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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.18 n.1 Brasília  1998

 

Psicologia, direitos humanos e sofrimento mental: ação, renovação e libertação

 

 

Alexandre Dittrich

Estudante de Psicologia da Universidade Regional de Blumenau Furb/SC Aluno bolsista do Projeto Memória Viva da Psicologia do Conselho Ferderal

Endereço para correspondência

 

 

O presente ensaio trata das relações entre saber científico e portadores de sofrimento mental. Argumenta que tal sofrimento não é patológico, sendo desnecessária e reprovável a alienação social dos portadores. Sugere novas práticas na relação entre Psicologia e sofrimento mental, concluindo que estas devem surgir do trabalho ostensivo e conjunto dos psicólogos, visando promover, efetivamente, a prática dos Direitos Humanos.

Situação tipicamente humana, quase banal: um estudante esforça-se, "sofre mentalmente" para decidir de que forma iniciar um texto. No momento em que escreve as primeiras linhas, seu sofrimento está mais suavizado, embora um grande esforço ainda o aguarde até que redija a última palavra. Esta é uma característica de sua subjetividade, é a forma pela qual se relaciona com a produção de textos: tem que empregar um enorme esforço para fazer as "honras da casa", mas assim que mergulha numa linha de pensamento, esta flui de forma rápida e prazerosa.

Nosso objetivo, porém, não é discorrer longamente sobre a subjetividade de tal estudante ou de qualquer outra pessoa isoladamente. No momento, queremos apenas constatar como o sofrimento acompanha inexoravelmente cada passo de nossas vidas, manifestando-se das mais variadas formas e nos mais diversos graus de intensidade. E que, além disso, é evidente que o sofrimento jamais pode ocorrer sem que seja, intrinsecamente, sofrimento mental. Por certo, o sofrimento mental pelo qual um estudante passa para dar início a um texto é bem mais brando do que aquele vivido continuadamente pelos desafortunados que, por possuírem formas "socialmente desajustadas" de sofrer, foram premiados com um "tratamento" arJ infinitum de suas "doenças mentais", através do isolamento institucional. Nesse ponto, a reflexão que deve ocorrer à maioria das pessoas é: "Ora, essas são duas formas de sofrimento totalmente diferentes!" Poderíamos, então, perguntar em que aspecto esses dois "tipos" de sofrimento diferem entre si; ou, ainda mais precisamente, poderíamos questionar: existe alguma diferença ontológica que justifique a divisão e a classificação (inclusive nosográfica) dessas e de outras formas de sofrimento? A resposta exige uma discussão mais ampla, que procuraremos levar a cabo ao longo deste trabalho.

 

SOFRIMENTO MENTAL: HISTÓRIA, SOCIEDADE E SUBJETIVIDADE

Independentemente do modo como tal máxima seja enunciada, é consensual, em Psicologia, o fato de que somos obrigados, durante toda a nossa vida, a responder às exigências que o ambiente nos impõe (entendamos a palavra "ambiente" não num sentido estritamente mecanicista, mas como todo o conjunto de representações e simbologias histórica e socialmente construídas que compõem a significação dos estímulos ambientais). Essa relação, como sublinha Sartre, não pode ser compreendida se referimo-nos apenas a um estímulo e uma resposta, como enuncia o comportamentalismo; devemos, também, considerar a finalidade à qual se direciona tal resposta, visto que a temporalidade da consciência remete-nos tanto ao passado como ao futuro (Moutinho, 1995, p. 71). Tal finalidade será escolhida pela mediação de uma qualidade humana definida, em diferentes autores e concepções, com designações diversas: "caixa-preta", ego, personalidade, história de vida ou subjetividade (preferiremos esta última designação), através da influência de múltiplas variáveis (Sartre, 1946/1987, p. 15). Em cada pequeno ato, portanto, por banal que possa parecer, exercemos algo que Sartre (1946/1987, p.7) denominou, de modo genérico, como "responsabilidade". Tal conceito sugere que tomar decisões implica sempre escolhermo-nos como seres humanos de modo prático e, simultaneamente, implica também o dever de responder por essas decisões, seja formalmente ou através de uma "instância" de nossa subjetividade a que a Psicanálise denomina "super-ego" (entendamos esse "super-ego" não como algo inconsciente e de difícil acesso, nem como um "compartimento" da mente, mas tão-somente como um conjunto de regras necessárias à vida em sociedade, aprendidas durante nosso processo de socialização, e que se revelam pela própria constituição histórica desse processo).

Necessariamente, tomar decisões causa conflito, uma vez que, de fato, temos que descartar algumas das possibilidades plausíveis em cada situação e decidirmo-nos por apenas uma delas - conforme Sartre (1946/1987, p. 12), temos sempre um campo de "possíveis", dentro do qual efetuam-se nossas escolhas. Posteriormente, podemos chegar à conclusão de que uma determinada decisão foi ou não acertada; podemos tomar uma nova decisão para corrigir aquela que julgamos equivocada; podemos nos negar a decidir, o que já implica, por si só, uma decisão. Vivemos, afinal, a presença compulsória da decisão, e, portanto, da dúvida, da angústia e do sofrimento (Sartre, 1946/1987, p. 7), com todos os seus possíveis desdobramentos psicológicos. Retomaremos a questão das escolhas mais adiante.

Um fato que evidencia que o sofrimento mental é inerente ao ser humano é sua presença e registro (bem como sua patologização) em todas as diversas fases da história da civilização, como registra, por exemplo, Foucault(1984,p. 76-7): Sem dúvida, desde a medicina grega, uma certa parte no domínio da loucura já estava ocupada pelas noções de patologia e as práticas que a ela se relacionam. Sempre houve, no Ocidente, curas médicas da loucura e os hospitais da Idade Média comportavam, na sua maior parte, como o Hôtel-Dieu de Paris, leitos reservados aos loucos (frequentemente leitos fechados, espécies de jaulas para manter os furiosos).

O sofrimento mental não é, de fato, um "produto da sociedade moderna", da tecnologia, do declínio dos valores ou do esfacelamento da família. O que podemos afirmar é que diferentes situações históricas causam diferentes reações de sofrimento; porém, insistimos no fato de que estas sempre se apresentam de forma idiossincrática, obedecendo a especificidade da história vivencial de cada sujeito. Obviamente, diferentes exigências se colocam na vida de diferentes pessoas. Além do mais, uma mesma exigência pode apresentar-se de modos diversos de sujeito para sujeito, conforme estes tenham vivido seus processos de subjetivação. Ora, se aceitarmos estas assertivas, fica automaticamente desautorizada a classificação destes sujeitos em "categorias"; e ainda menos em "categorias de doença". Evidentemente, não teríamos espaço para desenvolver, em todos os seus múltiplos aspectos, a questão "doença fisiológica x doença social". Ademais, essa questão induz, inevitavelmente, à outras de mesma complexidade e ainda mais delicadas: Psiquiatria x Psicologia, mente x corpo, etc. Além disso, parece lícito afirmar, com base em farta literatura (por exemplo, Foucault, 1984; Szasz, 1986; Perrusi, 1995; Berg, 1978; Cooper, 1978; Laing, 1987) que os componentes sociais do sofrimento mental vêm-se tornando evidentes para filósofos, psicólogos e até mesmo psiquiatras. Tendo em vista os assuntos que abordaremos ao longo desse trabalho, achamos necessário desenvolver, a seguir, nossa posição quanto a esses assuntos (mesmo que de forma sucinta), visando uma compreensão completa das considerações posteriores.

 

RACIONALISMO CIENTÍFICO : PARADIGMAS HISTÓRICOS

Parece muito fácil (e até mesmo óbvio), nos dias de hoje, criticar René Descartes. Desgraçadamente, ele foi o escolhido para carregar nos ombros toda a responsabilidade pelas qualidades e (principalmente) pelas vicissitudes da escola racionalista. Sua maldição não é de todo injusta: de fato, Descartes foi suficientemente original para servir como divisor de águas na história da Ciência. É um "réu" legítimo, portanto. Lamentavelmente, Descartes não está mais aqui para defender-se das acusações que lhe pesam. Por essa ótica, é reconfortante saber que a tradição cartesiana está muitíssimo bem representada na Ciência atual (que, afinal, deriva dessa mesma tradição), de onde conclui-se que não faltarão críticas ao que será exposto.

Um dos resultados da filosofia cartesiana é especialmente interessante para o assunto aqui tratado, qual seja, conforme Frayze-Pereira(1985,p.61):

O eu que conhece não pode estar louco, assim como o eu que não pensa não existe. Excluída pelo sujeito que duvida, a loucura é a condição de impossibilidade do pensamento. Ou seja, a partir do racionalismo moderno, sabedoria e loucura se separam. Os perigos que a loucura poderia oferecer para influenciar a relação entre o sujeito e a verdade são afastados.

As origens deste enunciado remontam aos alicerces do pensamento cartesiano. Desse modo, em relação aos assuntos que nos interessam no momento, pode-se dizer que Descartes deu duas principais "contribuições" ao saber humano:

1)Cindiu res cogitans (mente) e res extensae (corpo e mundo);

2)Estabeleceu as bases da Ciência Natural/Analítica atual e seu objeto de estudo (a res extensae).

Analisaremos as consequências de cada um destes paradigmas sobre o estudo da subjetividade humana.

 

MENTE x CORPO: A CIÊNCIA DIVIDE O HOMEM

Poucas pessoas opor-se-iam à afirmação de que, após tantos anos decorridos, a Psicologia ainda se debate com o "fantasma racionalista" cartesiano, talvez hoje mais do que nunca. Isso manifesta-se de forma clara na divisão comumente realizada entre as "esferas" mental e corporal do ser humano.

O senso comum, como Descartes, (embora de modos muito diversos e particulares), também admite uma cisão entre mente e corpo. Porém, não consta que Descartes seja um filósofo ao gosto popular... O que leva, então, a esta divisão? Motivos culturais, sem dúvida, mas também o fato de que a "mente" é designada das mais diversas formas pelo senso comum: alma, espírito, pensamento; em suma: as características psíquicas que fazem com que o homem se considere "diferente" do resto do mundo natural. Esta diferença parece auto-evidente, e é provavel que os seres humanos continuariam intuindo-a, mesmo que a escola racionalista jamais houvesse existido. Porém, o que importa-nos, no momento, é que tal diferenciação é feita em relação ao mundo circunjacente: animais, plantas, pedras, objetos em geral e (importante) o próprio corpo. O corpo é, portanto, visto como uma espécie de "caixa" ou "receptáculo" da alma, do espírito ou da mente.

Desta forma, o corpo não seria uma parte essencial do "eu" ou da "interioridade", mas apenas um instrumento através da qual este se expressa. Pesa a favor deste argumento o fato de que, enquanto pólo subjetivo, a mente é afetada por uma "causalidade" divergente daquela verificada entre as coisas do mundo -pólo objetivo (Bertolino, Francisco, Ehlirch e Castro, 1996, p. 25-6). Palavras, gestos, obras de arte, sorrisos, competições esportivas; todos esses fatores afetam nossa mente e nosso corpo, embora não "encostem" ou não exerçam forças físicas sobre eles. Apenas através dessa observações, podemos concluir que seria ingênuo transferir da Física para a Psicologia os modelos de estudo de seus respectivos fenômenos. Deveríamos, portanto, confirmar os preceitos cartesianos e a intuição do senso comum, dividindo o homem em duas "partes" opostas? Ora, não deveria haver, ainda hoje, qualquer dúvida de que vivemos psicofisicamente! Com isso, queremos significar que não vivemos exclusivamente através do corpo ou através da mente, mas que ambos estão inequivocamente imbricados, participando igualmente e simultaneamente de nossas experiências no mundo. Exemplificando, verificamos que, frequentemente, aquilo que costumamos chamar de "estados internos" expressam-se através de nosso corpo (obviamente, tais "estados internos" - raiva, ansiedade, alegria, etc. - implicam, necessariamente, uma relação intencional em direção ao meio "externo"). Além disso, é o corpo que permite-nos o contato com o mundo, que evidencia que nós estamos entre as coisas, e não acima delas. Portanto, ao mesmo tempo em que estamos indissociavelmente ligados ao mundo, possuímos qualidades que transcendem as leis estritamente naturais, próprias dos demais animais e dos objetos. A mente (entendida aqui como subjetividade em relação intencional com seu meio), seria, portanto, concomitantemente: a) específica em relação ao mundo (enquanto portadora de uma causalidade divergente daquela comumente aplicada aos fenômenos naturais); b) intimamente ligada a ele (enquanto doadora de sentido e significação às vivências fisiológicas relacionadas ao corpo e ao mundo). Desse modo, superamos tanto o subjetivismo radical dos idealistas como o reducionismo descabido dos materialistas, através da constatação, trazida à luz pela fenomenologia, da intencionalidade da consciência (Sartre, 1936/1987, p. 99) A

3.2 CIÊNCIA NATURAL- ANALÍTICA: ESPECIFICIDADE DA MENTE

Ao formalizar a cisão mente x corpo, Descartes definiu o campo de estudo da ciência: a res extensae, ou seja, o mundo das coisas. Admite-se que todos os elementos integrantes deste mundo natural estão sujeitos a uma mesma causalidade, passível de ser determinada matematicamente. O psiquismo, durante séculos, foi negado enquanto campo de estudo científico, justamente por não fazer parte do "mundo das coisas" e por possuir uma causalidade própria (geralmente atribuída a fatores metafísicos). Restrita às especulações filosóficas, a Psicologia foi obrigada, no século XIX, a adotar os paradigmas de uma ciência já estabelecida para adquirir, também ela, seu status científico. Daí, temos a adoção do modelo da Biologia no estudo de processos psíquicos (Giorgi, 1978, p. 22-33). A partir de então, a mente voltou a ter espaço entre as coisas do mundo, mas por um viés reducionista. Ela estaria sujeita, portanto, aos mesmos processos causais do mundo natural. Com isto, a Psicologia iniciou sua jornada científica como um ramo da Fisiologia (também esta, já eivada pela causalidade e pelo determinismo, próprios da Física), reforçando, junto à Psiquiatria, a compreensão do sofrimento mental como um correlato de disfunções fisiológicas (Giorgi, 1978, p. 22-6).

Como sabemos, a biologização do sofrimento mental é uma herança que provém de uma longa cadeia de eventos históricos na Filosofia, na Psicologia e na Psiquiatria. Foge aos nossos objetivos um relato pormenorizado desse processo; o breve resumo aqui apresentado serve, antes, como contextualização histórica. Poderíamos, portanto, encontrar patologias orgânicas subjacentes ao sofrimento mental? Por certo, conhecemos certas patologias adquiridas que afetam o cérebro e o sistema nervoso, provocando distúrbios comportamentais; afinal, estas são partes de nosso corpo, como quaisquer outras, passíveis de sofrer ação patológica. Podemos citar, como exemplos clássicos, a paresia geral e a pelagra, causadas, respectivamente, pelo agente da sífilis (Treponema pallidum) e pela deficiência de ácido nicotínico (SBPC, 1993, p. 61).

Ambas as patologias são facilmente identificáveis e possuem formas de tratamento bastante simples. Por que o mesmo não acontece com as demais "patologias" mentais? No campo da psiquiatria, por exemplo, podemos notar que tais "patologias" são exaustivamente classificadas através das constantes edições dos DSM (sigla em inglês para os Manuais de Diagnóstico e Estatística dos Distúrbios Mentais). Porém, nota-se que duras críticas estão sendo dirigidas (até mesmo pelos próprios psiquiatras) à tendência operacionalista das mais recentes edições do DSM, "principalmente porque se baseia exclusivamente nas manifestações externas dos distúrbios psiquiátricos, ignorando deliberadamente os dinamismos intra-psíquicos, bem como as causas dos distúrbios e os mecanismos fisiopatogênicos dos sinais e dos sintomas" (SBPC, 1993, p.61). Ora, queremos crer que não seria facultado a um oncologista, por exemplo, diagnosticar a presença de um tumor pela aparência ou pelo comportamento de seus pacientes...

3.3 A SOLUÇÃO CONTRADITÓRIA: IDENTIDADE E DISTINÇÃO

Se, como vimos, o racionalismo científico promoveu o divórcio entre mente e corpo, por que está-se atacando, concomitantemente, este paradigma cartesiano e a biologização da mente? Se mente e corpo são uma unidade, não estariam eles sujeitos à mesma causalidade natural? A este problema de difícil solução, Perrusi (1995, p. 210-1) aventou a seguinte resposta:

[...] se a realidade demonstra a unidade entre corpo e mente, isso não quer dizer que possamos utilizar os mesmos métodos e os mesmos conceitos para analisar o domínio psicológico e fisiológico. [...]

A identidade entre a doença orgânica e a mental revela, na verdade, um reducionismo em que a especificidade do psíquico é opacificada.

Ou, conforme Foucault (1984, p. 17-8): "A abstração não pode, então, fazer-se do mesmo modo em psicologia e em fisiologia; e a delimitação de um distúrbio patológico exige na patologia orgânica métodos diversos dos da patologia mental."

Segundo Edgar Morin (1986, p. 72), para que a biologização da mente seja tolerável, impõe-se que "se reconheça a) que a identidade comum à qual se referem espírito e cérebro ainda não foi identificada; b) que a identidade do cérebro e do espírito comporta uma contradição visto tratar-se, evidentemente, da identidade do não-idêntico!"

Portanto, o estudo científico do fenômeno humano não pode prender-se a reducionismos, no intuito de possibilitar uma pretensa unidade epistemológica. Por tal unidade, pagar-se-á o preço de uma compreensão parcial e incompleta do homem. Tal assertiva encontra sustentação em André Bourguignon (apud Morin, 1986, p.72), nas seguinte palavras:

A solução do problema corpo-espírito não pode então deixar de ser contraditória: o corpo (atividade nervosa encefálica) e o espírito (atividade psíquica) são ao mesmo tempo idênticos, equivalentes, e diferentes, distintos. Tal solução impõe que nunca se privilegie um dos termos da contradição a favor do outro, sobretudo quando se trata de investigação científica.

Admitir esta aparente disparidade, portanto, não induz à impotência diante do problema. Trata-se, apenas, de considerar, conjuntamente, a condição de organismo natural do corpo humano e a condição histórica, cultural e social de sua subjetividade, sustentada na atividade deste mesmo corpo em relação intencional com seu ambiente.

 

A VIDA COMO ESCOLHA : HOMEM E MUNDO

Uma história antiga: o ser humano, superando a natureza pelo advento da cultura, desenvolveu uma incrível complexidade em suas relações sociais (e, em consequência, psicológicas). Emociona-se, ama, odeia, conhece, aprende, expressa-se das mais variadas formas sobre seu mundo e é, simultaneamente, afetado por todas esses fenômenos tão humanos que o rodeiam. Está, portanto, em relação intencional com as coisas e com os outros homens. Todas essas atividades pressupõem o engajamento completo do homem no mundo, bem como a prática da escolha e da responsabilidade que tal engajamento acarreta (conforme argumentamos no Cap. 2). Determinadas escolhas podem trazer imenso sofrimento ao homem, seja por suas consequências diretas ou pelos inevitáveis dilemas morais que apresentam. Tais escolhas são decisivas na determinação do sofrimento mental. Elas terão reflexos inevitáveis no relacionamento do indivíduo com sua família, com seus amigos, com seus companheiros de trabalho, com uma sociedade que exige determinados tipos de atitudes que visam, a princípio, facilitar a própria vida social. Não há como escapar dessa troca constante de informações com o mundo circundante. Vivemo-la a cada segundo, e soaria ingénuo ignorar as influências que tal fato exerce sobre cada um de nós. O sofrimento - essa "patologia" - faz-se presente de forma tão constante em nossa existência que, forçosamente, temos que aprender a conviver com ele, dentro de nossas possibilidades. Seria, então, impossível extirpar esse "mal" que afirma sua presença de modo tão constante? Ora, certamente não seria possível "curar" uma pessoa de todos os seus sofrimentos, pelo simples fato de que sofrer é uma característica inegável do humano! Tampouco podemos isolar o sofrimento do convívio humano, assim como um médico isola um quisto de seu paciente. O sofrimento mental não pode jamais ser tratado como uma doença, a não ser que admitamos estar permanentemente doentes (tal atitude nem chega a ser incomum na Psicologia). O que queremos afirmar, portanto, é que o sofrimento mental não deve sua origem a bactérias, viroses, traumatismos ou quaisquer outras disfunções orgânicas (a não ser, é óbvio, nos casos em que tais fatores fisiológicos podem ser claramente identificados, como nos exemplos citados na Seção 3.2).

O sofrimento é uma criação do ser humano em relação com seu mundo, numa interação dialética e auto-evidente; uma realidade que se mostra durante todo o tempo.

O psicólogo e psiquiatra holandês J.H. van den Berg (1978) dedicou integralmente seu livro mais conhecido - "O Paciente Psiquiátrico" - à idéia de que o sofrimento mental, por mais variados que lhe possam ser os fatores, é sempre uma "sociose" e, em última análise, uma expressão de solidão, de isolamento em relação à sociedade: Como psiquiatra, "O paciente está doente; isto significa que o seu mundo está doente... "(Berg, 1978, p. 47). van den Berg (1978, p. 44) reconhece que "a fisiologia não é certamente um fator que se possa ignorar, mas é um fator determinado pela própria vida. A quantidade de paixão que possa existir dentro de nós, não é ditada por uma glândula, mas pelo próprio contexto da vida.".

 

5- SOFRIMENTOS SOCIAIS E ANTISOCIAIS : INSTITUCIONALIZAÇÃO DO SOFRER

Constatar a presença do sofrimento em nossas próprias vidas é assaz simples, assim como podemos percebê-lo, freqüentemente, na vida de outras pessoas. Apesar disso, na maioria das vezes, tal sofrimento não é percebido como patologia; isso somente acontecerá de acordo com certos critérios estabelecidos "cientificamente":

Cabe ao médico descobrir as marcas indubitáveis da verdade. A pessoa perdeu o apetite e o sono, seu olhar está parado, entrega-se a longos momentos de tristeza? E porque sua razão já se perverteu [...] Os poderes de decisão são entregues ao juízo médico: apenas ele nos introduz no mundo da loucura. Apenas ele permite que se distingam o normal do insano, o criminoso do alienado irresponsável. (Foucault, 1995, p. 126-7)

Os critérios etiológicos para o diagnóstico de uma patologia deveriam considerar, segundo sabemos, "uma lesão de natureza anatômica ou algum distúrbio fisiológico" (Frayze-Pereira, 1985,p. 17).

O que ocorre na prática, porém, parece diferente:

Com efeito, os termos segundo os quais se procura dar uma definição da loucura são, explícita ou implicitamente, sempre relacionais. Isto é, designa-se louco o indivíduo cuja maneira de ser é relativa a uma outra maneira de ser. E esta não é uma maneira de ser qualquer, mas a maneira normal de ser. Portanto, será sempre em relação a uma ordem de "normalidade", "racionalidade" ou "saúde" que a loucura é concebida nos quadros da "anormalidade", "irracionalidade" ou "doença". (Frayze-Pereira, 1985, p. 20)

Como vemos, portanto, a "medicina mental, ela própria produto do desenvolvimento civilizatório, instaura a normalidade da conduta como critério de comparação entre individualidades, análise diferencial do caráter, hábitos, inclinações do indivíduo em seu meio familiar, em seu círculo de amizades, em sua vida profissional, em suas tendências políticas e convicções religiosas, etc."(Machado, Loureiro, Luz e Muricy, 1978, p.411)

De acordo com a gravidade do "diagnóstico", o indivíduo pode tanto submeter-se à psicoterapia como à medicação ou à institucionalização, através do internamento em casas psiquiátricas. Tal institucionalização "justifica-se ao nível das causas da doença e ao nível do tratamento." (Machado et al., 1978, p. 430) A casa psiquiátrica tem uma dinâmica interna onde:

Os princípios do isolamento, da organização do espaço terapêutico, da vigilância e da distribuição do tempo regem a totalidade da vida dos alienados, atingem cada minuto de sua existência. [...] Estabelecendo normas de comportamento, intervindo para que estas normas sejam interiorizadas, transformando e criando a docilidade, a obediência, eles funcionam para toda a coletividade que habita o hospício (Machado et al., 7 978, p. 443)

Através da literatura (por exemplo, Foucault, 1995; Pessoti, 1996) temos acesso às sandices cometidas nas casas de alienação durante os últimos séculos. Obviamente, a situação modificou-se sensivelmente até os dias de hoje. A tortura, evidentemente, não mais pertence às práticas abertamente admitidas portais instituições. Porém, permanece ainda a própria alienação, que, por si só, é uma negação de um direito elementar do ser humano: a liberdade. O alienado, que, supostamente, estaria usufruindo do "direito" de ser "tratado", na verdade sofre, de forma involuntária, um corte abrupto de qualquer laço de identificação que possa ter com o mundo "normal". As consequências, obviamente, são desastrosas: "Os indivíduos que já passaram por uma instituição fechada estão "marcados" e "inaptos" a viver socialmente. Ocorre então a sua exclusão, não só social mas também moral[...]" (Caldonazzo, 1988, p.04).

Fechado dentro de um mundo fabricado especialmente para a reprodução da loucura, o alienado perde qualquer possibilidade de estabelecer contatos sociais que possam restituir-lhe a capacidade de viver em uma comunidade que não seja aquela em que já comunidade que não seja aquela em que já se encontra - a instituição. Novas crenças, novos comportamentos e uma "nova personalidade" são impostos ao alienado, o que caracteriza, conforme Szasz (1986, p. 130), "evidentíssimo problema moral, legal e constitucional."

Novamente, à guisa de conclusão do presente capítulo, invocamos Szasz (1986, p. 145), para pedir-lhe a expressão fiel de nosso pensamento: " [...] por ser um mal igual à escravidão, a psiquiatria involuntária deve ser abolida."

 

6- O PAPEL DA PSICOLOGIA : EFETIVAÇÃO DE UMA NOVA PRAXIS

O psicólogo, enquanto estudioso da dinâmica social que leva uma pessoa ao sofrimento mental, não pode abster-se de seu papel fundamental neste campo - qual seja, a efetivação de práticas inovadoras, condizentes com a ontologia de tal sofrimento. Por certo, não seria possível expor, no momento, todas as alternativas viáveis para o auxílio àqueles que sofrem, nem detalhar os diversos passos para a concretização de tais alternativas (até mesmo porque não existem "fórmulas" prontas; esta efetivação deve ser, inequivocamente, fruto de um trabalho conjunto da classe). Procuraremos, a seguir, sugerir algumas práticas exequíveis, visando a superação de modelos arcaicos, ineficazes e coercivos. Tais sugestões não pretendem, certamente, compor um modelo padronizado de uma nova praxis; antes, pretendem demonstrar que existem caminhos para levar a efeito tal desafio:

Desmistificação do sofrimento mental

Enquanto o sofrimento mental for visto como uma patologia, o isolacionismo, a segregação e a institucionalização encontrarão sólida base para a reprodução de suas práticas. O psicólogo deve, por todos os meios disponíveis, demonstrar que o sofrimento é, inexoravelmente, um constituinte da existência humana. Que desminta-o aquele que nunca sofreu!

Trabalho preventivo

As psicoterapias, como um todo, reforçam a imagem de "doente" atribuída àquele que sofre (o psicólogo é visto como um "médico" que atende em um "consultório", ao qual o "paciente" recorre quando acredita portar uma "doença"). Naturalmente, não quer-se pregar o fim das psicoterapias, nem ao menos negar sua importância. Porém, se sabemos que o sofrimento mental tem fundamentos sociais, o psicólogo tem o dever de sair a campo para localizar-lhe as causas. Despojando-se da passividade excessiva, comum à profissão, o psicólogo deve, de todas as formas possíveis, mostrar que possui capacidade de intervenção comunitária, legitimando sua importância para a sociedade: nas organizações, nas escolas, nos sindicatos, nas associações, nas ruas; enfim, nos locais onde dá-se a existência humana - objeto de seu saber profissional.

Importância crucial da socialização

O melhor "remédio" contra o sofrimento mental é, e sempre será, o contato humano. Como sabemos, tal contato vem sendo maciçamente desestimulado em nossa sociedade. Nosso sistema escolar, voltado apenas para a eficiência da mão-de-obra, dissemina a passividade, o individualismo e competição entre os alunos. Valores como a cooperação, a criatividade e o respeito à alteridade são substituídos por um "currículo oculto" deveras eficiente, que, naturalmente, não consta dos programas de ensino ou grades curriculares. O trabalho, nas organizações, é realizado de forma fragmentada, mecânica e impessoal, gerando insatisfação e angústia, além de uma completa ausência de orgulho ou identificação com o produto final. O entretenimento eletrônico estimula o individualismo e o isolamento (além, obviamente, do consumismo), em detrimento do lazer social, da vida compartilhada. Conseguiremos eliminar tais problemas? Infelizmente, seria ingenuidade fazer tal afirmação. Muitos de nós, por certo, sequer concordam que tais práticas se constituam em "problemas"! Porém, poucos de nós poderiam negar o poder da socialização e da vida em comum na prevenção e alívio do sofrimento mental.

Luta contra a institucionalização

O sofrimento mental deve encontrar sua solução no mesmo meio em que foi gerado. A institucionalização, como vimos, impossibilita a relação daquele que sofre com seu mundo social. Seria ingénuo acreditar que, isolando o indivíduo das condições que fazem-no sofrer, ter-se-ia uma "cura". Fugir do problema, por certo, não o eliminará. O papel do psicólogo, em tal situação, é abrir ao sujeito seu leque de possibilidades, visando o fim do sofrimento (certamente, isto será efetivado por meio de diferentes abordagens e técnicas, conforme a linha psicoterápica do psicólogo). Tal tarefa pressupõe a liberdade do indivíduo, para que as técnicas psicoterápicas possam encontrar extensão e confirmação no desenvolvimento de seu cotidiano.

 

7- CONCLUSÃO: PSICOLOGIA, DIREITOS HUMANOS E SOFRIMENTO MENTAL

Inúmeras outras formas de fomentar uma nova praxis na Psicologia do sofrimento mental podem ser aventadas, assim como maneiras diversas de consumar tais práticas. Por certo, não espera-se encontar unanimidade junto aos psicólogos em relação às questões aqui levantadas. Tal fato, longe de servir como desestímulo, deve tornar ainda mais incisiva a luta por melhores condições de vida para o indivíduo que sofre. A pluralidade de idéias não é apenas inevitável, mas desejável. A Psicologia não se faz de "certezas" ou "verdades", mas de dialética, de subjetividade, de humanidade e de trabalho árduo. A seriedade do trabalho do psicólogo só será reconhecida no momento em que a especificidade e a utilidade de seus conhecimentos forem ostensivamente comprovadas, através de sua aplicação efetiva no seio da sociedade, visando a promoção e preservação dos Direitos Humanos. Temos a expressão clara desse pensamento nas palavras de Lídia Candi (1988, p. 07, trad. por): "Cremos que, em termos de conjunto, a comunidade melhora sua Saúde Mental cada vez que, em sua história, vive épocas de liberdade, de dignidade, de criatividade e participação. [...] Falar da Saúde Mental de um conjunto social é referir-se ao grau de vigência de seus Direitos Humanos."

Temos, portanto, a plena convicção de que a Psicologia, enquanto prática social e politicamente engajada (como o são todas as práticas de intervenção comunitária) deve assumir com decisão sua tarefa de garantir, por todas as formas eticamente possíveis, a real consecução dos Direitos Humanos. Os instrumentos para tanto, sem dúvida, já os possuímos. A motivação para tal tarefa, com certeza, estamo-la construindo. O sonho de, efetivamente, consumá-la - nisso acreditamos com paixão - há de tornar-se fato.

 

Referências bibliográficas

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Bettolino, R F. Paulo R. E. Irene F. C. F.de. (1996). A personalidade. Florianópolis: Nuca.        [ Links ]

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