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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.19 no.1 Brasília  1999

 

A complexidade nas organizações: futuros desafios para o psicólogo frente à reestruturação competitiva

 

 

Leonel Tractenberg

Psicólogo

Endereço para correspondência

 

 

Partindo da conceituação de Edgar Morin sobre Simplicidade e Complexidade, pretende-se mostrar como as organizações de trabalho, buscando a reestruturação competitiva, vêm evoluindo de um paradigma mecanicista e simplificador para outro de caráter sistêmico, integrador e complexo; e como a Psicologia Organizacional e do Trabalho vem acompanhando essas mudanças. Mais especificamente, pretende apontar as principais transformações e desafios que essa reestruturação competitiva e mudança de paradigmas impõe às práticas do psicólogo das organizações, concluindo quanto à premente necessidade de se repensar da formação desse psicólogo a fim de compatibilizá-la com as demandas do mercado.

Vivemos em uma época de múltiplas e radicais transformações que ocorrem em um ritmo sem precedentes, desafiando nossa capacidade de reação. Turbulência, crise e caos são as palavras da moda. Em um mundo on-line, tempo e espaço se encurtam, o local e o global se misturam, núcleo e periferia se confundem. Assistimos atônitos às coberturas em "tempo real" da queda do Muro de Berlim, da Guerra do Golfo, das crises russa e asiática, dos escândalos na Casa Branca, entre tantos outros acontecimentos que direta ou indiretamente afetarão nossa economia, trabalho, nosso equilíbrio físico e psíquico. Atônitos e, por vezes, admirados.

É comum falarmos em crise e decadência para estigmatizarmos mudanças com as quais não concordamos ou que não compreendemos bem. O que para uns se afigura como incerteza e crise, para outros representará um campo aberto de riscos e oportunidades. Isto porque, toda leitura do real pressupõe uma visão de mundo fundamentadora. Ações distintas derivarão de leituras distintas. Trata-se de um princípio holográfico, aplicável no contínuo que vai da micro-dimensão individual à macro-dimensão social. As organizações, sistemas sócio-técnicos inseridos dentro desse contínuo, não escapam à regra. Aquelas mais dispertas, ora visando a excelência, ora a sobrevivência, irão buscar sua reestruturação competitiva partindo, antes de tudo, da revisão mais profunda de seus paradigmas gerenciais.

Se nós psicólogos estamos preocupados em entender os impactos das transformações em curso neste final de século sobre as organizações e os indivíduos que delas fazem parte, assim como os desafios que essas transformações nos colocam, devemos ter esse princípio em mente. Como bem nos recorda Zanelli (1994), "se a organização antepõe resistências para que o psicólogo extrapole o circuito das atividades técnicas, é necessário lembrar que faz parte da natureza das atividades do psicólogo provocar mudanças". Mas, ressalta que isso irá requerer a "compreensão metodológica, percepção política e conhecimento das atividades potenciais em seu campo profissional e conhecimento aprofundado do local de trabalho, da trama das relações de poder, dos determinantes econômicos e sociais etc", e o "preparo para lidar com as mudanças tecnológicas e sociais do processo de trabalho e com as mudanças mais amplas da sociedade" (p.147). Vê-se, portanto, que não nos basta apenas a competência técnica, operacional. É preciso irmos além até mesmo do nível estratégico. Para adquirirmos essa compreensão e esse preparo para a implementação de mudanças deveremos elevar nosso olhar a um patamar acima do estratégico e examinar o que ocorre em um nível que denominarei de paradigmático.

A saber, o nível estratégico se preocupa com a definição das diretrizes básicas de uma organização (missão, valores, negócio, escopo de atuação etc), com a análise e planejamento de políticas e estratégias de ação, e com sua irradiação para os demais níveis, sistemas e subsistemas da organização. O paradigmático, por sua vez, situa-se acima do estratégico na medida em que integra uma cosmovisão, uma estrutura conceptual, ideológica, filosófica e histórica, que impregnará de sentido e delimitará as fronteiras visíveis para o estabelecimento de diretrizes e políticas organizacionais. E, ao mesmo tempo, permeia, em todas as esferas organizacionais, os modos de pensar e de agir dos indivíduos. Os níveis paradigmático e estratégico correspondem às principais fronteiras da organização com o meta-sistema. A indistinção entre esses níveis, não raro, leva ao apagamento ou diluição do primeiro, conduzindo a uma trágica rigidez perceptiva e funcional que acomete inúmeras organizações. Trágica porque, nos tempos atuais, muito mais do que um redirecionamento estratégico, exige-se das organizações uma (r)evolução paradigmática.

O presente trabalho pretende mostrar como as organizações de trabalho, buscando a reestruturação competitiva, vêm evoluindo de uma concepção mecanicista e simplificadora para outra - ; sistêmica, integradora e complexa -, e como a Psicologia Organizacional e do Trabalho vem acompanhando essas mudanças. Mais especificamente, pretende apontar as principais transformações e desafios que essa reestruturação competitiva e mudança de paradigmas impõe às práticas do psicólogo das organizações.

 

O Paradigma da Simplicidade nas Organizações

Paradigma da simplicidade foi a expressão cunhada pelo filósofo e sociólogo Edgar Morin para se referir a um conjunto de princípios fundamentais que constituem a pedra angular do pensamento moderno inaugurado por Descartes e que nos acompanha até os dias atuais. É muitas vezes equiparado com a visão cartesiana-mecanicista, porém a expressão de Morin tem um sentido muito mais amplo (ver Morin, 1991). Nosso pensar, de tão solidamente inscrito nesse paradigma, ao buscar a compreensão do mundo, se esquece de interrogar o seu próprio processo de construção. Esquece-se de que esse processo obedece a princípios supra-lógicos implícitos, sejam eles filosóficos, epistemológicos, pulsionais ou de outra ordem. Não caberá aqui analisarmos profundamente esses princípios semi-ocultos. Para atingir nossos objetivos bastará apenas explicitá-los, ainda que brevemente.

Conforme a visão simplificadora, o real é um território por demais complexo e extenso para ser apreendido no todo. Precisa ser dividido em partes cada vez menores, com fronteiras bem definidas, e cada parte deve ser estudada em profundidade. O conhecimento conforme essa visão é construído através de um processo que envolve, basicamente:

• objetivação - separação entre objeto e sujeito, seguida da anulação do último;

• disjunção - fragmentação do objeto;

• exclusão - rejeição de dados não significativos;

• centralização - hierarquização das ideias centrais e periféricas;

• análise e redução - do social ao biológico, do biológico ao físico;

•  modelização - abstração, formalização e generalização segundo uma lógica linear, rígida e fechada;

• síntese e integração - articulação do novo conhecimento com outros já estabelecidos.

A despeito da vigente pluralidade de discursos que esse saber fragmentário e superespecializado cria, acreditamos em uma objetivo comum a todas as ciências de acabar com a obscuridade. Conforme a visão simplificadora, isso deverá ocorrer por meio da anulação de quaisquer irregularidades e dissipação de toda complexidade, reduzindo esta última a um conjunto de proto-modelos mecanicistas fechados, de mapeamentos mais ou menos articulados entre si. Acreditamos nessa missão não por simpatia gratuita, mas devido a seu reiterado sucesso na explicação, controle e previsão dos fenômenos, e ao fascínio exercido pelas inovações tecnológicas decorrentes.

Vendo no pêndulo da Física um modelo ideal de universo, uma máquina cósmica, racional, previsível da qual a consciência do homem não fazia parte, o mundo sob a ótica desse paradigma simplificador foi transformado em uma grande equação linear. As sociedades, acreditando na promessa de triunfo do homo tecnicus, do progresso e expansão ilimitados, se curvaram. Todos os saberes com a pretensão de cientificidade passaram a rezar a cartilha de um paradigma desumanizado cujas conseqüências nefastas só se tornariam claras bem mais tarde1. Mesmo as "ciências humanas", detentoras de um objeto que continuamente recria a si próprio, cujas fronteiras tênues se confundem e entrelaçam, depuseram o sujeito pensante e se submeteram a esse pensamento disjuntivo, mecanicista e simplificador (Japiassú, 1977)2. E, com elas, seguiram a reboque as diversas teorias da administração organizacional, impactando profundamente as relações de trabalho, a saúde do trabalhador, e, consequentemente a atuação do psicólogo dentro das organizações.

Pioneiro nas teorias da economia e administração modernas, Adam Smith, em sua clássica obra "A Riqueza das Nações" (1776), apresentava seu modelo de produção eficiente baseado na divisão e especialização do trabalho, o que implicava no surgimento de uma demanda pela capacitação da mão-de-obra. Cerca de meio século depois, Charles Babbage propunha que a remuneração fosse proporcional ao nível de complexidade das habilidades exigidas pelas tarefas laborais. Conforme a "lógica" do capital, as tarefas manuais (maior oferta) deveriam ser menos remuneradas que as intelectuais. Criava-se, assim, o círculo vicioso da subjugação de classes: mão-de-obra menos qualificada ® baixa remuneração —► menor qualidade de vida (saúde, alimentação, moradia e lazer) e menos recursos para investir na própria educação/qualificação ® restrição das possibilidades de ascensão social ® permanência na condição de exploração e opressão.

Em princípios do século XX, Taylor apresenta suas teses sobre a "organização científica do trabalho", fundamentadas em uma visão analítica, empiricista e mecanicista da administração. A organização era encarada como máquina, um sistema fechado cujas tarefas complexas deveriam ser parceladas, uniformizadas e otimizadas ao máximo, visando o aumento da produtividade. O planejamento e controle deveriam ser rígidos a fim de evitar falhas na linha de produção. Os trabalhadores deveriam ser "cientificamente" selecionados e treinados até alcançarem o grau máximo de especialização e rendimento. A divisão, especialização e racionalização da força de trabalho foram levadas ao extremo com o Fordismo. A linha de produção, por um lado, aumentava sua eficiência consideravelmente, mas, por outro, conduzia o trabalho ao máximo da desumanização. O vazio e a mecanização do trabalho eram transformados eufemisticamente em "adaptação" e "eficiência" dentro da visão Taylorista. A prioridade eram as tarefas. O fator humano nada mais era que uma peça substituível de uma máquina maior.

As recém desenvolvidas ciências do comportamento foram requisitadas a colaborar com a administração, fornecendo técnicas de aprendizagem e instrumentos de controle que legitimassem essa abordagem cientificista. Como bem retrata Malvezzi (1994),

"os instrumentos criados pela Psicometria permitiram a aferição científica (...) das condições pessoais apresentadas pelo trabalhador. A defasagem entre o perfil e o indivíduo indicava a necessidade de treinamento. (...) Tudo deveria ser medido: o perfil de traços e os resultados da aprendizagem. (...) Havia preocupação de materializar o controle conforme as diferentes teorias de inteligência e de habilidades específicas, como era o caso das teorias de Spearman, Thorndike e Thurstone" (p.23).

A Teoria de Taylor, juntamente com os princípios da administração de Fayol, correspondiam à chamada Teoria Clássica da Administração, e tinham na racionalização e parcelamento do trabalho o eixo principal de sua abordagem. Contudo, Fayol irá enfatizar não os elementos que compõe a tarefa operacional concreta do trabalhador (tempos e movimentos), mas a estrutura organizacional como um todo. Ainda dentro de uma ótica mecanicista, vê a organização como um sistema fechado, altamente hierarquizado, composto de elementos estáticos. Com relação aos impactos desses sistemas sobre a saúde do trabalhador, Dejours (1987) irá afirmar:

"Nova tecnologia de submissão, de disciplina do corpo, a organização científica do trabalho gera exigências fisiológicas até então desconhecidas, especialmente as exigências de tempo e ritmo de trabalho. As performances exigidas são absolutamente novas, e fazem com que o corpo apareça como principal ponto de impacto dos prejuízos do trabalho. O esgotamento físico não concerne somente aos trabalhadores braçais, mas ao conjunto de operários da produção de massa. Ao separar, radicalmente, o trabalho intelectual do trabalho manual, o sistema de Taylor neutraliza a atividade mental dos operários." (p.18)

Parece impossível viver 8 a 12 horas de desapropriação consentida da própria vida, na condição de extrema robotização e opressão e, logo em seguida, como que magicamente, transformar-se num indivíduo saudável, normal. Não surpreende, pois, que o trabalho3 continuasse apartado do prazer, encarado como algo opressivo e ruim, perpetuando uma dicotomia existente desde tempos remotos4.

Dejours faz alusão aos mecanismos de defesa desenvolvidos pelos trabalhadores fabris. Fala da constituição, dentro dessa coletividade, de uma ideologia defensiva na qual a morte, a doença, o corpo, a sexualidade, os sentimentos e a fala são abafados, torcidos e masserados a fim de se contornar a opressão e o sentimento de angústia frente a sua realidade existencial.

A luta por condições mais justas de remuneração, por maior segurança contra acidentes de trabalho, e contra a opressão/ exploração dos patrões foi ganhando contornos mais definidos, dando origem a associações de oposição, sindicatos e movimentos sociais reivindicatórios; bem como ao surgimento e radicalização de ideologias antagônicas ao sistema capitalista. As greves e paralisações, o desperdício, o absenteísmo, as "operações tartaruga", a sabotagem da produção, o descontentamento e a falta de motivação para o trabalho denunciavam o esgotamento do sistema, levando cada vez mais as organizações à busca de soluções alternativas que minimizassem os impactos negativos sobre a produção. O experimento de Hawthorne, na década de 30, apontava para a necessidade de ampliar a compreensão sobre os fatores relacionados ao desempenho, incluindo novas dimensões, como a motivação, o sentimento e a influência dos grupos. A Psicologia Industrial, todavia mantinha o enfoque fragmentário e manipulador sobre o homem.

Progressivamente, foram alcançadas algumas vitórias em prol da melhoria das condições de trabalho. É nessa época, também, que surge a Medicina do Trabalho e ampliam-se os movimentos sindicais que vão, pouco a pouco, conseguindo obter conquistas como redução da jornada de trabalho, direitos à aposentadoria, férias remuneradas, previdência social, melhoria das condições de higiene e segurança no trabalho. O foco das reivindicações era a saúde do corpo -principal alvo da exploração. As análises críticas ao modo de produção capitalista argumentavam contra a exploração do corpo lesado, do corpo doente, da mortalidade, da subnutrição, das condições de higiene, da fadiga, da falta de segurança etc. Mas, também serão criticadas a mecanização e despersonalização do trabalhador (Desjours,1987).

Ainda dentro da visão simplificadora, temos o surgimento da Teoria da Burocracia, uma revalorização da Teoria Clássica, tendo como inspiração a obra do sociólogo Max Weber. Essa concepção fortemente centrada na regulamentação e controle do aparato administrativo irá valorizar a divisão do trabalho com base na especialização funcional; a hierarquia rígida de poderes e responsabilidades; o sistema de papéis, normas e procedimentos bem definidos; a impessoalidade nas relações (separação entre o pessoal e o profissional); a promoção com base no desempenho. Apesar de adequar-se bem a determinados tipos de organização - governamental, por exemplo - e a determinados cenários de desenvolvimento estável, essa abordagem foi posteriormente criticada por apresentar sérias falhas em dois aspectos fundamentais: a "questão humana" dentro da organização (reciprocidade), e o problema da falta de flexibilidade das estruturas burocráticas frente às mudanças impostas pelo meio externo (adaptabilidade).

A Escola das Relações Humanas, desenvolvida ainda na década de 30 por Mayo e outros, coloca-se como contraponto à questão da falta de reciprocidade referida acima. Suas contribuições para a "humanização" das organizações e das relações de trabalho através da utilização de conhecimentos oriundos de estudos sobre liderança, motivação, comunicação e comportamento interpessoal, dinâmica de grupos e estudos sociométricos, foram inúmeras e revolucionaram as abordagens psicológicas vigentes. Contudo, na prática ainda predominava o tratamento manipulatório dos comportamentos, não podendo ser considerada uma abordagem que valorizava o ser humano como um todo. Esse período comumente denominado da "psicologia aplicada" durou até meados da década de 40.

Criticada pelo excesso de romantismo e pela falta de pragmatismo, a abordagem de relações humanas foi dando lugar a outras mais completas que a sucederam como a Teoria Estruturalista da Administração. Esta última, pretendendo ser uma síntese da Teoria Clássica (formal) e da Teoria das Relações Humanas (informal), e inspirando-se na Teoria Burocrática, buscou uma concepção integrada das organizações, encaradas agora como unidades sociais complexas, ou seja, estruturas sociais dinâmicas que se organizam e desenvolvem dentro de um campo de tensões, conflitos e contradições entre os aspectos formal e o informal, entre os objetivos organizacionais e individuais. Procurava, assim, suprir as carências de flexibilidade e inovação das organizações. Começavam a ser reconhecidas com mais nitidez as insuficiências da visão mecanicista e simplificadora, e a necessidade de um novo pensamento para dar conta de uma sociedade em processo acelerado de transformação.

Em termos da saúde do trabalho, com o considerável crescimento do setor terciário nas décadas de 40 e 50 e as conquistas proletárias citadas anteriormente, o foco das reivindicações sobre a "exploração do corpo" pouco a pouco se deslocava para a questão das tarefas de escritório. A esse respeito afirma Dejours (1987),

"Reputadas como isentas de exigências físicas graves, as tarefas de escritório tornam-se cada vez mais numerosas, na medida do desenvolvimento do setor terciário. A sensibilidade às cargas intelectuais e psicossensoriais de trabalho preparam terreno para as preocupações com a saúde mental.

O mesmo se dá com os operários que têm uma fraca carga física, que são operadores de indústrias de processo (petroquímica, nuclear, cimenteiras etc). O desenvolvimento destas indústrias confronta os operários a novas condições de trabalho e fazem-nos descobrir sofrimentos insuspeitos". (p.23)

Antes consideradas secundárias frente a necessidades mais urgentes, passam a ser objeto de reivindicações: a insegurança no emprego frente à ameaça de demissão; a ansiedade frente aos superiores; o estresse e as pressões do trabalho; a falta de perspectivas de crescimento; a solidão e o vazio das relações unicamente profissionais; a falta de relações de amizade e lazer; a necessidade de comunicação; etc.

É dentro desse contexto que surgem, nas décadas 60 e 70, as teses sobre Desenvolvimento Organizacional (D.O.). Apoiando-se no avanço dos estudos psicológicos sobre motivação e comportamento humanos e sua influência dentro da dinâmica e estrutura das organizações - Teoria da Hierarquia das Necessidades, de Maslow; Teorias X e Y, de McGregor e de Likert sobre liderança etc. - , e adotando a perspectiva dos Sistemas Abertos de Von Bertalanffy e outros, em certo sentido, o D.O. representa uma integração de várias abordagens anteriores ao adotar uma compreensão mais dinâmica da estrutura e dos processos de mudança organizacional e ao articular os aspectos técnicos com os sociais. Surgia a Psicologia Organizacional e do Trabalho, à maneira como é conhecida hoje. Desde então, as pesquisas nessa área proliferaram de modo notável, deslocando-se de problemas concretos e específicos para articulação de métodos, modelos e teorias mais gerais (Roe, 1996). Na teoria, a psicologia das organizações adquiria um papel cada vez mais fundamental. Na prática, contudo, as coisas ocorreriam mais lentamente.

No Brasil, o início das atividades de aplicação da Psicologia no trabalho começou por volta da década de 20 e 30 com a formação de psicotécnicos, na sua maioria engenheiros que se dedicavam aos problemas de ajustamento humano ao trabalho (Zanelli, 1994). A formação desses profissionais ocorria na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, no Instituto de Organização Racional do Trabalho (IDORT), também em São Paulo, e a partir de 1947, no Instituto de Seleção e Orientação Profissional da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. Mas , principalmente, a partir da eminente obra de Emílio Mira y Lopez e outros que, trabalhando à margem das universidades, na década de 50 instituíram a "Psicologia Industrial e do Trabalho". Verifica-se claramente, portanto, que, desde o seu surgimento, essa vertente da Psicologia esteve situada mais próxima da empresa do que de um universo acadêmico, fato que contribui para explicar as dificuldades na formação da identidade e legitimação/ reconhecimento que acompanham o psicólogo das organizações e do trabalho até hoje (Zanelli, 1994). Em fins da década de 70, Batitucci (1978) e Castilho (1980), denunciavam as dificuldades que os psicólogos organizacionais encontravam para serem reconhecidos e valorizados na sua prática profissional. Salvo raras excessões, a visão que pairava sobre eles era a de profissionais enigmáticos, complicados e intransigentes, fechados em seus testes -; muitas vezes utilizados como instrumentos de poder -, distantes da realidade da empresa e alienados quanto às suas necessidades. Os principais problemas enfrentados por estes psicólogos incluíam: a falta de consciência do seu próprio papel; o restringimento a tarefas meramente operacionais; a perda do espaço para outros profissionais (engenheiros, administradores etc); a falta de sensibilidade das lideranças da organização para a importância do seu papel; o medo de dialogar com as mesmas; a baixa autonomia decisória; a dificuldade de "falar a língua da empresa"; o baixo nível salarial e de status da profissão, comparado ao de outros técnicos; a diminuta troca de experiências entre os profissionais; as dificuldades de desenvolver pesquisas na área; e o próprio preconceito dos psicólogos da área clínica (Castilho, 1980; Zanelli, 1994). Verifica-se que a maioria desses problemas persistem até os dias atuais, acarretando em prejuízos incalculáveis tanto para as organizações como um todo quanto para seus indivíduos (Zanelli, 1994). As causas desse problema crônico são diversas, como veremos mais à frente. A rigidez perceptiva e funcional imposta pelo paradigma tradicional, da qual nos referimos anteriormente, tem indubitavelmente contribuído para a manutenção dessa situação.

 

A Reestruturação Competitiva e a Emergência do Novo Paradigma

A incorporação, nas décadas de 60 e 70, da Teoria de Sistemas Abertos juntamente com um processo de inclusão bem fundamentada do sujeito dentro da dinâmica organizacional representaram um grande avanço no sentido da superação do paradigma simplificador. Porém ainda não havia massa crítica, nem contexto adequados para esta se efetivar. Em termos genéricos, a relativa estabilidade no desenvolvimento sócio-econômico dos blocos no pós-guerra, apesar dos choques do petróleo e de conflitos localizados, garantiam a continuidade do antigo paradigma. Conforme a ótica predominante, o futuro era visto como um prolongamento do passado, e mudanças ocasionais vistas como flutuações numa curva de crescimento contínuo (Vianna, 1991a).

A chegada dos anos 80 e 90 marcam a mudança brusca de uma era de crescimento e abundância para outra cuja única constante seria, como sintetizou Galbraith, a incerteza. No mundo já não cabia mais o modelo da previsibilidade pendular. A "equação" revelava-se caótica, não-linear. Em "Megatendências" (1982), Naisbitt e Aburdene já apontavam algumas das principais transformações globais que ocorreriam nessa década: a evolução de uma sociedade industrial para a sociedade da informação e da high tech; a globalização da economia; a visão de longo prazo substituindo a de curto prazo; os movimentos de descentralização em diversas esferas (social, política, econômica etc); a substituição de estruturas hierárquicas das organizações por estruturas mais flexíveis e em rede; a acentuação do individualismo. A estas, podemos acrescentar outras mais específicas: o fim da Guerra Fria e a fragmentação do bloco soviético, dando origem a uma nova ordem mundial multipolar; os problemas ambientais e a eclosão dos movimentos pró-ecológicos, legitimados pela crescente atuação das ONGs; a ameaça da AIDS; a superpopulação; as desigualdades sociais, a pobreza e o desemprego; a inflação e recessão mundiais; o proclamado "fim" das ideologias (como se o neoliberalismo não fosse uma ...); a ascensão e crise dos "Tigres Asiáticos"; a escalada da violência e militarismo (conflitos locais); a corrupção, o terrorismo e o crime organizado; as transformações radicais dos papéis do homem e da mulher, das relações de trabalho e da estrutura da família; a crescente demanda por debates éticos e por uma nova espiritualidade (movimentos new age). Evidentemente a lista não se esgota aí, e tudo indica que as mudanças por vir serão ainda mais acentuadas. De uma forma bastante sintética estão relacionadas abaixo algumas das principais tendências que contribuirão para configurar prováveis cenários globais futuros (a categorização tem fins meramente didáticos):

 

Esfera Técnico-Científica:

• Aceleração do desenvolvimento técnico-científico;

• Integração das disciplinas: inter, multi e transdisciplinaridade versus super-especialismo;

• Aprofundamento das questões éticas relativas aos conhecimentos técnico-científicos;

• Disseminação crescente das informações (avalanche informacional);

• Barateamento e disseminação cada vez maior das tecnologias;

• Portabilidade crescente da informação e das tecnologias;

• Proliferação das tecnologias "verdes". Esfera política e econômica:

• Os fatores econômicos suplantam os político-ideológicos;

• Diminuição do papel do Estado;

• Globalização da economia acelerada pelo progresso das telecomunicações;

• Formação de megablocos econômicos;

• Aumento dos desequilíbrios Norte-Sul (migrações e conflitos étnicos/religiosos);

• A questão do desemprego e do subemprego, a mudança da natureza e nas relações de trabalho e o papel das organizações do século 21 (home-offices, organizações virtuais etc);

• Aumento das desigualdades sociais, como conseqüência do projeto neoliberal que promove a globalização econômica destituída de projetos sociais (neo-humanismo social versus neobarbarismo tecnológico).

 

Esfera Sócio-Cultural e Demográfica:

• Mudança no perfil populacional: aumento da expectativa de vida e envelhecimento da população;

• Mudança de paradigmas: papéis do homem, da mulher e do idoso, sexualidade e família;

• Ascensão da mulher nas lideranças e mudança no perfil do trabalho e das organizações;

• Mudança nos métodos de ensino e aprendizagem;

• Florescimento global da artes, diversidade cultural e indústria do lazer;

• Empowerment do indivíduo;

• Reorganização dos movimentos sociais frente ao aumento das desigualdades sociais (papel das ONGs);

• Busca de nova religiosidade e espiritualidades pós-modernas.

 

Esfera Ambiental:

• Possibilidade de graves rupturas ecológicas na biosfera em um horizonte de 50 anos, caso não sejam tomadas medidas mais eficazes a curto e médio prazos (5 a 25 anos).

Parafraseando Isaac Asimov, é fácil entender porque a ciência da Futurologia não existia no século passado. O homem nascia, crescia e morria rodeado pelo mesmo ambiente, mantendo os mesmos comportamentos, relações e papéis sociais. Hoje não é assim. Uma década vale por uma vida. As incertezas de nossa época deixam organizações em um clima permanente de insegurança. Insegurança que, por sua vez, traz inevitáveis prejuízos à produtividade e saúde dos seus integrantes, ao desdobrar-se em desorientação, sobrecarga emocional, medo e estresse.

Estamos em uma época de mudança de paradigmas, de esgotamento do modelo tradicional (mecanicista e simplificador) e construção do modelo futuro. Se entendermos a complexidade como aquilo que não pode ser reduzido a um conjunto de leis ou idéias simples, aquilo que é indissociável da incerteza, da convivência ambígua e retrocausal entre unidade e multiplicidade, ordem e desordem, localidade e globalidade, poderemos dizer que, muito mais que em uma era de incertezas, vivemos em uma Era da Complexidade. Muito mais do que mero jogo de palavras, se bem compreendida e introjetada, essa mudança de enfoque nos permitirá visualizar novas perspectivas e identificar soluções criativas para problemas e paradoxos que se antepõe ao desenvolvimento sustentável das organizações.

Adotar a perspectiva da complexidade, no sentido conferido por Morin (1991), não implica na eliminação da simplicidade, da causalidade linear, da lógica formal. Implica, sim, em ultrapassá-las, reconhecendo que representam apenas um domínio restrito do real, dentro de um contínuo que vai do fenômeno mais simples até a hipercomplexidade. Não se iguala, também, à completude, na medida em que a incerteza, o erro, a irregularidade, a imprecisão lhe são inerentes. Comporta as noções de multicausalidade, intercausalidade e retrocausalidade. Vê nas dicotomias unidade-multiplicidade, certeza-incerteza, ordem-desordem, localidade-globalidade, não uma contradição excludente, mas uma integração dialógica e criadora. Na natureza, afirma Morin, ordem e desordem colaboram juntas, produzindo organismos complexos. Um ser vivo não mantém seu equilíbrio apesar da degradação e morte de seus componentes, mas por meio desta. A irregularidade na transmissão genética, e não a perfeição desta, é o que possibilita a sobrevivência da espécies. Na sociedade, o mesmo ocorre com as organizações complexas. Autonomia e auto-eco-organização, ao invés de determinação; integração e interação sujeito-objeto, ao invés de separação entre os mesmos; lógica nebulosa (fuzzy logic), ao invés da lógica formal; visão de sistemas abertos, ao invés de sistemas fechados e black-boxes; equilíbrio instável, flexível e dinâmico, ao invés de equilíbrio rígido e estático. Estes são os conceitos-chave do paradigma da complexidade. Nas últimas décadas, a Teoria do Caos, a Complexidade, a abordagem holística (a séria), a Teoria de Sistemas, os Sistemas Dinâmicos, o Modelo Holográfico, a Lógica Nebulosa, vêm provocando uma revolução silenciosa dentro das ciências hard, da Física à Biologia. As "ciências humanas" também começam a ser influenciadas por essa nova visão mais ecológica e integradora, e com elas, (novamente) a reboque, a administração e a psicologia organizacional.

Buscando se desenvolver, adaptar e, por vezes, sobreviver a aos cenários instáveis e de rápidas transformações, as organizações adotaram uma série de modelos, estratégias e táticas gerenciais —; alguns novos, outros nem tanto — a que se denominou genericamente de "reestruturação competitiva"5. Assistimos à multiplicação de programas de planejamento estratégico, reengenharia, qualidade total, capacitação profissional, entre outros. Proliferaram também neologismos de todo o tipo para acomodar conceitos, muitos dos quais representavam reedições de idéias preexistentes — energização, downsizing, empowerment, learning organization, intrapreuner, coaching etc. Os "gurus" da administração, cada vez mais convictos, das formas mais mirabolantes — e com mais dinheiro no bolso —, vêm denunciando o esgotamento do paradigma mecanicista-simplificador e anunciando a chegada de um novo paradigma. Adotando um discurso considerado por alguns ufanista e, por outros, visionário, apontam para as principais diferenças entre esses enfoques, as quais sintetizamos no quadro seguinte:

 

 

Vale repetir: muitas das proclamadas novidades são apenas reedições de idéias já existentes. Analisadas em conjunto porém, constituem aspectos de uma nova abordagem mais humanizada; sistêmica; integradora e, ao mesmo tempo, descentralizadora; que valoriza a criatividade; a autonomia, auto-regulação e auto-aprendizado; a diversidade e multiplicidade; os aspectos qualitativos; a flexibilização; e que não vê as incertezas como algo a ser eliminado, mas parte inerente ao meta-sistema a ser administrada. Não se encaixam mais, portanto, dentro da perspectiva mecanicista e simplificadora. O que são os conceitos de Qualidade Total e Qualidade Social senão princípios holográficos em que o todo deve refletir a parte e a parte, por sua vez, refletir o todo? Verificam-se, assim, muitos pontos em comum não com um "paradigma holístico", como alguns o caracterizam 6, mas com a perspectiva da complexidade, como aqui se sugere.

 

A Reestruturação Competitiva e os Futuros Desafios ao Psicólogo das Organizações no Brasil

Apesar da bela retórica dos consultores, e mesmo contando com lideranças bem intencionadas, verifica-se na prática que a maioria dos programas de reestruturação competitiva apresentam resultados medíocres, isso quando não pioram a situação das empresas. E comum, por exemplo, o caso da empresa que tem uma queda brusca de produtividade após passar por um processo de downsizing ou de fusão com outra. Isso porque os impactos psicossociais dessas mudanças de modo geral não são devidamente considerados, o que acaba dificultando a administração de todo o processo de mudança organizacional subsequente. Uma pesquisa publicada7 pela Price Waterhouse realizada em 1994 entre as 1.000 maiores empresas do Brasil ilustra claramente esse fato. Revelou que dentre os principais entraves para implantação de programas de qualidade e produtividade nessas organizações estavam (em ordem decrescente de importância): a resistência dos níveis intermediários de supervisão e gerência; a falta de treinamento; o desconhecimento das metodologias de implementação; e o clima organizacional desfavorável. Ou seja, as principais dificuldades na implementação desses programas recaem sobre a questão das relações humanas, e não sobre os aspectos técnicos. Isso mostra que ainda prevalece a falta de compreensão sistêmica e, principalmente, de compreensão do fator humano dentro da organização. Mas, se na teoria se enfatiza tanto que "o ser humano é o maior ativo da organização", "o capital intelectual, as pessoas, são o mais importante" e tantos outros jargões repetidos continuamente, por que isso ainda ocorre? Será esse discurso sobre "novos paradigmas" apenas perfumaria? Será apenas retórica vazia?

Em primeiro lugar, cabe dizer que muitas lideranças empresariais ainda desconhecem os cenários em transformação ou, ainda, não internalizaram as novas exigências da competitividade global. Ainda não se deram conta da amplitude das mudanças em curso. Além disso, como Thomas Kuhn já afirmava em seu livro "A Estrutura das Revoluções Científicas", um novo paradigma não se estabelece da noite para o dia. Há uma resistência natural frente àquilo que é novo e desconhecido. É preciso de tempo para o revezamento de gerações. Isso fica patente quando recordamos que a maioria dos líderes empresariais encontra-se hoje na faixa dos 40 a 50 anos de idade, e, portanto, toda a sua formação pessoal e acadêmica ocorreu impregnada dos modos de pensar e agir do antigo paradigma (Vianna, 1991 b). E, mesmo vencida essa resistência, existe a própria dificuldade do indivíduo de se auto-restruturar cognitiva e emocionalmente possibilitando o aprendizado e, principalmente, a criação de conceitos completamente novos. Existe ainda a dificuldade nada desprezível de disseminar a mudança através dos vários escalões da empresa. E essa disseminação não pode ser feita de maneira ingênua, artificial ou impositiva. Precisa ser negociada, e, para isso, deverá considerar o clima e a cultura da organização, os anseios e expectativas de seus integrantes.

Os psicólogos, profissionais que dentro das organizações supostamente estariam melhor preparados para atuar como facilitadores nesses processos de mudança de cultura e reestruturação organizacional, como vimos, no Brasil ainda não conquistaram um espaço que lhes seria de direito. Não raro este espaço é ocupado por outros profissionais — engenheiros, economistas ou administradores — cuja capacitação técnica é geralmente inadequada para lidar com aspectos de natureza psicossocial (Batitucci, 1978; Zanelli, 1994). A questão é: será que o nosso psicólogo organizacional realmente está melhor preparado para lidar com esse universo?

As evidências mostram que não. Conforme Zanelli (1994), "Lidar com mudanças ao nível micro, em sintonia com os fatores macro, tem-se tornado uma solicitação que poucos psicólogos estão preparados para atender" (p.125). A conscientização e entendimento dos níveis mais amplos — o estratégico e o paradigmático — torna-se cada vez mais fundamental ao psicólogo das organizações, na medida em que ele é chamado para atuar não mais apenas em atividades de áreas tradicionais com as quais estava acostumado a trabalhar — tipicamente áreas tático-operacionais como recrutamento, seleção, aplicação de testes, treinamento, avaliação de desempenho etc. —, mas também em áreas estratégicas que incluem: avaliação de clima e cultura; administração de processos de mudança e desenvolvimento organizacional; participação no planejamento estratégico e na elaboração de políticas; consultorias internas e resolução de conflitos organizacionais em todos os níveis; atuação junto à área de negócios; e assessoria direta à presidência (Zanelli, 1994). Além disso, nos últimos anos, áreas novas ou menos tradicionais ligadas à Psicologia Organizacional e do Trabalho têm proliferado dentro e fora das empresas: elaboração de programas de qualidade de vida dos funcionários; planejamento de carreira, (re)orientação profissional e programas de aposentadoria; ergonomia e segurança no trabalho; atuação junto a sindicatos; consultorias externas e terceirizações; atuação em meio a instituições de ensino8 e cooperativas9.

Conforme sintetiza Zanelli (1994),

"as implicações para o preparo de psicólogos organizacionais gravitarão em torno da necessidade de os psicólogos comunicarem-se com não-psicólogos, de falar a linguagem dos negócios, do entendimento da diversidade organizacional e individual, da abertura para soluções interdisciplinares e da descoberta de modos para administrar a própria obsolescência." (p.147)

Todas essas demandas do mercado contrastam enormemente com as carências crônicas da formação do psicólogo organizacional (Batitucci, 1978; Castilho, 1980; Zanelli, 1994), a começar pela falta de reconhecimento e valorização da área pela própria universidade. Historicamente, a Psicologia Organizacional e do Trabalho foi pouco a pouco se distanciando dos saberes da Psicologia Clínica e Geral/Experimental, e assumindo cada vez mais um caráter multidisciplinar, molar, sistêmico, idiossincrático e contextual (contrapondo-se ao saber científico que pretende-se universal), o que lhe conferiu certo desprestígio frente às vertentes mais tradicionais da academia (leia-se: ainda "presas" dentro do paradigma da simplicidade) (Roe, 1996). Dentro da realidade brasileira, como vimos anteriormente, o estabelecimento da Psicologia Organizacional ocorreu de maneira um tanto distanciada dos meios acadêmicos. Daí não surpreende a escassez de trabalhos académicos e estudos científicos na área, apontada por diversos autores. Tampouco surpreende a falta de maior número de disciplinas específicas durante o curso de graduação, e a baixa qualidade daquelas que são oferecidas10. Somando-se a isso, o fato de a Psicologia Organizacional ser tradicionalmente uma opção de carreira bem menos procurada do que a Clínica e vista ainda com preconceito por parte da própria comunidade (Batitucci, 1978; Zanelli, 1994). Decorrência ou não, verifica-se a falta de estágios oferecidos nos Serviços de Psicologia Aplicada (SPAs) dentro da área organizacional e do trabalho11, e grande parte dos estágios que são oferecidos pelas empresas limitam-se a atividades operacionais encerradas dentro dos Departamentos de Pessoal. Por último, nota-se a escassez de cursos de pós-graduação na área (em relação a outros campos da Psicologia), cabendo às Escolas de Administração preencherem esse vazio.

Cada vez mais, em uma era na qual se "cantam aos quatro ventos" a supremacia da informação, do conhecimento, a formação educacional torna-se fator crítico de sucesso. Coloca-se, assim, à nossa frente — mais uma vez — o desafio urgente de se repensar a formação desse psicólogo, buscando a integração entre teoria e prática. Urge aplicarmos em nossa própria comunidade os princípios e estratégias de mudança organizacional que tanto apreciamos e de que tanto falamos. Para isso é necessário promovermos uma grande discussão a respeito dos rumos da profissão e, mais do que levantar problemas, criar uma agenda para as próximas décadas apontando novas direções. Nessa agenda deverão ser necessariamente discutidas as seguintes propostas (evidentemente não as únicas):

• Reformulação dos currículos dos cursos de Psicologia, com a inclusão de disciplinas que ampliem o leque de possibilidades de atuação do psicólogo dentro das organizações, e lhe possibilitem desenvolver habilidades relacionais, de liderança e mobilização de equipes, negociação, resolução de conflitos, endomarketing do RH etc., e lhe possibilitem lidar com questões políticas e estratégicas mais amplas dentro das organizações;

• Estímulo às pesquisas na área (em parceria com empresas, dentro de uma postura ganha-ganha);

• Programas de incentivo à ampliação da oferta de estágio na área de Psicologia Organizacional e do Trabalho;

• Estímulo à implantação de "Empresas Júnior" de consultoria em RH, em parceria com os cursos de Administração e Engenharia de Produção;

• Estímulo à criação de "estágios internos", nas SPAs das universidades, com o incentivo a projetos que beneficiem a própria instituição12 e a comunidade;

• Promoção de eventos na área, em nível acadêmico — acessíveis aos estudantes —, com a participação de diversos profissionais inseridos no mercado; e

• Incentivo aos debates sobre a identidade do psicólogo organizacional, questões éticas e de cidadania, novos paradigmas, qualidade de vida no trabalho e a humanização das organizações.

O que mais pode ser feito? Quais as soluções práticas a curto médio e longo prazos? Pensemos juntos.

Uma última palavra. Não são as chefias, as lideranças das organizações que deveriam reconhecer nossas competências e nossa importância enquanto profissionais. Somos nós que devemos criar e conquistar esse espaço. Como sugerimos aqui brevemente, iniciando pela ampliação da nossa compreensão histórica e nossa visão de mundo. Deixando de "pensar pequeno", de maneira fragmentária, à moda "antiga". Enfim, exercitando nosso pensar estratégico, complexo, sistêmico. E, assim, repensar nossas ações e inovar.

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência
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Agradeço à Profa. Virgínia Souza Drummond, da UFRJ, à Maria Celeste Miranda Reis, do ClEE-RJ e a Adriana Cristina de O. Silva pelas sugestões e pelo seu apoio, sem os quais não seria possível ter concluído este trabalho.

1 O desequilíbrio dos ecossistemas, as desigualdades sociais e a crise financeira internacional, constituem, em sentido amplo, algumas das conseqüências dessa visão de racionalidade obtusa e a - ética que prega do desenvolvimento a todo o custo.
2 O Behaviorismo radical representa o exemplo mais claro da influência dessa visão dentro da Psicologia.
3 Termo originário do latim, Tripalium, que, na antiguidade, era um tipo de instrumento usado para tortura.
4 Já na Grécia antiga, o trabalho ligado à sobrevivência, como o trabalho doméstico e a agricultura, era visto como um castigo imposto aos homems, e, portanto, reservado apenas aos escravos e desafortunados. Como bem sintetiza o psicólogo Luís A. Stevanato na sua alusão ao mito de Prometeu-. "Com o roubo do fogo sagrado, que é uma metáfora da emancipação da humanidade do seu estado primitivo, os homens teriam perdido a sua ingenuidade, daí não merecerem mais a generosa atenção dos deuses que os mantinham vivos e, por isso, serem amaldiçoados com diversas pragas, entre as quais o trabalho. Para sobreviver, deveriam trabalhar duro todos os dias. O trabalho era para os homens o que a águia foi para Prometeu: uma terrível maldição."(Stevanato, 1995). Na Europa medieval, dentro da perspectiva judaico-cristã, o trabalho continua a ser visto como castigo. Somente com o Renascimento e com a Reforma Protestante, o trabalho adquire uma nova dimensão, a da dignidade e virtude. É no seio da ética protestante, fundamentada no campo de tensão entre essas duas visões, que o Capitalismo irá surgir e se desenvolver.
5 Assim como a questão da globalização, tema da moda, em certo sentido a reestruturação competitiva sempre existiu (a exemplo das disputas entre as potências mercantis e coloniais, a reestruturação das grandes corporações de outrora etc). Igualmente, o que a torna tão evidente e crítica é a velocidade com que é empreendida.
6 Considero o termo holístico por demais "contaminado" de acepções imprecisas, que por vezes incorporam visões superficiais e mistificadoras da realidade, ou que incluem em uma espécie de "saco de gato", várias abordagens diferentes, sem perfazer uma integração ou articulação entre as mesmas. Neste sentido, a noção de complexidade é bastante mais rica, melhor articulada e, portanto, mais adequada para caracterizar o paradigma emergente.
7 Revista Máquinas e Metais, São Paulo, fev., 1995.
8 Apesar de especialistas das mais diversas áreas apontarem a comunicabilidade, a criatividade, a flexibilidade, a liderança, a multiespecialidade, o empreendedorismo, o trabalho em equipe e a postura ética e cidadã como diferenciais competitivos do profissional do século 21, poucas são as instituições de ensino que realmente investem no desenvolvimento dessas características/ capacidades em seus alunos. Reside aí um novo e precioso campo de inserção da Psicologia Organizacional juntamente com a Psicologia Escolar.
9 Apesar de se mostrar uma forte tendência para os próximos anos, o cooperativismo não tem recebido suficiente atenção por parte dos psicólogos organizacionais e do trabalho. As cooperativas são organizações com características e problemáticas peculiares, diferentes das empresas e demais corporações, e que, portanto, oferecem múltiplas e inexploradas possibilidades de atuação por parte desses psicólogos.
10 Geralmente limitadas a uma visão tradicional, anacrônica de caráter uilitarista/instrumental/ operacional que supervaloriza a aplicação de testes e, quando muito, oferece noções de dinâmica de grupos. Muitos dos professores que ministram essas disciplinas nem chegaram a ter experiência na área.
11 Enquanto inúmeros cursos como os de Comunicação, Administração, Economia e Engenharia montam programas de incentivo à criação de "Empresas Júnior", consultorias disponíveis à comunidade, entre outras atividades de extensão universitária.
12 A exemplo da "Semana de Ambientação dos Novos Alunos de Psicologia" e "Programa de Iniciação aos Estágios" (IP/DPA/ UFRJ); "Projeto Psi-U" (IP/VFRJ); "Projeto Calouro Humano" (UFF); e tantos outros, onde se possa promover a mudança organizacional planejada e negociada com a comunidade.