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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.19 n.3 Brasília  1999

 

Mecanismos do poder corruptor

 

 

Ari Pedro Balieiro Junior

Psicólogo Clínico, Professor da Universidade Franca (SP) e Mestrando em Lingüística

Endereço para correspondência

 

 

A passagem por um posto de poder expõe a pessoa a condições, intrínsecas ao exercício deste poder, que provocam modificações, em alguns casos muito profundamente. É por isso que se diz que "o poder corrompe". A análise destas condições e das modificações por elas provocadas pode iluminar como o poder corrompe2.

Em 1994 fui chamado a participar do Governo Municipal de Franca - SP. Inicialmente para efetuar algumas auditorias que permitiriam ao Prefeito3 desemperrar certos procedimentos que prejudicavam o cumprimento do programa de governo. Entre os resultados das auditorias apresentadas havia um diagnóstico sobre as condições de admissão, qualificação e desempenho do quadro funcional da Prefeitura que propunha alterações substanciais no modelo vigente. Fui então encarregado pelo Prefeito de implementar as alterações propostas. Durante a implementação fui sendo paulatinamente promovido, culminando no convite para substituir o então Secretário de Administração, ao qual eu era subordinado, e que, ao pedir exoneração, indicou-me como substituto, especialmente pela possibilidade de ampliar o trabalho de reorganização do sistema de Recursos Humanos que iniciáramos.

Assim que me encontrei na posição de Secretário da Administração, posto que enfeixa uma grande quantidade de poder naquela estrutura organizacional, comecei a repetir comigo mesmo a útil advertência ética: "o poder corrompe". Oriundo da iniciativa privada, comecei a trabalhar achando que já possuía um bom entendimento dos processos e estruturas envolvidos no poder. Ledo engano. Embora tenha sempre conseguido, a duras penas, é verdade, uma certa compreensão do que acontecia ao meu redor, via-me constantemente às cegas, girando tolamente como um cão atrás do próprio rabo. Este ensaio é uma busca de entender como o poder corrompe. Buscarei decifrar alguns dos mecanismos que nos levam a cair nas tentações corruptoras do poder.

 

A ilusão do Poder ilimitado

Quando ocupamos o posto de poder, somos levados a crer, num sentido grosseiramente material, que estamos realmente exercendo algum poder. Ordenamos que as paredes sejam pintadas, e elas o são. E, no entanto, um poder ilusório, e que parece se estender às pessoas, afinal são elas que pintam, "obedecendo nossas ordens". Nunca o fazem, porém, com a cor ou com a qualidade que queríamos ou esperávamos, nem tornam-se, por terem obedecido nossas ordens, extensões de nossa vontade. Ainda assim custa-nos crer que há limites para este poder, embora eles existam.Três são os tipos de limite que pude perceber: aqueles que chamarei estruturais, e se originam das condições próprias da forma que assume a organização em que se localiza o posto de poder, aqueles que chamarei extrapessoais, que resultam da relação desta estrutura com as condições intrapsíquicas da pessoa que ocupa tal posto, e aqueles que chamarei pessoais, e se originam dentro da própria pessoa. Examinemos alguns destes limites.

 

Limites Estruturais

Um tipo de limite com que nos defrontamos é dado, ou imposto, pela forma mesma que assume a organização do serviço público, como instância de efetivo exercício do poder. O serviço público, como é organizado atualmente, é apoiado em uma estrutura fortemente hierarquizada, em que as decisões são tomadas pelos chefes. Estas chefias são, geralmente, cargos em comissão, de livre nomeação e exoneração do Chefe do Executivo. Seus ocupantes são agentes políticos, que representam a pessoa eleita pela população para governar. Esta forma de organização apresenta três frentes de exame: a estrutura hierarquizada, a estrutura burocrática e a forma de suprimento desta hierarquia (livre nomeação e exoneração dos chefes). Pretendo desdobrar este exame em etapas, buscando tratar cada uma das questões levantadas. Assim, tratarei primeiro dos problemas causados pela estrutura hierarquizada.

 

A Hierarquia

Numa hierarquia existem níveis de decisão, estratificados e organizados de forma que certos níveis estão subordinados a outros que, por sua vez, estão subordinados a outros, e assim por diante. Quanto mais níveis existam, maior será o número de subordinados e a responsabilidade decisória dos ocupantes dos níveis mais altos e, inversamente, menor será o número de subordinados e a responsabilidade decisória dos ocupantes dos níveis mais baixos. Neste tipo de arranjo é comum que os problemas subam, ou seja, decisões ou soluções que envolvam certa carga de responsabilidade, são levados para os níveis superiores, que ficarão encarregados destas decisões ou soluções. Outro efeito, complementar ao primeiro é que a culpa desce, ou seja, quando uma decisão ou solução está errada, culpa-se o subordinado.

Assim, a primeira distorção que este sistema cria é gerar um comportamento defensivo das pessoas que ocupam níveis inferiores, de tal forma que, com o tempo, elas deixam de decidir, passando a responsabilidade para seus chefes, livrando-se assim dos efeitos dos erros decisórios. Desta forma, a quantidade de problemas apresentadas ao ocupante do poder em uma hierarquia cresce proporcionalmente à quantidade de poder do cargo ocupado. A necessidade de soluções rápidas para estes problemas cria um mecanismo de corrupção quase imperceptível: a priorização dos problemas a serem resolvidos pode ficar completamente distorcida. Por um lado pode pender para as preferências pessoais4. Por outro lado pode pender para as decisões emergenciais, a síndrome do bombeiro, em que a necessidade de decisões e ações "urgentes" impede a execução de ações que visem mudanças com longo prazo de maturação5.

 

A Distorção da Responsabilidade

A maior "culpabilidade" dos subordinados, por seu turno, gera dois efeitos distintos, ambos afetando a capacidade da estrutura hierarquizada de processar informações. Um primeiro efeito é que as pessoas tendem a distorcer as informações que passam para seus superiores, para evitar conseqüências desagradáveis para si próprias. Evidentemente, quanto mais distantes, em níveis hierárquicos, estiverem a fonte emissora da informação e o receptor desta, maior será a distorção6. Um segundo efeito é que os chefes de escalão intermediário tendem a ficar no dilema do feitor, odiado pelos que comanda e desprezado pelos que o comandam. Para evitar este dilema, ou se aliam aos subordinados, o que parece ocorrer mais facilmente quanto mais baixo for o cargo que ocupa, ou se aliam aos superiores, o que parece mais comum no alto da hierarquia. Desta forma, quando chamado a exercer funções de mediação entre um escalão superior e um inferior, o ocupante do cargo de chefia distorce a comunicação entre estes níveis7. Estas distorções crescem quanto mais níveis houver entre a ordem ou decisão e a execução. Assim, não apenas as ordens ou decisões são cumpridas diferentemente do que o emissor das ordens esperava, mas também perde-se pelo caminho a capacidade de feedback ou retroação, faltando àquele emissor informações que permitam corrigir os erros de execução.

As armadilhas para o ocupante do posto de poder envolvem assumir uma de duas atitudes: ou a supercorreção, em que a pessoa passa a se preocupar com detalhes da execução das tarefas que são evidentemente responsabilidade dos escalões inferiores; ou o laissezfaire, em que a pessoa "deixa pra lá", atitude que começa passando por cima de erros pequenos e acaba relevando erros mais graves.

 

A Distorção Burocrática

O poder público tem uma organização burocrática, ou seja, exige que as ações e decisões sejam consignadas em processos, sejam formalizadas. Embora muito criticada, é uma exigência compreensível, uma vez que o exercício do poder, em uma democracia, exige que os problemas sejam tratados de forma a garantir a igualdade de todos perante a lei, ou o poder. A formalização burocrática, forçando o ocupante do poder a exercer suas decisões através de documentações organizadas e arquivadas permite que as decisões sejam objetivas ou objetivadas e possam ser revistas, garantindo, pelo menos em tese, a possibilidade de correção dos erros e das injustiças.

A ignorância das verdadeiras razões desta formalização cria dois caminhos para a corrupção: o primeiro é o burocratismo, ou seja, a formalização deixa de ser uma maneira de garantir o tratamento igual e passa a ser a principal razão de ser da existência dos processos. Neste caso, extremamente comum nos baixos escalões do poder, o meio passa a ser um fim e os objetivos iniciais de garantir a igualdade são abandonados. As pessoas deixam de ser pessoas e passam a ser meros fatos consignados em documentos.

O segundo, este mais comum nos altos escalões da hierarquia, é o exato oposto do burocratismo, ou seja, em nome da obtenção de uma decisão rápida, às vezes imperiosa, ignora-se a necessidade de formalizar as decisões para permitir a objetividade do processo. E o uso do cachimbo acaba tornando a boca torta, levando-nos ignorar a necessidade de formalização com mais freqüência do que o necessário. E muito comum encontrarmos decisões que, por não estarem adequadamente formalizadas, deveriam ser revistas e não o são, porque não se encontram suas raízes e desdobramentos; ou que não deveriam ser revistas e o são, também porque não se encontram seus fundamentos.

 

A Distorção da Nomeação

A forma constitucional de suprimento das chefias previstas na estrutura hierárquica do poder político - a nomeação discricionária -também cria uma brecha para a corrupção. Isto porque existem, a grosso modo, dois tipos de chefia naquela estrutura: um tipo de chefia eminentemente política, em que a função do chefe é garantir a efetivação das opções políticas do chefe do governo, eleito pela população; e um tipo de chefia eminentemente técnica, em que a função do chefe é garantir o correto desempenho dos trabalhos. Não há, porém, uma distinção legal entre estes dois tipos de cargos, nem exigências diferentes para a nomeação de seus ocupantes. A ausência destas exigências deixa a cargo daquele que nomeia a escolha dos ocupantes de cada um dos dois tipos, e os compromissos políticos daqueles que são eleitos exercem uma forte influência para que sejam utilizados os critérios errados, criando uma brecha para que as nomeações sejam inadequadas.

 

Limites Extrapessoais

A distorção de perspectiva

É muito fácil perdermos o senso de medida, a escala humana, quando assumimos alguma posição em que os efeitos dos nossos atos são aumentados de alguma forma. E isto acontece quando estamos em postos de alto escalão hierárquico. Isto prende-se ao fato de que ao governarmos, governamos o coletivo, e, desta forma, temos que avaliar nossos atos através de índices globais, que medem a evolução de indicadores globais, de caráter estatístico. E as estatísticas não são de escala individual, humana, mas de escala social, mascarando os casos pessoais, individuais. E começamos a tomar decisões que visam o coletivo, muitas vezes ignorando que este coletivo é formado de pessoas individuais. Num certo sentido, acabamos agindo para melhorar os índices, ao invés de agirmos para melhorar a vida das pessoas.

 

Um Acordo Inconsciente

Há ainda outro aspecto sobre a perspectiva do poder: como nossos atos são grandemente aumentados pela estrutura de efetivação das decisões que tomamos, e como estas decisões afetam um número muito grande de pessoas, acabamos nos dando conta que estamos lidando com processos que muitas vezes não somos capazes de entender, e gerando efeitos, dos nossos atos, muito maiores do que pensávamos ser capazes. Isto aumenta nossa responsabilidade, e, para podermos dar conta deste aumento, começamos a "inflar" nossa auto imagem, aquilo que pensamos de nós mesmos. Começamos a nos achar maiores do que os outros. Somos a isto guiados pela vontade de poder, mas também por um acordo inconsciente que fazemos com as pessoas que nos concedem este poder, no caso político, os eleitores.

Expliquemos melhor: a eleição é, do ponto de vista do eleitor, uma delegação a outra pessoa de poder sobre ele mesmo, eleitor. Ao ser confrontado com a escolha de alguém que vai dirigir alguns aspectos de sua vida, este eleitor, quando não se dispõe a uma reflexão consciente sobre o ato, e, às vezes, até mesmo a despeito desta reflexão, tende a regredir a um nível mais primitivo de sua mente, sendo presa mais fácil dos processos inconscientes, especialmente a projeção e a identificação citadas.

Em primeiro lugar porque pode associar, num nível inconsciente, a pessoa a quem vai delegar o poder, ou o cargo para o qual vai delegar este poder, às pessoas que já tiveram ou exerceram algum poder sobre ele, geralmente os pais. Ao projetar as figuras dos pais, o indivíduo passa, também inconscientemente, a perceber a situação como a perceberia uma criança, um ser mais primitivo. Nestas condições, o eleitor tende a projetar no candidato escolhido, não o pai como o percebe agora que é adulto, um pai humano, com qualidades e defeitos humanos, mas o pai que percebia quando criança, ou seja, o Herói arquetípico, onipotente e capaz de resolver suas angústias primitivas8. E, além disso, como os conteúdos a serem projetados são permeados pelos motivos mais primitivos, ligados à sobrevivência física ou psíquica, é formado um círculo vicioso em que a regressão facilita o aparecimento da angústia primitiva, que por sua vez reforça a regressão através da utilização dos mecanismos de defesa (projeção e introjeção) que diminuem a angústia.

Além disso, a própria existência de dirigentes ou pessoas diferentes do indivíduo comum, portadoras de algum tipo de poder sobre este último, é um dos processos mais antigos da história da formação das sociedades, aparecendo em todas e quaisquer delas. Conforme diz C. G. Jung: "(...) A figura do feiticeiro e a do chefe da tribo são significativas. (...) o indivíduo favorecido é aparentemente afastado da esfera da psique coletiva e, na medida em que consegue identificar-se com sua persona é realmente afastado. (...) Pode-se dizer que o motivo determinante deste processo é a vontade de poder. Mas com isto esquecemos que a formação do prestígio é sempre um produto do compromisso coletivo: não só deve haver alguém que deseje o prestígio, como um público que procure alguém para prestigiar. Assim sendo, seria inexato dizer que alguém adquire prestígio devido à sua vontade de poder individual; trata-se, muito mais, de uma questão coletiva. Quando a sociedade, como conjunto, necessita de uma figura que atue magicamente, serve-se da vontade de poder do possível portador do símbolo e da vontade de submissão dos demais, como veículo (...)"9. Quanto mais a pessoa se identifica com a persona que lhe é atribuída com o poder, mais se afasta do que era antes de ocupar este posto.

 

Limites Pessoais

As barreiras perceptivas de mapas e territórios

O primeiro limite pessoal com que nos defrontamos é oriundo do fato de que nossa relação com a realidade é mediada pela percepção. Esta percepção tem um caráter de representação, ou seja, de codificação, que é a transformação do objeto percebido em objetos ou elementos de outra ordem, outro código, neste caso de caráter abstrato, mental. Estes objetos mentais não são, evidentemente, a coisa percebida10. É importante ainda assinalar que este caráter representacional da percepção não se esgota na transformação dos objetos concretos do mundo externo em objetos virtuais existentes apenas na mente do percebedor, mas também exige que sejam estabelecidas regras para esta transformação que permitam organizar o processo de maneira tal que uma qualquer transformação possa ser repetida, e esta repetição gere um resultado consistente com o resultado gerado da primeira vez.

Estas regras de codificação impõem barreiras tais que não são representadas todas as características do objeto, mas apenas aquelas que o conjunto de filtros e códigos determina como relevantes. Neste sentido, a percepção é empobrecedora, na medida em que escolhe algumas coordenadas para demarcarem a representação, abandonando outras. Um mapa geográfico, por exemplo, busca representar uma realidade tridimensional em apenas duas dimensões. Este conjunto de regras, ou código, não é completamente fixo, sendo construído historicamente pelo percebedor através de processos em que incorpora novos objetos ao conjunto existente, mas também reorganiza-se à medida em que incorpora estes novos objetos. Ao conjunto destas representações e regras de representação chamaremos mapa e coordenadas.

Existem ainda restrições que nossa condição humana impõe à criação e formação deste mapa. As primeiras restrições são de caráter biológico, limites perceptivos típicos de nossa espécie, tais como o bias da audição, ou da visão, que tem limites inferiores e superiores, abaixo e acima dos quais não há percepção. Embora restritivas, seu efeito não é diretamente identificável, já que é comum a todos os seres humanos. Existem também restrições de caráter sócio cultural, aprendidas, mas que geralmente subjazem à consciência individual, na medida em que são pressupostos globais comuns a todos os participantes de uma determinada cultura, como a língua, por exemplo. Finalmente, temos as restrições impostas pela cultura individual, historicamente construída por cada pessoa através das experiências próprias de suas condições de vida. Enquanto as primeiras restrições são universais, válidas para todos os seres humanos, e as segundas são típicas de uma determinada inserção histórico-sócio-cultural daquele indivíduo, as últimas são próprias de cada um. São, porém interrelacionadas como conjuntos, em que o primeiro (restrições biológicas) contém o segundo (restrições sócio-culturais), que, por sua vez, contém o terceiro (restrições individuais).

Assim, é lícito afirmar que não reagimos à realidade, mas aos aspectos desta que nosso mapa (e suas coordenadas) permitem perceber. É também importante ressaltar que estes processos são essencialmente inconscientes, somente acessíveis ao próprio percebedor através de inferências. O primeiro limite, portanto, é dado pelos mapas utilizados pelas pessoas para se guiar no mundo. Em outras palavras, ocupamos o posto de poder já limitados pela nossa própria capacidade de perceber, entender e aprender.

 

A Corrupção do Entendimento

As regras de funcionamento destes mapas são outro limite com o qual nos defrontamos. Uma destas regras é dada pela teoria da dissonância cognitiva, de Leon Festinger (1957), que aponta nossa tendência inconsciente de buscar diminuir as discrepâncias ou dissonâncias entre as cognições que temos, seja através da mudança destas cognições, seja através da distorção do que é percebido. Outra regra, de origens freudianas, afirma que nosso Eu, que é formado, em grande parte, por nossa auto-imagem, aquilo que pensamos sobre nós mesmos, busca sua auto preservação. Desta forma, é comum que percepções que colocam em perigo nossa auto-imagem sejam distorcidas para permitir-nos manter a coerência e integridade de nosso Eu.

Ao ocuparmos um posto de poder, encontramo-nos sob cerrado ataque a qualquer decisão que tomemos, e muitas vezes este ataque é virulento a ponto de colocar em risco aquilo que pensamos de nós mesmos. Nesta situação de maior risco tendemos a aumentar nosso comportamento defensivo. Uma das defesas mais comuns, é a cristalização das opções que tomamos e dos filtros perceptivos que usamos, negando ou distorcendo as percepções que podem colocar aquela integridade em risco. Em outras palavras, somos tão atacados e sentimo-nos em tal perigo que tendemos a dividir o mundo em "contra" e "a favor", ignorando as críticas e valorizando os elogios. Com isso diminuímos bastante nossa capacidade de entendimento.

 

Angústia e Ilusão

Nosso poder sobre as pessoas também é limitado pelo fato de, em certa medida, nós somente conseguirmos provocar efeitos que já estavam latentes, ou que eram passíveis de serem provocados11, dentro do mapa que nosso interlocutor usa para se guiar no mundo. E nossa capacidade de mudar tal quadro é limitada pelo nosso próprio mapa. Quando nosso interlocutor é uma pessoa ou um pequeno grupo, temos ainda algum controle sobre os efeitos, através principalmente do aprofundamento da relação, que permite a construção de um mapa em comum. Quando, porém, aumenta o grupo em interação, diminui, geometricamente, a possibilidade de um controle mais preciso dos efeitos. Assim, quando "assumimos o poder", e parece que aumentamos nosso alcance, diminuímos, na verdade, o controle sobre efeitos que queremos ou causamos. Perdemos potência como pessoas, tornando-nos menores, reduzidos como seres efetivos a nossas reais dimensões. E isto nos causa uma profunda angústia.

Esta angústia é imanente ao ser humano, especialmente em sua dimensão masculina. A angústia da impotência, da diminuição, do aniquilamento, da morte, metafórica ou real. Chamada "angústia existencial" em alguns círculos, dissecada por Freud, Jung, Adler, Reich, etc., é a carência que o poder parece suprir com ilusão quando nos corrompe. Na busca de compensar essa sensação de impotência ou diminuir essa angústia, vale monos de diversos mecanismos psíquicos.

Qualquer que seja o mecanismo psíquico utilizado para metabolizar esta angústia, ele sempre implicará no confronto entre a ilusão do que pensamos ser e o que realmente somos, entre nossa ilusão de poder e nossa efetiva potência. E não estando conscientes do confronto, nem das formas que ele assume, correremos sério risco de escolher a ilusão.

 

Outras Corrupções - "Chiquititas Pero Cumplidoras"

Há ainda alguns outros aspectos, que podem ser considerados resultantes dos diversos mecanismos aqui expostos, e que também pude perceber em mim mesmo, embora não vá explorá-los: a necessidade de justificar decisões que, mesmo corretas, podem prejudicar alguém, que acaba nos levando a querer justificar tudo o que fizemos, mesmo quando erramos; a progressiva intolerância para com pontos de vista opostos aos nossos; a monomania com os assuntos do poder; uma espécie de hipertrofia da responsabilidade; o maniqueísmo, etc.

 

Uma Outra Perspectiva

A contradição básica do poder pode ser expressa num quase koan: "quanto mais poder você parece ter, menos tem, na realidade". Num certo sentido, a busca pelo poder é uma busca que se alimenta de resultados, ou efeitos, cada vez menos reais, cada vez mais ilusórios.

Quando parece que controlamos, perdemos poder.

Se nos iludirmos com o controle, perdemos poder.

Se buscamos o poder, perdemos poder.

A atitude que me parece ser mais eficiente no fazer grupai, democrático, é a verdadeira vontade de compartilhar o poder, é o abandono da vontade de controle pessoal sobre os efeitos do poder, dividindo-o com aqueles que conosco trabalham. Esta atitude acaba nos reduzindo a um tamanho humano, nem maior nem menor do que nós mesmos, de tal forma que, ou cedemos controle sobre o resultado ou renunciamos à intenção de consegui-lo. E, por incrível que possa parecer, é a que apresentou resultados mais marcantes e duradouros na minha experiência pessoal.

 

Referências bibliográficas

Festinger, L. (1957) A Theory of Cognitive Dissonance. Stanford: Stanford University Press.        [ Links ]

Freud, S. (s/d) Psicologia das massas e análise do EU. Obras Completas de Sigmund Freud. Trad. de Odilon Gallotti, Isaac Izecksohn e Moisés Gikovate. Rio de Janeiro: Delta. V. IX.        [ Links ]

Jung, C.G. (1978) OEueo Inconsciente. Trad. de Dora Ferreira da Silva. Petrópolis: Vozes.        [ Links ]

Korzybskyl, A. (1958) Science & Sanity. Lakeville, Conecticut: The International Non-Aristotelian Library Publishing Company, 4ªed.        [ Links ]

Perls, F. (s/d) Ego, Fome e Agressão. Tradução livre não autorizada de Saulo Caíres Berber, manuscrita de Ego, hambre y agression.. Buenos Aires: Fóndo de Cultura.        [ Links ]

______, F., Moral, Fronteira do Ego e Agressão, in Isto é Gestalt.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Ari Pedro Balieiro Junior
(Universidade de Franca - CRP 06/28111-5)
E-mail: aripedro@unifran.br
Rodovia João Traficante, km 01 Franca
Estado de São Paulo CEP 14.400-000

Recebido em15/12/98
Aprovado em 27/03/99

 

 

1 Este trabalho foi realizado graças ao apoio da Universidade de Franca, através da Pró Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários.
2 É um ensaio autobiográfico, na medida em que avalia as experiências que vivenciei diretamente. Utiliza-se de um método analítico, sobre descrições de vivências pessoais, o que o caracteriza também como introspectivo. As deficiências e limites deste tipo de método me parecem ser amplamente compensadas pela profundidade de entendimento que permite. É preciso, no entanto, estar atento a estas deficiências e limites. Posso reivindicar validade para as conclusões a que chego apenas na medida em que revela como funciona tal "poder", sendo obrigado, em nome do rigor, a abrir mão da validade de minhas conclusões quando forem muito afetadas por particularidades pessoais. Deixo ao leitor, no entanto, o discernimento entre os dois tipos.
3 Vale assinalar que sou filho do então Prefeito. Os motivos que me levaram a aceitar o encargo são muito complexos para estender-me sobre eles, mas cabe apontar um deles: a idéia (talvez pura vaidade) de que teria uma contribuição a dar. Embora considere inevitáveis especulações sobre tais motivos, entendo que qualquer pessoa que aceita um cargo como o que eu aceitei tem suas próprias concepções sobre como ele deve ser exercido, e o aceita para poder por em prática aquilo que pensa. Mesmo correndo o risco de parecer cabotino, reivindico uma certa pureza de intenções, até porque não haveria possibilidade de entendimento se assim não fizesse.
4 Eu, por exemplo, interessome mais por problemas humanos do que por problemas especificamente organizacionais, e, assim, dei um viés à Secretaria de Administração que gerou, como subproduto, a diminuição do controle sobre as atividades "vegetativas", da Secretaria, como compra e consumo de materiais. Pelo menos em tese, essa diminuição de controle é indesejável.
5 Como a implantação dos projetos de mudança que o ocupante do posto de poder pretendia, quando iniciou sua ação. Assumirei como pressuposto que todo aquele que aceita tais postos de poder tem planos de modificação daquilo que considera necessário corrigir na estrutura em que se insere o posto que ocupa.
6 Alguns estudos apontam perdas de até, pasme o leitor, 95% (noventa e cinco por cento) das informações entre o nível mais baixo e o mais alto de uma organização hierarquizada.
7 São claramente discerníveis, embora caricatos, os chefes "bonzinhos", que protegem os subordinados mentindo para os superiores e os chefes "feitores", que forçam a carga sobre os subordinados muito além do que lhes é pedido pelo escalão superior.
8 Para uma discussão mais aprofundada, ver: Freud (s/d).
9 Jung (1978: 127-128).
10 "Um mapa nãoco território que representa..." Korzybski (1958).
11 Embora possa parecer radical esta posição, em minha prática clínica encontro freqüentes indícios de que seja, se não verdadeira, muito provável. Penso mesmo ser possível sustentar a existência de uma proporção entre os efeitos que provocamos no outro e os efeitos que sofremos ao faze-lo, o que exigiria uma revisão radical da idéia de uma relação entre pessoas em que haja uma instrumentalização unilateral de um dos agentes pelo outro. Seguindo esta linha, o que c comumente chamado de instrumentalização pode ser caracterizado como um contrato, em que há compensações e recompensas mútuas. Como não c o assunto deste ensaio, peço desculpas por não me estender mais.