que conhece mais coisas sobre meu corpo do que eu, e eu consinta legitimar essa autoridade na medida em que ela está de acordo com certos pressupostos de respeito à conduta humana" (Costa, 1996:33)

Por sua vez, se o mal-estar persiste, as consultas aos mesmos especialistas viram uma constante na vida do paciente, e os especialistas não questionam suas concepções, limitando-se a resumir o discurso do paciente ao problema com o stress, podemos dizer que algo não vai bem. O grande problema é quando esta ética é levada ao extremo, de tal maneira que o mal, objeto de intervenção, define o sujeito, passando a ser visto como objeto.

Desse modo, vimos por exemplo que o mau-humor e o homossexualismo são escolhidos como males a serem eliminados, tidos através de um sistema de crenças como fontes de sofrimento, pressupondo que os fundamentos para explicá-los residem na natureza. O homossexual mau-humorado é privado de sua razão e de sua vontade, pois a causa de seus males independem dele, ao passo que a responsabilidade é do outro que detém o saber sobre o mesmo.

Vejamos que esta ética, levada ao extremo, justifica a existência do asilo psiquiátrico. Depósito lúgubre de pessoas excluídas da convivência humana, o asilo é a celebração máxima da ética naturalista, através da qual o despossuído de razão e vontade é também despossuído de liberdade, de posses, de escolhas e sobretudo de cidadania. A realidade intra-muros, que mantém ainda bases sólidas no cenário da assistência psiquiátrica, é nua e crua: são corpos perambulando sem nome, sem história, sem verdade, meros cabides de diagnósticos negociando guimbas de cigarro e esperando a hora de abrir a boca para ingerir remédios.

Indaguemos: qual ética gera a certeza dos que acham esta situação um "mal necessário", afirmando que todo e qualquer "doente mental" deve ser tratado fora do convívio sócio-familiar até que esteja recuperado para enfrentar os dissabores da vida?

É a ética naturalista. Calcada num ideal de razão como Bem a-histórico e universal, ela segrega muito mais do que afirma a alteridade revelada pelo louco. A ética naturalista cristaliza uma identidade do "doente mental", negando que a sua existência adquire outras feições a partir de diferentes encontros e espaços de sociabilidade.

Para tanto, convém fazer a seguinte pergunta: é possível tratar o louco, privando-o de sua cidadania?

 

5-CIDADANIA E ALTERIDADE

Tal questão não deixa de estar marcada por um paradoxo, como Birman (1992) demonstra, ao afirmar que restituir a cidadania ao louco é uma ilusão constitutiva da psiquiatria, uma vez que vai de encontro às suas origens.

A psiquiatria nasce historicamente a partir do lugar simbólico de enfermidade mental que o louco adquire na modernidade, em plena Revolução Francesa. Liberdade, igualdade e fraternidade, como vimos inicialmente, é o lema do ideário iluminista que proclama um paradigma universal de racionalidade. Com efeito, constitui-se um modelo de assistência para os loucos, uma vez que, despossuídos de razão e vontade, são considerados incapazes de preservar os seus direitos sociais e sem discernimento para usufruir da liberdade, não sendo iguais aos demais cidadãos. Sob proteção do Estado e da nova ordem médica, tributários da ética naturalista, retiram-se os direitos sociais do louco até que a sua razão seja restabelecida.

O paradoxo apontado acima é que "foi reconhecido ao louco o estatuto social de enfermo, com direito à assistência e ao tratamento, sob a proteção do Estado", embora por um outro lado, "foi com base no mesmo discurso da enfermidade mental que se autorizou também a exclusão social dos doentes mentais e a destituição correlata de seus demais direitos sociais, isto é, a sua condição de cidadania plena" (Birman, 1992: 73).

Nesse contexto, a psiquiatria surge como modalidade da ciência médica, organizando-se por estratégias de tratamento e prevenção moral. A sua intenção é corrigir a natureza desmesurada do louco, exigindo que ela se inscreva como "produção racional da felicidade humana na ordem social" (Birman, 1992: 81). Tal objetivo está inserido no projeto iluminista de promover a saúde da população à luz da ciência, instituindo a cura como ideal de felicidade.

Conclui-se que, desde a origem da psiquiatria, esta se debate com o objetivo de restituir o louco ao universo do contrato social e de exercício da cidadania. Transformá-lo em cidadão implica muitas vezes em controlar os seus excessos, visando a transformá-lo por consequência num sujeito da razão e da vontade. Seguindo este raciocínio, a psiquiatria não conseguiu até hoje produzir um outro lugar social para a loucura, na medida em que a experiência delirante é vista como desvio de razão e ausência de sentido, sendo o louco incapaz de enunciar a verdade.

Retornando à pergunta sobre a possibilidade de tratar o louco sem cidadania, convém responder que depende da visão ética.

A ética naturalista promove um tratamento manicomial que, como vimos, visa a recuperar a "falta natural e social" do louco em relação ao domínio da razão e da vontade, permitindo secundariamente o exercício pleno da cidadania. Apesar de estar enraizada no saber psiquiátrico, esta ética domina corações e mentes que não pertencem somente aos psiquiatras.

Em contrapartida, é possível sob a ótica de outra-ética propor a construção de uma nova cidadania. Na medida em que a cidadania é desatrelada do modelo de igualdade entre direitos e deveres, centrado no sujeito da razão e da vontade, percebe-se que ela é uma forma de organização entre diferentes possibilidades de subjetivação. Deste modo, o campo de alteridade revelado pelo louco, cuja múltiplas formas de existência não se limitam à categoria nosográfica de doença mental, pode ser acolhido por um novo conceito de cidadão. A invenção de uma nova cidadania não é somente para o louco, senão poder-se-ia em seguida pensar numa cidadania específica para negros, homossexuais, mulheres, pobres, tal como alguns caem no engodo de sugerir um tipo de tratamento psi para cada "minoria". O problema desta perspectiva é que está ligada a uma única experiência subjetiva possível, num modelo de universalidade através do qual o instituído destas divisões sociais são tomadas como "naturais". Seguindo esse pensamento, cada vez mais surgem especialistas para 3ª idade, protéticos, mau-humorados...

A construção de uma nova cidadania pretende acolher pura e simplesmente a alteridade, legitimando-a e inscrevendo-a no campo sócio-econômico-político-cultural deste momento atual do homem.

Esta proposta está no horizonte de uma outra-ética que, apesar não definir stricto sensu a ética da psicanálise, da psiquiatria, da psicologia, seja quais e quantas forem, ao menos define o campo de interdisciplinaridade que reúne o psicanalista, o psiquiatra, o psicólogo, entre outros.

Por fim, através desta perspectiva aprende-se que, com a criação de novos encontros, se criam novos dispositivos, novas singularidades, novas cidadanias, para desembocar em última instância na transformação do sofrimento, motivo pelo qual as pessoas ainda buscam o psi, em novas maneiras de ser feliz. Esta última é a maior evidência de que não existe apenas um caminho para todos.

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência
Eduardo Ponte Brandão
Rua Constante Ramos 168/802 - Copacabana
Rio de Janeiro - RJ - 22051-010