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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.19 no.1 Brasília  1999

 

Trabalho, tempo e subjetividade: impactos da reestruturação produtiva e o papel da psicologia nas organizações1

 

 

Carmem Lígia lochins Grisci

Professora da Escola de Administração/UFRGS. Doutoranda em Psicologia/PUCRS

Endereço para correspondência

 

 

Esta pesquisa, realizada no setor bancário, trata da experiência do tempo que (des)organiza práticas cotidianas dos sujeitos da reestruturação do trabalho. Considera alguns dos impactos desta reestruturação à subjetividade: desemprego, requalificação e saúde do/a trabalhador/a, bem como a necessidade de um novo tipo de trabalhador/a com peculiares modos de experimentar o tempo. Compreender tais modos significa repensar a produção e a aplicabilidade do conhecimento da Psicologia nas organizações.

 

Introdução ou o contexto fazendo o texto

Este trabalho refere-se a uma pesquisa que, em conjunto com outras, nasce de uma demanda social constituída a partir de um grupo de profissionais diretamente envolvidos com a construção de um Censo Bancário: Avaliação de Saúde dos Bancários do RS, concluído em 1997. Tal Censo suscitou a necessidade de lançar algumas possibilidades compreensivas a respeito da realidade em que se inserem trabalhadores prestadores de serviços bancários. A pesquisa que se apresenta procura relacionar três categorias de análise - trabalho, tempo e subjetividade - e, embora em andamento, já permite pensar-se acerca dos impactos da reestruturação produtiva e do papel da Psicologia nas organizações, tal é a riqueza dos dados preliminares encontrados até então.

De um lado, então, esta pesquisa toma a própria categoria trabalho que, segundo alguns autores, reivindica um alargamento de seu conceito devido tanto à inclusão de novos sujeitos em cena, quanto à exclusão de outros. Trabalho que interpela tais sujeitos, permeado por antigas ou novas formas de gestão empresarial, que aumente ou reduza as filas do desemprego etc. Trabalho como um universo de significados, cujas transformações no tempo e na história trazem implicações aos modos de viver e subjetivar.

De outro lado, tempos novos. Tempos a indicarem coexistências, a enaltecerem o aqui e agora. Tempos atravessados por velocidades extraordinárias que desvalorizam passado, presente e futuro e, conseqüentemente, absolutizam e banalizam as trajetórias dos sujeitos. Tempos que, sem dúvida, necessitam de novas compreensões.

Finalmente, a categoria subjetividade, entendida como diferentes expressões de como, enquanto trabalhadores, somos afetados por um mundo que se apresenta em constante mutação. Categoria que busca romper com a dicotomia e a idéia de múltiplos, a indissociabilidade entre dentro/ fora, mundo/sujeito, em contraponto ao legado cartesiano que diferenciava claramente dois mundos: mundo interior/mundo exterior. Ao rechaçar-se tal dicotomia, a realidade psicológica se apresenta sob outras características e se abrem novas perspectivas para sua investigação.

A partir de algumas considerações reveladoras desta constante mutação encontradas na teoria e na investigação, evidencia-se a necessidade de pensar o impensável, como sugere Figueiredo (1995) ao tratar da ética das práticas e dos discursos psicológicos. Sob esta perspectiva, a reestruturação produtiva se mostra especialmente instigante. Relacionada ao atual contexto sócio-econômico e político, ela surge como resposta à crise capitalista observada nos anos 70. Dela decorre a exigência de um novo perfil de trabalhador, entendido aqui, como alguém corporificado a constituir o sujeito da reestruturação do trabalho (Badiou, 1994). Um trabalhador protótipo da flexibilidade, tido como contraponto básico ao esgotamento daquele trabalhador massificado que o fordismo cunhou.

A partir da adoção sistemática da palavra flexibilidade pelo mundo do trabalho - para designar processos e organização do trabalho ágeis -, em oposição à palavra engessamento - comumente citada para caracterizar processo e organização do trabalho antigos, lentos e imutáveis -, pode-se pensar que as mudanças provenientes da reestruturação produtiva vão incidir sobre o tempo. E que ao sujeito desta reestruturação caberá, então, novos modos de experimentá-lo. Isso em razão de que, se o processo de trabalho fordista proporcionava aos sujeitos de então a experimentação de um tempo calcado no mito do eterno retorno, em função da repetitividade e monotonia de seu fazer cotidiano, hoje, os novos padrões tecnológicos e organizacionais proporcionam-lhes a experimentação de um tempo calcado na coexistência, na velocidade.

Tais diferenciações acerca de possíveis experimentações do tempo deverão acarretar, conseqüentemente, implicações nos modos de viver na contemporaneidade, mesmo que ainda se observe, em larga escala, concomitâncias em termos do que se classifica de padrões antigos e novos nas organizações. A transformação político-econômica do capitalismo aponta para o que Harvey (1993, p.141) chama de "acumulação flexível", caracteristicamente apoiada na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados, dos produtos e dos padrões de consumo. Para o autor, a acumulação flexível envolve um novo movimento que ele chama de "compressão do espaço-tempo", e algumas implicações tais como: "níveis altos de desemprego estrutural", "rápida destruição e reconstrução de habilidades", salários reais diminutos quando existentes, e retrocesso do poder sindical.

A qualificação/requalificação, em especial, é uma evidência disso. Da valorização de um saber e de uma experiência conquistados ao longo de um tempo predestinado à educação, observa-se, hoje, a valorização de um contínuo processo de qualificação, dadas as exigências que obrigam o trabalhador de qualquer idade e em diferentes níveis de formação e experiência, a apresentar conhecimentos e habilidades sempre renovados para acompanhar o ritmo acelerado das mudanças.

À luz da análise feita por Harvey e por outros autores, mesmo que nem sempre coincidentes, ao tratarem do trabalho e das mudanças que o desafiam, é possível tomar-se o setor bancário como um exemplo paradigmático no que diz respeito às transformações que sofre o mundo do trabalho e ao que diz respeito aos modos de trabalhar. Condizentes com tais características, as novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros provêm de inovações emergentes em bases comercial, tecnológica e organizacional.

As novas tecnologias adotadas por esse segmento aumentaram a rapidez do fluxo do dinheiro e têm gerado modos de trabalhar diversos que implicam qualificação, recolocação e também desemprego, com implicações diretas à saúde do trabalhador conforme registra o Censo Bancário - Avaliação de Saúde dos Bancários do Rio Grande do Sul promovido pelo Sindicato dos Bancários de Porto Alegre (1997). Como é possível notar, o mundo do trabalho bancário vem a constituir-se numa realidade peculiarmente atraente acerca das transformações contemporâneas.

Modos de experimentar o tempo podem ser expressos em colocações cotidianas tais como o tempo voa, tempo é tudo, tempo é dinheiro, sem dúvida, relacionadas ao mundo do trabalho e reveladoras dos modos de viver na contemporaneidade. Elas são indicativas de um tempo que se mostra atravessado por novas palavras de ordem: aceleração, velocidade, tempo real, tempo virtual, comunicação instantânea e globalizada, trabalho temporário e tantas quantas possam evocar a idéia da experimentação de temporalidades.

A sensação do tempo não é, no entanto, necessariamente, acompanhada de uma reflexão acerca dele, uma vez que a própria forma de experimentá-lo pode não possibilitar ao sujeito um tempo de reflexão. Diálogos cotidianos que, sob uma observação mais apurada, por vezes, revelam-se monólogos simultâneos entre duas ou mais pessoas, dão a entendê-las premidas pela necessidade de expressarem-se rapidamente. Tão rápido quanto os regimes de verdade lhes impõem, ao indicarem que um ínfimo instante não pode ser perdido, sob pena de evidenciar um tempo desperdiçado. Pode-se, então, inferir que, em decorrência de uma visão ideológica, que toma o tempo como algo dado e natural, tem-se sua não problematização pelos sujeitos que o experimentam. Desde esta perspectiva, sujeitos da contemporaneidade eternizam a máxima de Santo Agostinho ao remeter o tempo a uma condição de sabê-lo desde que não se pretenda explicá-lo.

Reside aí, um dos aspectos a indicar a relevância em relacionar-se estas categorias às questões do desemprego, da requalificação, e da saúde do trabalhador pois, como diz Harvey (1993, p. 190), "Sob a superfície de idéias do senso comum e aparentemente 'naturais' acerca do tempo e do espaço, ocultam-se territórios de ambiguidade, de contradição e de luta. Os conflitos surgem não apenas de apreciações subjetivas admitidamente diversas, mas porque diferentes qualidades materiais objetivas do tempo e do espaço são consideradas relevantes para a vida social em diferentes situações".

Trabalho e tempo, como se vê, entrelaçam-se no que se pode chamar de cenário contemporâneo. As mudanças da reestruturação produtiva, mormente aquelas provenientes do uso de novas tecnologias, vão incidir sobre o tempo e, ao instituírem novos regimes temporais, vão afetar a subjetividade. Como se vem acenando, trata-se, portanto, de novos modos de trabalhar, de novos regimes temporais, e de novos modos de subjetivar.

Cabe esclarecer que, para além de simples paisagem, ou de pano de fundo emoldurativo e inerte sobre o qual personagens contracenam, o cenário exposto é tomado como constitutivo do sujeito. Significá-lo desta maneira remete à idéia de reciprocidade entre mundo/sujeito, objetividade/subjetividade. Desta forma, o trabalhador em foco é o sujeito da reestruturação do trabalho, com distintos modos de experimentar o tempo, tendo em vista o reordenamento dos processos produtivos marcadamente atravessados pela velocidade.

Esse cenário exige a presença da Psicologia, pois acarreta novas experiências do trabalhador obrigado a uma abertura ao novo, configurado nas diversas tecnologias e paradigmas. Como diz Rolnik (1997, p.20-21), "essas mudanças implicam a conquista de uma flexibilidade para adaptar-se ao mercado em sua lógica de pulverização e globalização; uma abertura para o tão propalado novo: novos produtos, novas tecnologias, novos paradigmas, novos hábitos etc". Abertura para o novo, no entanto, conforme a autora, "não envolve necessariamente abertura para o estranho nem tolerância ao desassossego que isso mobiliza". Diante de tais transformações, cabe às subjetividades se reconfigurarem. Tais reconfigurações mostrar-se-ão, certamente, atravessadas pela questão do trabalho e do tempo, paradigmáticos nos modos de viver e de subjetivar contemporâneos. A Psicologia, portanto, não pode se eximir diante de realidades que se transformam e que, ao se transformarem, transformam também os sujeitos.

Acredita-se que já é tempo de a Psicologia vir a contribuir no sentido de conhecer modos de pensar, apreciar e agir dos sujeitos acerca de temas emergentes da contemporaneidade, ao tomar contextos referentes ao mundo do trabalho que passa por reestruturações e inovações tecnológicas, e sobre ele repousar um olhar que se caracterize, ao mesmo tempo, crítico e criativo. Ainda mais que,

"Para o indivíduo cujo trabalho é subitamente modificado; para uma dada profissão (tipógrafo, bancário, piloto) bruscamente atingida pela revolução tecnológica, que torna obsoleto o savoir-faire tradicional e ameaça a própria permanência da profissão; para as classes sociais ou para as regiões do mundo que não tomam parte na efervescência de concepção, produção ou apropriação lúdica das novas ferramentas digitais -para todos estes, a revolução técnica manifesta-se como um 'outro' ameaçador. A bem dizer, nenhum de nós deixa de se encontrar mais ou menos nesse estado de despossessão" (Lévy,1997, p.3).

As idéias apresentadas, até então, objetivam dar a conhecer alguns dos alicerces que sustentam a construção desta pesquisa. Elas pressupõem que trabalho e tempo atuam entrelaçados, agindo um sobre o outro, em termos de produção de modos de subjetivação com intercorrências diretas à requalificação, desemprego e saúde do trabalhador. De uma forma ou de outra, elas serão contempladas em mais três tópicos a serem apresentados a seguir: Metodologia, Achados da pesquisa, e O papel da Psicologia nas organizações: a produção e a aplicabilidade do conhecimento.

 

Procedimentos Metodológicos

A escolha epistemológica que norteia este modo de pesquisar, caracterizado como um estudo de caso, remete à busca de possíveis compreensões e interpretações acerca de temas emergentes na contemporaneidade. Tal busca acena, desde já, para a relevância social assumida na produção de conhecimento. Um conhecimento pautado em interpretações, mas que se assume relativo, aberto às novas configurações de sentidos; um conhecimento que se construa atento às subjetividades sem, no entanto, dicotomizar pesquisador e objeto a ser pesquisado; um conhecimento que se construa sob formas contemporâneas sem, entretanto, vislumbrar uma idéia de progresso contínuo que despreze a coexistência de temporalidades resignificadas.

Os sujeitos até então pesquisados, em número de sete, são bancários de uma instituição financeira centenária, de grande porte e de abrangência nacional, que configuram uma mescla em termos de gênero, função e tempo de trabalho no banco, assim distribuídos: caixa executiva/15a; técnica em habitação/16a; escriturário/24a; assistente de gerência/8a; avaliador executivo/22a; escriturária/ 8a, e gerente geral/24a. Estes sujeitos que compartilham uma mesma história institucional trabalham numa Agência que se mostra no ápice da reestruturação do trabalho implantada na instituição como um todo.

A coleta de dados baseia-se na realização de entrevistas individuais semi-dirigidas e de grupo focal que segue a orientação proposta por Morgan (1988), sendo realizados no próprio local de trabalho dos sujeitos, gravados em fita-cassete com a permissão deles e, após, transcritos.

A análise dos dados prioriza o entendimento qualitativo da realidade social, através de categorias de cunho coletivo, seguindo orientações de Thompson (1995). Para tanto, tomou-se como material de análise, o conteúdo das entrevistas e do grupo focal. A partir dos dados levantados busca-se apresentar alguns dos impactos da reestruturação produtiva, tais como o desemprego, a requalificação e a saúde do trabalhador, e discutir o papel da Psicologia nas organizações.

 

Achados da Pesquisa

Acredita-se que o fenômeno da reestruturação produtiva, investigado num banco que, embora ainda não se apresente como um banco de ponta em relação à reestruturação do trabalho e utilização de novas tecnologias se comparada ao avanço que outros bancos, principalmente os privados, vêm demonstrando no que se refere a estas questões, apresenta algumas facetas importantes que podem subsidiar discussões acerca do papel da Psicologia nas organizações. Talvez justamente por ainda não ocupar uma condição de ponta, este banco encontra-se num momento peculiar de transformação acelerada (Gurvitch apud Harvey, 1993) em busca de um lugar de destaque no setor bancário. A rapidez exigida à implantação das mudanças é evidência concreta disso. Neste sentido, entende-se este banco como um local privilegiado à observação dos impactos da reestruturação produtiva, exatamente no ápice dos acontecimentos que parecem se caracterizar como uma ruptura paradigmática.

Para a apresentação de dados brutos, expõe-se dois mapas (ao fim do texto), conforme a idéia de mapa adotada por Deleuze e Guattari (1996), onde se entrelaçam algumas das falas dos sujeitos. Toda a escrita contida nos mapas que se apresenta em letras minúsculas, refere-se a falas diretas dos sujeitos. Já a escrita em letras maiúsculas, a partir das falas dos sujeitos, refere-se a pequenos assinalamentos, feitos no sentido de chamar a atenção a algumas categorias consideradas centrais. A condensação de tais conteúdos surge em algumas tentativas de interpretação. Os mapas apresentam modos de trabalhar/subjetivar bancário sob o prisma do antigo e do novo, termos utilizados pelos próprios trabalhadores. As categorias apresentadas (modos de trabalhar, instrumentos de trabalho, modos de relacionamento, sujeito bancário etc) são retiradas da análise de conteúdo.

 

mapa 1

 

mapa 2

 

Como aproximação interpretativa destes mapas, tem-se um modo de trabalhar/ subjetivar bancário relativo à divisão e à simplificação de tarefas, condizente com o modelo taylorista, conectado a um tempo de estabilidade que, por sua vez, subjetiva os sujeitos bancários como vida (trabalho para a vida toda, traduzido na expressão de emprego vitalício). Como contraponto a isso, tem-se um modo de trabalhar bancário relativo a formas mais complexas e flexíveis, condizente com o modelo de acumulação flexível, conectado a um tempo de velocidade que, por sua vez, subjetiva os sujeitos bancários como pressão e medo (cada vez a pessoa vai valer menos, se qualificar mais e ser pior remunerada (Assistente de gerência/8a no banco)), intimamente relacionados à questão da saúde do trabalhador.

Na fala da própria gestão (Gerente Geral/24a no banco), visibiliza-se como o ritmo acelerado do trabalho e das mudanças afetam a saúde:

(...) que afeta eu não tenho dúvida. A gente conversa com os colegas, as pessoas estão nervosas, estão estressadas. Alguns demonstram na aparência um certo envelhecimento mais precoce. A gente é muito exigido. O cara tem estímulos, tem... Mas que isto traz assim... Eu, ontem, participei de uma reunião na Superintendência. Então, naquela roda de colegas... Eu olhando assim, um por um, até para ver o semblante. Eu vi pessoas cansadas, com aspecto de preocupadas. E a gente vive uma competição maluca. Se tu atinge um patamar X, daqui a pouco é X mais Y. É uma coisa que não tem fim. Se a gente vai parar para pensar, eu não sei até que ponto isso é positivo. Mas é o que a gente tem que fazer. Eu acho que a preocupação com as pessoas está um pouco de lado.

Em relação ao não atingimento de metas, diz: A gente é tocado na questão do brio. Quer dizer: numa reunião, eles começam a apresentar os dados de agência por agência, na frente do grupo. Então te põe a prova. Isso aí já causa um choque meio forte nas pessoas. Nas rodinhas de colegas se ouve manifestações desse tipo: que as pessoas estão preocupadas, ou está nervosa, chateada com a maneira como as coisas estão sendo cobradas. Mas isso é sempre feito em pequenos grupos, ninguém abre o jogo assim, com medo de alguma coisa. É um desgaste psicológico.

A exposição prolongada da fala deste sujeito dá-se por algumas razões: ela é ilustrativa de como se perpetuam contradições entre discursos e práticas, já que ninguém abre o jogo, assim; ela ilustra modos de trabalhar e de se relacionar, sob o prisma da competitividade tão enaltecida nos tempos atuais; ela ilustra a questão das práticas, que jamais são desvinculadas de uma ética; ela remete a um processo de trabalho capitalista, cujo cerne se encontra na acumulação de riquezas, uma vez que é uma coisa que não tem fim; ela registra um modo de gestão baseado na meritrocracia, em que a noção de sucesso e de fracasso remete ao sujeito individualizado que é tocado na questão do brio; e entre outras possibilidades, ainda, ela ilustra modos de subjetivação dos sujeitos que deverão vir a dizer algo sobre o sujeito contemporâneo, uma vez que o mundo do trabalho o caracteriza, quer pela sua inclusão, quer pela sua exclusão.

Tal como visibilizam os mapas ao fim do texto, mudanças sempre existiram no banco e, tal como hoje, elas eram percebidas como mudanças drásticas. A natureza e a contextualização das mudanças é que se diferenciam, embora isso nem sempre seja percebido pelos funcionários de modo em geral. Fica-lhes, entretanto, a experimentação de um sentimento assim expresso: Nos últimos anos tem havido muito mais mudanças ainda, muito mais rápidas ainda, e Mudou assim, tremendamente (Gerente Geral/24a no banco).

Há uma diferenciação nos modos de perceber as mudanças, basicamente aquelas da reestruturação do trabalho acompanhada da utilização de novas tecnologias. Pode-se imaginar, neste momento, que os sujeitos pertencentes a níveis gerenciais, com quem as questões relativas às transformações do mundo do trabalho são, de certa forma, mais compartilhadas, venham a experimentá-las de modo menos desassossegado, embora sofram seus impactos e teçam sobre elas suas críticas. Isso não quer dizer, de forma alguma, que o desassossego possa vir a ser desconsiderado em tais níveis hierárquicos. No entanto, suspeita-se que o sentimento de estrangeiridade, ou de distanciamento, que afeta aos sujeitos, de acordo com Lévy (1996), seja proporcional à maneira como as novas tecnologias lhes são apresentadas.

Quanto mais distantes das discussões e mais próximos tão somente das execuções que caracterizam a reestruturação do trabalho, maior é o sentimento de estrangeiridade. Ele se expressa, basicamente, na resistência às novas tecnologias representadas pelo computador, e no apego a antigas tecnologias representadas pelas máquinas de calcular e de datilografar. Isso se torna evidente na revelação de que para que duas máquinas de datilografar elétricas permanecessem na agência, elas foram literalmente escondidas (Escriturário/24a no banco).

Em contrapartida, torna-se claro a idéia de que voltar ao tempo, ao passado, é uma idéia experimentada como sendo um absurdo. Vejamos como se expressa esta forma ambivalente de experimentar as novas tecnologias, tanto na fala dos funcionários em geral quanto na fala do gerente: Quando a máquina (computador) não funciona, aí vira um caos, tu faz coisas a mão. É um absurdo. Aí, tem uns que têm umas letras boas. Agora, tu pegas umas letras que só entende o primeiro que fez, o segundo já não entende mais. E até perante o cliente aquilo fica horrível de fazer (caixa executiva/15a no banco). Ou então: Ah, não. Sem isso (novas tecnologias) então, seria inviável. Mal ou bem se tem algum meio de trabalho. Sem isso daí, não se teria a menor condição de trabalhar (Gerente Geral/24a no banco).

Talvez a ambivalência em relação às novas tecnologias resida na necessidade de estarem incessantemente plugados feito máquinas, uma vez que, se não estivermos atentos, não estivermos diariamente acompanhando, agente perde o fio da meada. Então as mudanças são muito rápidas, às vezes, muito drásticas (Gerente Geral/24a no banco). Ou: Tem que atender rápido, tem que vender, não pode ter fila, nãopode... É impossível tu atenderes tudo ao mesmo tempo (Caixa executiva/15a no banco).

Das falas acima pode-se inferir, também, como os sujeitos são afetados pelas transformações que ocorrem no mundo do trabalho. Antigamente a vida parecia ser compreendida como uma flecha, uma linha simplificada que seguia numa única direção (ingresso/início/passado, promoção/meio/ presente e aposentadoria/fim/futuro no decorrer de uma carreira profissional previsível), denotando uma idéia de vida e trabalho sobrepostos. Assim sendo, pode-se pensar um ciclo de existência sobreposto ao ciclo dos tempos de trabalho, trabalho este que se coadunava com a idéia de emprego. Além disso, tais modos de viver e de trabalhar davam-se sob a cadência de uma velocidade que até então não se fazia notar.

Atualmente, tudo indica que a vida deve ser compreendida de modo rizomático, no sentido de que o rizoma "não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes de direções movediças, conectanto um ponto qualquer com outro ponto qualquer", tal como denota a idéia de Deleuze e Guattari (1996, p.32), o que privilegia a noção de coexistências temporais, atravessadas por uma velocidade tida como surpreendente. Da idéia de linearidade/previsibilidade à idéia de rizoma/bifurcações, encontra-se um sujeito a indicar a perda do fio da meada, ilustrando uma trama complexa a denunciar a passagem de regimes temporais da estabilidade e das certezas, para regimes temporais das instabilidades e das incertezas.

E essa própria mudança, tomada como processo, que afirma a indissociação sujeito/ mundo que deverá acarretar diferenciações nos sujeitos do trabalho bancário. Assim, acena-se à idéia de que as novas tecnologias constituem-se revoluções contidas nas próprias condições materiais do trabalho e da economia; à idéia de que as mudanças dos modos de trabalhar bancário apontam para a extinção do emprego que institucionaliza o trabalho, mas não para o trabalho propriamente dito; à idéia de que a exclusão social proveniente da diminuição dos postos de trabalho conjugada com as novas exigências em termos de qualificação encontra-se contida na reestruturação do trabalho; e à idéia de que tais mudanças possam vir a configurar sujeitos mais qualificados, capacitados e inteligentes, devido ao próprio processo de requalificação, em contraponto ao homem boi cunhado pelo taylorismo/fordismo.

Como se vê, as transformações que ocorrem no mundo do trabalho já se encontram incrustradas em seu próprio fazer cotidiano.

 

O papel da Psicologia nas organizações: a produção e a aplicabilidade do conhecimento

À Psicologia, do cenário apresentado, cabe imbuir-se da necessidade de abrir-se ao não enquadramento e a não dissociação sujeito/ mundo, considerando a importância de dimensões outras até então desconsideradas. Uma vez que a própria Psicologia colaborou, por muito tempo, para práticas de gestão coercitivas e excludentes ao tomar os sujeitos sob a idéia da meritrocracia, que os responsabiliza exclusivamente por seus sucessos e por seus fracassos. Se as práticas psicológicas não considerarem a dimensão temporal como um modo de subjetivação dos sujeitos, evidenciar-se-ão práticas inócuas. Daí a urgente necessidade de uma reformulação, seja em relação à construção do conhecimento, seja em relação à sua aplicabilidade. Isto constitui-se num desafio. Desafio este tomado no sentido de cortar com a noção de um psicologismo arraigado a tradições positivistas, na tentativa de arremessar a Psicologia a uma discussão epistemológica e paradigmática. O desafio evidencia-se numa prática psicológica que:

• Para além da produção do conhecimento, possa abolir a concretude do mundo cartesiano ao questionar a idéia de que a ciência é uma prática social que produz uma única forma de conhecimento válido.

• Rechace a idéia de uma objetividade que implique o neutralizar qualquer influência do sujeito produtor de conhecimento sobre os conhecimentos produzidos, numa clara dicotomia entre sujeito e objeto que autonomiza o produto das suas condições particulares de produção.

• Busque um olhar perscrutador atento a maior complexidade das relações estabelecidas, a não arrogância do conhecimento e do conhecedor; capaz de suportar a idéia de um saber em processualidade, contrapondo-se à idéia de saberes fixos, plenamente localizáveis.

Cabe lembrar que Santos (1996) alerta, com muita propriedade, para o que chama de epistemicídio. É justamente na noção de epistemicídio que a questão da ética se mostra cristalina. Ora, negar as tantas formas de conhecimento que são produzidas por tantas quantas forem as práticas sociais, é negar a existência de sujeitos múltiplos, em processualidade. Essa apreciação remete à dinamicidade da ciência inibida durante muito tempo em modelos que tomavam para si propriedades eternas e imutáveis como se não determinassem nem sofressem a ação das práticas sociais que, por sua vez, sofrem (des)organizações do tempo. A Psicologia "antiga" desprezava o conhecimento fundado na razão prática, comungava, portanto, com o epistemicídio. Hoje, tenta-se valorizar o sujeito plural muito mais em mudança, sujeito submetido a modos de subjetivação modificados em razão dos desafios contemporâneos (mutação do saber, do trabalho, das novas tecnologias). Uma reconstrução conceituai e teórica do fato empírico se faz necessária, portanto, uma vez que o senso prático sempre foi criticado como senso errado.

A aplicabilidade do conhecimento remete diretamente à história e, por história toma-se as concretizações do tempo. A coexistência de temporalidades resignificadas e reconfiguradas na/pela reestruturação do trabalho fundamenta-se na necessidade de romper com a idéia de um tempo linear, de sucessão linear, já que a história não significa, necessariamente, vislumbrar um progresso contfnuo. Evidencia-se, neste momento, não a existência de um tempo cíclico, mas uma lógica institucional que diz de regimes de temporalidade em que circulam sentidos que fazem redes com o passado e o próprio futuro. É neste sentido que talvez se possa dizer que noções tais como qualidade que, em verdade, permeavam o trabalho cotidiano mesmo quando a dita filosofia da Qualidade Total ainda não havia institucionalizado essa questão, hoje encontram-se resignificadas e reconfiguradas numa coexistência de temporalidades que aponta para o controle e a impessoalidade tão característicos da burocracia. E isso numa época em que as empresas se querem e se dizem minimamente burocráticas. Nesta mesma linha de raciocínio pensa-se ser possível tomar-se sub-funções de Recursos Humanos tais como provimento de cargos e funções, treinamento e desenvolvimento, e avaliação de desempenho, já que se assiste, hoje, inclusive sob um certo consenso, ao que se poderia chamar de crise da função de Recursos Humanos.

Tudo isto remete à questão da Qualificação/ Requalificação que, tal como elaborada "antigamente", não dá mais conta das mudanças contemporâneas. A coexistência de temporalidades resignificadas e reconfiguradas na/pela reestruturação do trabalho evidencia-se justamente em questões tais como não haver mais um perfil ao qual se encaixar um sujeito único e indivisível, uma vez que hoje estamos diante de um sujeito plural, em processualidade. As demandas organizacionais sofrem mudanças, uma vez que as empresas se querem minimamente burocráticas, que os níveis hierárquicos extinguem-se, que as profissões extinguem-se, que as filas do desemprego expandem-se. Isso tudo leva a coexistências de temporalidades, e o tempo destinado à qualificação é um exemplo destas coexistências. Se antigamente havia, na vida das pessoas, um tempo destinado a qualificação, e os conhecimentos adquiridos podiam ser transmitidos de pai para filho, hoje, o tempo destinado à qualificação/ requalificação extrapola para toda a vida. Os conhecimentos tornam-se obsoletos com uma maior velocidade. As demandas dizem de sujeitos criativos, capazes de inovar, e não mais de sujeitos cujo conhecimento calcava-se na experiência, na repetição. Neste sentido, a requalificação é uma constante que se faz notar não mais em termos de ascensão profissional, mas de manutenção de uma posição de sujeito incluído no mercado de trabalho.

A questão, hoje, como se vê, não é só treinamento. É preparar para a mudança, colocar os sujeitos numa compreensão de que as coisas mudam, e prepará-los para as escolhas, prepará-los para defrontarem-se constantemente com o novo, uma vez que a única constante parece ser a inconstância. Diante disso, mais do que nunca imperam algumas necessidades:

• Um diálogo que valorize os possíveis olhares que vêm de outros lugares, e que poderão iluminar o que está sendo olhado.

• Ter claro que mais do que nunca os sujeitos necessitam da relação face a face para aprenderem a lidar com a nova realidade das tecnologias, para amenizar o sentimento de isolamento, de não pertença, de despossessão e de estrangeiridade, preservando o humano.

• Propiciar que tanto o diálogo multidisciplinar quanto a relação face a face sejam perpassados por uma profunda discussão sobre o sentido do trabalho a ser travada no espaço da academia, dos órgãos representativos de classes, e do próprio espaço do trabalho cotidiano, que hoje extrapola territórios formalmente constituídos.

Diante destas possibilidades, pensa-se que modos de subjetivar caracterizados por pressão e medo possam vir a ser aliviados nos processos de gestão e nos processos de execução no cotidiano organizacional com nítida repercussão à saúde do trabalhador, aqui entendida como algo que extrapola a ausência de doença.

 

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência
Carmem Ligia Iochins Grisci
Av. Independência. 98/603 Bairro independência
Porto Alegre-RS CEP 90035-070

 

 

1 Esta monografia é fruto de minha inserção no grupo de pesquisas Modos de Trabalhar. Modos de Subjetivar, coordenado pela Profa. Dra. Tania Galli Fonseca da UFRGS, e de uma proposta de tese de doutoramento em Psicologia junto ao grupo de pesquisa Ideologia, Comunicação e Representações Sociais, coordenado pelo Prof. Dr. Pedrinho Guareschi da PUCRS.