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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.19 n.2 Brasília  1999

 

Creches com qualidade para a educação e o desenvolvimento integral da criança pequena

 

 

Katia S. Amorim; Maria Clotilde Rossetti - Ferreira

FFCL de Ribeirão Preto - USP Departamento de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 

Ao longo das últimas décadas, temos presenciado rápidas e intensas transformações, em nossa sociedade, com importantes mudanças nas funções e relações dentro da família. Como resultado, temos visto o crescente ingresso da mulher junto ao mercado de trabalho e sua consequente necessidade de compartilhar a educação dos filhos. Uma alternativa de compartilhamento que vem sendo bastante utilizada envolve instituições do tipo creche. Trataremos aqui da história da creche no país, dos vários discursos que a marcaram e dos vestígios desses nas práticas dessa instituição, nos dias de hoje. Apontaremos, também, para as novas concepções de infância, assim como, para as mudanças nas políticas públicas ligadas à educação infantil e, ainda, para as novas funções, objetivos e forma de se compreender o papel da creche. Finalmente, discutiremos a importância dos próximos passos a serem dados, de modo a se ter cada vez mais equipamentos que de fato privilegiem o desenvolvimento integral da criança rumo à cidadania.

Nas últimas décadas, o Brasil, assim como o conjunto da sociedade ocidental capitalista, tem sofrido profundas transformações sócio - econômicas e culturais, as quais têm provocado uma crescente incorporação da mulher no mercado de trabalho. Esse fato decorre, fundamentalmente, da necessidade da mulher contribuir para o sustento financeiro da família, além da existência de discursos sociais, que veiculam valores universalistas, igualitários e de direito de realização profissional pela mulher (Vaitsman, 1994). Além disso, o sistema econômico passou a consumir força de trabalho independentemente do sexo do trabalhador, o que permitiu e até mesmo promoveu a inclusão da mulher no mercado de trabalho (Durham, 1983).

Paralela e intrinsecamente ligadas a essas transformações, têm ocorrido alterações na estrutura familiar, com uma diminuição no número de seus elementos, um maior distanciamento físico e psicológico entre os membros da família extensa, além de um crescente número de famílias encabeçadas por um único elemento (pai/mãe solteiro ou pais separados) (Oliveira e Rossetti-Ferreira, 1986).

Assim, a saída da mulher/mãe para trabalhar fora de casa, associada a uma menor rede de apoio, tem impelido a família a procurar soluções alternativas e complementares ao cuidado e educação dos filhos, tanto no ambiente doméstico (avós, empregadas, babás), como em instituições (escolinhas, berçários e creches).

Entretanto, a forma de encarar o cuidado de bebês em ambientes coletivos é bastante controversa, tanto para o leigo; como para os governos, na elaboração das políticas públicas relacionadas à educação de crianças de 0-6 anos; como também para os profissionais (psicólogos, pedagogos, educadores) e pesquisadores (psicologia, medicina e educação).

No meio científico, a família tem sido considerada a partir de duas grandes perspectivas: 1) como uma entidade natural e universal (naturalização esta que inclui a divisão sexual dos papéis, cabendo à mulher os papéis derivados de suas funções biológicas) (Durham, 1983); ou, 2) como uma instituição culturalmente construída, podendo variar em sua estrutura, composição e relações, a depender de um conjunto de fatores sócio - econômicos.

Segmentos que entendem a família enquanto uma instituição natural têm atribuído um caráter perverso ao fato da mulher não assumir integralmente os cuidados dos filhos, pelo menos nos primeiros anos de vida da criança. Segundo eles, essa situação resulta em riscos sobre o desenvolvimento do bebê, especialmente no que se refere aos aspectos orgânico, social e emocional (debate interessante sobre o tema encontra-se em Fein& Fox, 1990).

Por sua vez, elementos do segundo grupo enxergam vários contextos como possíveis ao desenvolvimento da criança e propõem, como medida mais importante, a promoção de qualidade em creches e outras formas de educação coletiva (CRESAS, 1991; Fiorani e Musatti, 1986; Mantovani e Terzi, 1987; Pramling e Lindhal, 1992; Oliveira Rossetti-Ferreira, 1993).

Por outro lado, a história da atuação da creche, ao longo de um século, no Brasil, resultou na estigmatização desta instituição, dentro de nossa sociedade (de forma semelhante ao que ocorreu em outros países).

Observamos que, no final do século passado, a creche tinha um papel mais assistencial, de atendimento a filhos de mães solteiras, as quais não tinham condições de ficar com a guarda dos filhos. Aos poucos, essa característica foi se alterando, principalmente a partir da imigração de europeus ao país, os quais, dentre suas reivindicações trabalhistas, requeriam creches para os filhos de mulheres trabalhadoras casadas (Oliveira e Rossetti-Ferreira, 1986).

Ao longo de 50 anos, a partir do governo Vargas, gradativamente foi-se alterando a política social no país, regulamentando-se as relações patrão / empregado e os direitos trabalhistas, dentre os quais incluía-se a possibilidade das mães terem um local (berçário) onde deixarem seus filhos, durante a fase de amamentação. Só a partir das décadas de 70-80, os governos passaram a construir e administrar creches para os filhos de famílias operárias. Esta ação, entretanto, aconteceu de maneira muito irregular e esteve vinculada a interesses políticos eleitoreiros (Vieira, 1988 e Oliveira e Rossetti-Ferreira, 1986).

Observa-se ainda que, no Brasil, ao longo de toda a história da atenção à criança pequena e, particularmente, em creches, o tipo de atendimento prestado foi regido por diferentes discursos e saberes. Na década de 40, os cuidados eram extremamente vinculados à esfera médica (sanitaristas e higienistas). Seu objetivo era nutrir as crianças e promover aspectos ligados à saúde das mesmas, já que aquela instituição se destinava basicamente às camadas muito pobres da população. Ao mesmo tempo, esta atuação procurava evitar que a creche se transformasse em um foco de doenças (Vieira, 1988).

Nas décadas de 60-70, a creche passou a ser encarada como um local de promoção de educação compensatória, já que se considerava que determinadas famílias eram incapazes de educar a criança (Oliveira e Rossetti-Ferreira, 1986). Só mais recentemente, a creche passou a ser concebida como uma instituição que atua em parceria com os pais e compartilha com eles a responsabilidade da educação de crianças, buscando-se alcançar os cuidados integrais das mesmas.

Como se pode observar, nos exemplos a seguir, a maioria destes discursos foram por demais rigorosos com a família e, principalmente, com a mãe, a qual durante parte do dia criava seu filho longe de seus cuidados diretos. Assim, em 1940, a família foi considerada "incompetente... em matéria de puericultura"; em 1944, afirmou-se que o fato da mulher trabalhar representava um ''desajustamento moral ou econômico, sintoma de uma sociedade mal organizada, onde a mulher precisa abandonara educação dos filhos para ajudar no sustento da família..."; em 1955, foram criticadas as "mães tão encontradiças, absolutamente ignorantes de tudo quanto diz respeito... à maneira de criar o filho" (em Vieira, 1988). Já na década de 60 -70, quando se destacava um caráter de "educação compensatória", a creche exercia uma ação suplementar à da família, já que a criança era considerada carente culturalmente (Oliveira e Rossetti-Ferreira, 1986). Mesmo nas décadas de 80-90, quando a creche se caracteriza por uma perspectiva de cuidado mais integral da criança, através de cuidados realizados por profissionais, o sentimento de competência das famílias é ferido, como se houvesse uma "desqualificação do cuidado / educação domésticos quando comparados ao profissional" (Rosemberg, 1995).

Neste final da década de 90, após um século de existência de instituições do tipo creche e apesar do conjunto de transformações ocorridas nas mesmas, ainda frequentemente a creche é vista como uma instituição pouco confiável ao cuidado da criança pequena. Com relação a isso vários motivos têm sido destacados: o ambiente de cuidados coletivos apresenta conflitos com valores culturais que valorizam a individualidade e a identidade do sujeito; a relação adulto / criança é diversa da que se encontra no ambiente familiar; dada a relação adulto / criança, a outra criança é o parceiro mais disponível à interação, considerado, entretanto, incompetente socialmente; e a área médica tem enfatizado o maior risco de adoecimento da criança nesse ambiente. Além disso, a creche tem, ainda, uma indefinição social e educacional quanto ao seu desempenho; genericamente, há uma restrita ou ausente prática de formação do profissional que cuida da criança; e, as condições de trabalho das profissionais de creche são precárias, de baixa qualificação, levando a uma alta rotatividade das funcionárias e educadoras nestes serviços (Rosemberg, 1995). Vários destes problemas têm sido objeto de discussão e transformação nos últimos anos, muito em função das recentes conquistas obtidas pela LDB (como será discutido adiante).

Dessa forma, observa-se que, dentro da nossa sociedade, em muitos grupos, ainda predomina a idéia de que, ao longo dos três primeiros anos de vida, é mais saudável a mãe cuidar dos filhos, no ambiente doméstico. E, também, de que a creche é um equipamento precário de cuidados de crianças, essencialmente ligado à pobreza.

Para as famílias que se utilizam da creche, a dominância destas concepções tem resultado em profundas contradições, além de despertar intensos sentimentos de angústia e culpa, principalmente na mãe. Elas revelam, também, terem fortes influências sobre os elementos que trabalham na creche, fazendo com que as relações com a família sejam complexas e ambivalentes. Todos esses elementos mostram-se refletir sobre a qualidade dos cuidados oferecidos e as relações a serem estabelecidas com a criança, com repercussões sobre seu comportamento (Amorim, 1997; Rossetti-Ferreira e col., 1996 e 1997).

Observa-se, entretanto, que a atuação da creche caminha de forma dinâmica e, na década de 90, têm sido identificados, em vários municípios, o aumento de experiências inovadoras, impulsionadas por novas concepções de infância e de atendimento em instituições coletivas. Além disso, as instituições creche têm procurado recursos de base multidisciplinar (e, têm buscado fundamentação teórica dentro da Psicologia do Desenvolvimento, da Educação, da Antropologia e da Linguística) (Rosemberg, 1995), com o intuito de trilhar em direção ao cuidado integral da criança. Muitos centros, ainda, têm procurado construir as relações creche - família de modo mais positivo, em torno de uma parceria, de uma divisão de trabalho e de responsabilidade entre os dois segmentos.

Especificamente no Brasil, observa-se que, gradualmente, as políticas públicas com relação à criança em creche vêm sofrendo profundas modificações. Como resultado de movimentos reivindicatórios por contextos coletivos para a criança pequena, definiu-se na Constituição Nacional (1988), que o atendimento às crianças de 0-6 anos fosse incluído no capítulo da Educação, sendo definido como um direito da criança, um dever do Estado e uma opção da família (artigo 208). A Constituição definiu, ainda, um lugar de prioridade nacional da criança e do adolescente, definição esta que resultou na regulamentação do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), que também descreve a educação infantil como um dever do Estado (artigo 54). Desse modo, a criação do filho pequeno vem se desprendendo, pelo menos parcialmente, do espaço doméstico e da exclusiva tutela familiar, sem que a família seja considerada "anomicamente insuficiente ou portadora de alguma patologia social" (Rosemberg, 1995). E, ainda, o ECA estabeleceu que a criança é cidadã, devendo ser respeitada enquanto ser em desenvolvimento, com necessidades e caracterísitcas específicas, além de ser detentora de uma série de direitos: direito ao afeto, direito ao brincar e ao querer, direito de conhecer e sonhar, direito de ser criança. Em 1996, com a promulgação da LDB (Leis de Diretrizes e Bases), definiu-se que a educação infantil "tem como finalidade o desenvolvimento integral das crianças até 6 anos de idade, em seu aspecto físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade". Desse modo, com a LDB, os direitos da criança à educação, assegurados na Constituição e no ECA, transformaram-se em diretrizes e normas. A lei passa a reconhecer, então, que creche não é apenas uma instituição para a mãe deixar a criança enquanto trabalha, mas é um centro que participa e compartilha com a família e a comunidade do desenvolvimento integral e da educação de crianças (Soares et ai., em Rossetti-Ferreira et al.).

Finalmente, o COEDI - MEC (Coordenadoria da Educação Infantil) vem elaborando um documento oficial, Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, que contém: concepções e princípios sobre desenvolvimento e educação infantil; discussões sobre o brincar, a identidade e o meio como determinantes das interações humanas; exigências de formação inicial e continuada dos profissionais de creche; e, indicações que procuram assegurar a construção de uma proposta pedagógica adequada à faixa etária. O objetivo é de que este documento venha a servir como base para a produção de programações pedagógicas, planejamentos e avaliações em instituições e redes de creches dos municípios.

Outras questões de grande relevância para a educação infantil têm sido objeto de debates, tanto na LDB, como nos Referenciais Curriculares. Uma delas trata-se da necessidade de se definir o perfil do profissional de educação infantil e, também, da regulamentação de tópicos quanto à sua formação inicial e continuada. Outras envolvem a discussão sobre a definição de critérios de qualidade destas instituições, modos de supervisão destes critérios e, ainda, sobre formas de captação e aplicação de recursos.

Por fim, as novas políticas públicas relacionadas à educação infantil têm destacado o lugar de ações que buscam garantir, de modo articulado e em consonância com os preceitos internacionais, a cidadania de todos os envolvidos neste processo: a criança pequena, seus pais e os profissionais da educação. E, também, têm marcado que os programas relacionados às crianças não devem encará-las como objetos de ação, mas como sujeitos, com direito à participação, possibilitando a concretização dos Direitos Humanos (Soares et al., em Rossetti-Ferreira et al.).

Porém, a educação infantil brasileira tem, ainda, um longo caminho a trilhar no sentido de implementar as medidas e garantir as conquistas. Um importante passo será o processo de credenciamento e regulamentação das instituições infantis, junto aos Conselhos Municipais e/ou Estaduais de Educação, o que possibilitará traçar um quadro da realidade brasileira nessa área. Este processo, no entanto, vai requerer um ativo esforço e co-participação de todos, no sentido de concretizar as propostas que levarão a um atendimento de qualidade das crianças nos primeiros seis anos de vida, fazendo com que a creche e a pré-escola cumpram sua função de cuidar de crianças pequenas, educando-as para o exercício da cidadania e da autonomia. (FAPESP e CNPq)

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência
Katia S. Amorim & Maria Clotilde Rossetti - Ferreira
FFCL de Riberão Preto - USP- Departamento de Psicologia
Av. Bandeirantes, 3900-14040-000-Riberão preto/SP
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