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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.20 n.1 Brasília mar. 2000

 

ARTIGOS

 

Educação a partir de uma perspectiva etnográfica

 

 

Paulo Wenderson Teixeira Moraes*

Universidade Federal da Bahia

Endereço para correspondência

 

 


 

 

Este trabalho é fruto de uma atividade prática de observação voltada para o cotidiano da sala de aula, com o objetivo de entrar em contato com uma realidade escolar, de nível secundário, em uma escola pública. Analisaram-se as contradições da sociedade que se fazem presentes no cotidiano da sala de aula e o choque cultural entre observador e observado.

Este trabalho é fruto de uma atividade prática de observação voltada para o cotidiano da sala de aula em que os estudantes do curso de Psicologia, da matéria Psicologia Escolar I, foram convidados a voltar às “velhas classes” do colégio secundário para um novo contato com uma realidade que já se afasta no tempo, mas faz parte de todos nós. Agora entramos no colégio pela “porta da frente” e não mais como reles estudantes secundários, mas como “terciários”, ou do 3º grau, nível superior. Foram 2 horas semanais por quatro meses, durante o 1º semestre do ano letivo de 1999.

A abordagem teórica e metodológica utilizada se aproxima da etnometodologia, já que desde a entrada na escola, houve observação participante transformando o objeto observado pelo simples fato do pesquisador estar presente. O etnólogo em oposição ao clínico, que é “solicitado” por uma demanda específica, é um “solicitador” que pede a permissão para investigar, apesar de que, efetivamente, pode ocorrer do psicólogo, em uma prática de observação, ser solicitado a atender determinada demanda. A etnometodologia em si não se propõe a trabalhar com métodos rígidos e específicos. Trabalha-se com o que aparecer e daí suscitam-se metodologias, objetivos mais específicos e projetos, tornando-se um processo de “bricolagem”, ou seja, não se impede a utilização de questionários ou outras metodologias complementares, tudo depende do contexto e da situação, lançando mão de um amplo menu de metodologias (Lapassade, 1998).

O objetivo central é descrever os “pequenos métodos” cotidianos utilizados pelos atores para desempenharem seus papéis, tentando entrar numa rede simbólica diferente da do pesquisador-observador. Utilizou-se muitas citações dos professores, sendo que, as citações entre aspas, sem referência, foram anotações do diário de campo. A partir daí, foram levantados quatro temas para discussão: “Cotidiano na sala de aula”, “comprometimento dos professores”, “ei, tem um psicólogo aí (estereótipo do psicólogo)” e “o espaço-tempo”.

A escola na qual se deu esta prática de observação situa-se dentro de um bairro de Salvador-BA, caracterizado pela ocupação desordenada, chamado Nordeste de Amaralina, e dentro de um complexo de escolas públicas fundado recentemente, que se constitui como um condomínio de escolas, com guarita em cada escola e com uma guarita central que dá acesso a todas as outras através de um beco. Daí o nome do lugar “Beco da Cultura”. A Escola é um projeto-piloto da Secretaria de Educação do Estado da Bahia que consiste em ambientação pedagógica de salas de aulas para fins didáticos.

O acesso de carro é perfeito e existem mais portões do que gente, com certo exagero é claro, mas isso chama a atenção. Não fui barrado em nenhum dos três portões, mas haviam muitos estudantes querendo sair. “O que será de ruim que estará acontecendo por lá? Começo a ficar com medo de por lá entrar”. Isto me lembrou de um trabalho anterior em que fui visitar uma escola, por acaso do Estado, e tive alguma dificuldade para entrar. O que tinha de similar era que existiam, também, vários estudantes, uns 15, fazendo pressão para sair. Será sintomática a compulsão a fugir da escola?

Se detendo um pouco mais nesse primeiro ponto, a entrada do colégio me lembrou um presídio e no final de um beco, já dentro do “Beco da Cultura”, você se depara com um portão fechado. Batemos na porta e uma janelinha se abriu: “Sim? Alguma coisa”, “Nós gostaríamos de conversar com a Diretora, somos Estudantes de Psi...” e não é que o portão se abriu como se fosse “abra cadabra”. Se tivéssemos mais tempo, ensinaríamos esta mágica aos estudantes que ficaram do lado de fora, e os de dentro também, pois todos eles pareciam desprovidos de mágica, mas, ainda sim, com muita vontade de fazer o coelho sumir na cartola.

Uma certa penumbra é seguida pela entrada no portão, até que se acostume as vistas, pois saímos do sol para um ambiente fechado. Então, segui pelo “corredorzão central” em direção à secretaria (estrutura pampnóptica, não?). Muito burburinho de gente no mesmo recinto. Estas impressões iniciais já nos suscitam algumas angústias, pois, de certa forma, esta realidade está presente em todos, seja no passado ou no presente: uma escola ambígua, onde ao mesmo tempo em que se faz as primeiras amizades e socializações no mundo não doméstico, é também o lugar onde se estabelecem as regras mais estreitas da convivência social e a saída do mundo infantil. Este processo se dá no dia-a-dia da escola, onde além de conhecimento que é ensinado, modelam-se os comportamentos desejáveis e consegue-se finalmente habituar os corpos às filas e às cadeiras de uma sociedade dita livre e democrática.

Uma coisa, porém, inquietava mais ainda: se tratava de um colégio público, e não dos colégios particulares iguais aos que a maioria dos atuais estudantes de psicologia estudaram no curso secundário. Havia, pois, um choque cultural de outra natureza, o de classes sociais diversas. O que parecia ser apenas um retorno ao passado mostrou-se, com o tempo, um encontro de atores diversos, cada um encenando uma peça diferente, porém no mesmo palco e ao mesmo momento, com flashs de continuidade compreensíveis apenas a partir de uma vivência mais prolongada, onde o próprio cotidiano mostrasse a coerência por si mesmo.

 

Cotidiano na Sala de Aula

Quando fui assistir a uma aula, lembrei logo do tédio que são as aulas expositivas. Uma pessoa fala na frente e todos ficam ouvindo, mas ninguém decide sobre o que será lido ou sobre o que será discutido, mas vai se seguindo o programa predefinido, sabe-se lá por quem. Aos estudantes cabem responder às perguntas feitas pelo(a) professor(a) quando este(a) permite a palavra. Pode ser um pouco de exagero, ou falta de viver o cotidiano da escola, mas a verdade é que a aula parece ser, quase sempre, um tédio tanto para os professores quanto para os alunos.

As conversas paralelas são inevitáveis e até nós, os ditos estudantes de Psicologia, nos flagramos como conversadores. Há duas coisas que podem se extrair daí: ou a aula não presta para nada ou os alunos demostram um desinteresse que beira a apatia completa. Porém esses mesmos alunos se interessam por outras coisa, “ah! Aí está, eles só se interessam pelo que não presta, as coisas fúteis e de fácil assimilação”, dizia uma das professoras. Será? Podemos suspeitar que os portões das escolas mantêm os alunos, além de protegidos, controlados e sujeitos a outros perigos: o tédio e a acomodação por exemplo?

Na escola particular até que podemos dizer algo sobre identificação com o que está sendo dito ali, mas nas classes mais baixas, nos colégios públicos, é muito mais complicado impor uma disciplina abstrata baseada na simples presunção lógica de que “quem não estuda, não será ninguém na vida!”. Quando vemos negros e pouquíssimos brancos nas classes baixas, lembramos da carga de preconceito com que estas crianças são criadas e que, no final das contas, o que vai restar mesmo, na maioria das vezes, é ser empregada doméstica e porteiro de edifício burguês. As duas visões são parciais, tanto aquela em que os estudos levam a uma ascensão direta a uma classe financeira superior, quanto a de que não leva a lugar nenhum e tudo já está definido mesmo. Mas a realidade maior, vivida nas casas e nas ruas dos alunos das escolas públicas, é dos pais pedreiros, peões e lavadeiras, não é?

Este cotidiano, apesar de aparecer nos livros em forma de crônicas, não foi visto em momento nenhum na sala de aula como questão central. Por que não partir logo das estatísticas? A maioria dos negros não ocupam um lugar importante na sociedade e vivem com menos de um salário mínimo. Se quiséssemos poderíamos partir do fato de que somos uma sociedade contraditória e que vivemos entre o medo e a paixão, a escravidão e a liberdade. Se caísse uma bomba, nós demoraríamos muito para sair das cadeiras do colégio para ver o que aconteceu, para ver o que está acontecendo no mundo lá fora, mas logo depois voltaríamos resignados para os nossos lugares cômodos e seguros, assegurados pela Secretaria de Educação. Por que não começar a arte de lecionar pelo começo, pela própria experiência de vida?

A imposição de valores burgueses nessas escolas contribuem para uma reação negativa dos estudantes, pois o indivíduo é negado em toda a sua historicidade e desprezado como membro de uma cultura rejeitada e inferior, como é considerada a do negro brasileiro pela nossa elite europeizada. A cultura da “anti-escola” não é de se estranhar em parte dos alunos, pois representa uma reação à sociedade que o nega. A “falta de autoridade” com que os estudantes estão acostumados em seus lares e se generaliza para a escola em forma de mal comportamento, não passa do descrédito em que seus pais e professores se encontram, degradados em uma situação de miséria, desemprego e descrença, e sem condições de imporem exemplos. Não é na família que poderíamos por a culpa do desinteresse do aluno, ou somente no professor, mas na situação de exclusão em que se encontra boa parte da população, a começar pela exclusão econômica. (Lapassade, 1998)

 

Comprometimento dos Professores

Foi circulado um questionário aberto entre os professores para que eles mesmos falassem sobre seus próprios trabalhos, as dificuldades e as suas particularidades. Ao longo de um mês foram coletados dez questionários que suscitaram várias questões. O que se percebeu foram vários perfis de professores formando uma situação bastante heterogênea. Não há intenção de generalizações neste trabalho, mas algumas questões se fazem constantes, como: a baixa remuneração, a falta de condições de infra-estrutura, uma dificuldade administrativa por parte do Estado, a pouca valorização do profissional na sociedade, a violência e a falta de interesse por parte dos alunos. Longe de ser uma simples queixa, isto pode remeter a problemas de ordem muito maior do que a simples boa vontade de ser professor, como diria uma professora, “profissão esperança”. O que muda talvez é o posicionamento de cada um frente a situação: alguns colocam a ênfase mais na importância de ser um bom profissional e envolver os alunos, enquanto que outros atribuem um peso muito importante ao interesse dos alunos, sem o qual não se anda.

Em um depoimento pessimista, uma professora diz: “a medida que o tempo passa o desânimo vai tomando conta do professor que pensei ser. Atualmente, pouca coisa me faz pensar se vale a pena continuar com isso e o desempenho em sala vai piorando. Meu desempenho é regular, mas temo que chegue a ficar péssimo”. Esta professora ganha R$ 460,00 por 40h de aula. Já em outro caso, temos um depoimento mais positivo. Na opinião desta professora, a função da escola é “forma/ informa/ cria/ recria/ desperta/ completa/ mexe/ remexe/ alegra/ afirma/ acredita/ confia... o professor é o agente, é o acendedor de lampiões, é o guardador de rebanhos”... “Meu desempenho é questionado a cada dia, não sei valorar, mas apesar do tempo, nem se aproxima da perfeição, nem é algo acabado e inquestionável. A função/atividade está em constante mutação/ Avaliação é absolutamente processual, vivo, que se renova a cada dia”... “No momento, há muito medo da violência e da incontrolável onda de desrespeito nas escolas. Mas, ainda acredito, como professor, eu sei, a esperança há que ser uma ordem”. Sua renda ultrapassa a casa dos R$1000, porém com empregos paralelos na mesma área.

Quanto à profissão de professor, é muito cobrado em sua atuação um comprometimento com uma base preponderantemente afetiva. Isto gera muitos problemas, uma vez que ele é um trabalhador igual aos outros e da mesma forma suscetível aos outros tipos de vínculo com as organizações, no caso a escola. Vemos uma situação bastante complexa emergir no cenário da educação e isto exige um profissional bastante flexível e inovador, porém, deve existir a contrapartida da organização como um todo. Para formar os alunos que irão viver esta nova realidade “pós-moderna” é preciso uma atuação diferente, um profissional comprometido com a educação, mas entendendo-se comprometimento de uma forma mais ampla, onde a situação permite um sujeito comprometido, o que não brota espontaneamente das pessoas. Isto não se consegue com pouca luta, articulação e mudanças.

Um ponto interessante é que atualmente os profissionais são preparados para a escola moderna, centrada no aluno, cheia de computadores e apetrechos, mas acabam encontrando alunos desmotivados e péssimas condições de trabalho. Neste momento várias pressões são exercidas no profissional de educação, tanto dos órgãos oficiais, cobrando produtividade, quanto das críticas da esquerda, que os chamam de alienados. (Saviani, 1987)

Neste momento, a corrente de pensamento dialética leva a uma maior abrangência da situação, pois além de reconhecer a situação de exploração em que vive a classe docente, também analisa a condição contraditória em que se encontra a educação: por um lado é mudança e perspectiva para o futuro, por outro, é estagnação e reprodução dos valores dominantes da sociedade. De certa forma chama a atenção para o saber como possibilidade de emancipação da grande massa proletária. Entretanto, com o fenômeno da comunicação em massa aliado a uma mentalidade tecnicista, onde mente está dissociada do corpo e o que importa mesmo é o resultado final, é difícil ter qualquer esperança. Porém, sempre se inventam modos de resistência muito variados e sempre reinventamos a vida. O que podemos dizer sobre a subordinação de uma ideologia em relação à outra é que sempre há uma efervescência de pensamentos e de correntes de críticos e de intelectuais, mas por “baixo” há uma vida cotidiana sendo vivida, onde há poder, controle e estratégias de “guerra”, onde interesses se sobrepõem pela força ou pela alienação (Charlot, 1979). Uma coisa importante é não atribuir culpa a indivíduos ou a classes como se houvesse um estereótipo fixo e inabalável. Um dos professores entrevistados lembra bem que devemos sempre estar reavaliando a nossa posição e que estamos sujeitos a altos e baixos, mas é preciso também uma postura alternativa e inovadora para mudar as coisas.

 

Ei, Tem Um Psicólogo Aí? (estereótipo do psicólogo)

Quando pela primeira vez entrei com os colegas, também estudantes de psicologia, em uma das salas de aula, nos apresentamos como estudantes de psicologia, mas mais parecíamos policiais, principalmente depois que o professor disse, de propósito para a turma, que éramos da Secretaria de Educação e que estávamos ali para avaliar os alunos em relação à disciplina.

Muito do que é o trabalho do psicólogo é visto como se fosse o de alguém que vai restituir a ordem e o silêncio, com uma sabedoria e poder misteriosos, assim como o mito da Secretaria de Educação, algo longínquo, mas presente no discurso do dia-a-dia. Então, deseja-se alunos calmos e quietos, atentos e solícitos, sem uma centelha de inquietação a ser trazida para o lugar sagrado que é a sala de aula, que ao final das contas “não é a casa da sogra”. Enfim, os “corpos dóceis” de que nos fala Foucault, onde a repressão não estaria na violência, como antigamente. O que fazemos, muito pelo contrário, é incentivar os jovens a gozarem da vida, porém, dentro de determinados limites que exigem um auto-controle perverso (“transem a vontade, mas com camisinha”), pois, se por um lado as propagandas e o individualismo incita ao consumo descontrolado e desordenado, por outro, o gozo é controlado através de micropoderes que contém os corpos em seus lugares. Neste movimento contraditório, a psicologia pode representar um destes micropoderes. (Foucault, 1979)

Alguns profissionais de saúde, que trabalhavam fazendo palestras nas escolas, utilizavam uma linguagem bem “catequicista”, trazendo em seus discursos essa necessidade da tecnologia do micropoder. Eles diziam: “aqui temos uma grande demanda com adolescentes: questão das drogas, do sexo e da violência”. “Muitos deles até sabem como usar camisinha, como não ter filho e que as drogas são um mal, mas precisamos mesmo é colocar na cabeça dessa rapaziada (tanto a de cima quanto a de baixo) que eles devem se comportar direito’’, ‘’devemos beneficiar o máximo de pessoas possíveis com o conhecimento”, “...devemos mostrar à população carente como se prevenir contra a gravidez e doenças transmissíveis” e até mesmo “precisamos colocar na cabeça das pessoas que elas devem, devem,...” (devem sempre alguma coisa). A imagem que me veio foi a de índios ingênuos sendo catequizados ou a de escravos alforriados que não têm para onde ir. A maior virtude é a obediência e o maior pecado é desobedecer. (Charlot, 1979)

Ao longo do pouco tempo trabalhando com estes poucos jovens, o que observou-se foi que existe muito pouco espaço para se ouvir o jovem na escola. Existem palestras e as aulas. Os professores até se propõem a instruir, mas muito pouco se compreende sobre esta realidade que é ser adolescente, ver o corpo mudando e deixando de ser semente, ver as portas do mundo adulto se fecharem à sua frente e já não poder voltar atrás, porque lá vem mais gente: o mundo infantil não mais lhe pertence.

Temos um jovem ávido por coisas excitantes, e o que temos para lhe dar é somente esta escola fechada pelos portões do tédio e do programa? Por onde começar? Que tal por eles mesmos? Se considerarmos que o problema é genético, só resta a escola acompanhar os genótipos privilegiados. Se o problema é ambiental, cria-se um ambiente propício e cheio de estímulos na escola, mas as crianças têm um ambiente inadequado na vida doméstica e no cotidiano do bairro, que é pobre e cheio de problemas. Estes dois argumentos, inatista e ambientalista, servem para justificar a mesma coisa: a acomodação e a inviabilidade de qualquer alternativa, pois há um determinismo prévio. Nas variantes mais eufóricas destas abordagens, pode-se justificar desde o assistencialismo, o conservadorismo, o diretivismo, e até o tecnicismo. Se formos pensar a partir do sócio-interacionismo de Vigostsky, o desenvolvimento da complexa estrutura humana não é determinado linearmente, mas sim, pelo fruto do processo de apropriação da experiência histórica e cultural do homem: o sujeito transforma e é transformado nas relações produzidas em uma determinada cultura. Aqui vemos marcante a presença do materialismo histórico-dialético. (Rego, 1995)

Helena Antipoff já concebia aqui no Brasil a importância do ambiente para o desenvolvimento, assim como o caráter ativo da aprendizagem. É assim que ela vai construir empreendimentos educacionais para as pessoas excluídas, e tidas como sem perspectivas, enfatizando a auto-gestão dos educandos e a importância do trabalho como atividade consciente de transformação do mundo. Lutou contra a repetição e submissão, e para que as pessoas se tornassem os sujeitos em um processo interacionista e democrático, e não o objeto. Claramente contra o darwinismo social, ela apontava que os testes psicológicos de inteligência, só mediam a “inteligência civilizada, a natureza do indivíduo polido”. (Campos, 1992) A apropriação do saber e da cultura é que torna as pessoas autônomas e ativas no processo de construção da realidade, esquivando-as da apatia e da alienação que reina em nossa sociedade contraditoriamente dita democrática.

 

O Espaço-Tempo

“A força é dos “lentos” e não dos que detêm a velocidade ... . Quem, na cidade, tem mobilidade - e pode percorrê-la e esquadrinhá-la - acaba por ver pouco da cidade e do mundo. Sua comunhão com as imagens, freqüentemente pré-fabricadas é a sua perdição. Seu conforto, que não desejam perder, vem justamente do convívio com estas imagens. Os homens “lentos” por seu turno, para quem essas imagens são miragens, não podem por muito tempo estar em fase com esse imaginário perverso e acabam descobrindo as fabulações. A lentidão dos corpos contrastaria então com a celeridade dos espíritos?”(Santos, 1994, pág. 84)

A velocidade que é imposta, a quem se submete ao mundo pós-moderno, faz as pessoas se habituarem a um espaço virtual impõe ao espaço geográfico. Quem não possui os meios de se conectar a esse espaço virtual, acaba por vivê-lo a partir de outra perspectiva de tempo e espaço. Quem se torna psicólogo, geralmente, faz parte do primeiro grupo de pessoas e, dificilmente, entenderá o que é viver em um mundo que não é o da classe burguesa se não desacelerar o seu corpo e tentar viver em outro ritmo. As pessoas das classes mais populares utilizam uma lógica de tempo presente e não um eterno planejamento de sonhos e ilusões de uma vida parcimoniosa, poupando para um futuro sempre melhor. Elas não possuem os meios de poupar, gastam tudo rapidamente, “no aqui agora”, sem protelações, pois vivem o risco à flor da pele e podem não estar vivos amanhã.

“Para os migrantes e para os pobres de um modo geral, o espaço inorgânico é um aliado da ação, a começar pela ação de pensar, enquanto a classe média e os ricos são envolvidos pelas próprias teias, que para seu conforto ajudaram a tecer: as teias de uma racionalidade invasora em todos os arcanos da vida, essas regulamentações, esses caminhos marcados que empobreceram e eliminam a orientação ao futuro. Por isso os espaços “luminosos” da metrópole, espaços da racionalidade é que são de fato os espaços opacos.”(Santos, 1994, pág. 85)

Assim coloca-se uma polaridade que é trazida de forma brilhante por Milton Santos: os espaços iluminados e os opacos; as classes médias e ricas e as pobres. Vemos uma ideologia perversa invadir toda uma lógica de funcionamento da cidade que é bastante veiculada pelos meios de comunicação. A velocidade da produção e da competitividade arrasta tudo o que vem pela frente se não fossem esses “espaços opacos” de resistência, onde nem tudo é uma questão de desenvolvimento, mas principalmente de contradição.

Para se compreender os alunos que moram em um lugar diferente do nosso é preciso entrar na lógica macabra da distribuição de renda, da especulação imobiliária, do desemprego e dos tempos lentos. As classes mais pobres vivem mais intensamente o momento e o lugar do que a classe média e a rica, que geralmente estão carregadas de símbolos preconcebidos que preenchem todos os lugares que passam. Símbolos que vem de longe e só com lentidão vão entrando no cotidiano dos bairros “carentes”, mas já em outro contexto. Quando digo isso, é porque vivemos, nós da classe média, em um mundo de sonhos burgueses, voamos rápido em nossos carros de lá para cá, e de cá para lá, sempre com a cabeça em lugares longínquos.

Não sei se estou indo longe demais, mas o ser humano não funciona de forma cronometrada, porém nos sujeitamos a uma rapidez estupenda e nem nos damos conta. Uma hora estamos aqui, outra lá, outra acolá, mas nunca aterrissamos as nossas asas no espaço que se põe à nossa frente, como um beija-flor. Tudo isso, é claro, sujeitando-nos a deliberações que impõem tetos e demandas, tanto financeiras como cobranças de metas e deveres. Enfim, não temos tempo para educar, para nos debruçar sobre uma realidade misteriosa que insiste em não se desvelar para nós, esclarecidos e letrados: “onde foi que falhamos?”

Um texto bem apaixonado, com certeza, mas algo fica mais claro quando este personagem se faz presente dizendo que um projeto educativo é um processo de conscientização da contradição, na qual está imersa a nossa sociedade: Paulo Freire explica melhor do que ninguém como se dá esse processo, sem o qual a pedagogia afunda em plena luz do dia. “O homem chega a ser sujeito por uma reflexão sobre sua situação, sobre o seu ambiente concreto”( Freire,1980, pag. 35) Aqui começamos a juntar as coisas: tempos lentos, conscientização e espaços opacos. Temos que começar de novo a partir de uma “pedagogia do oprimido”, não no sentido de que devemos ter pena dos “coitadinhos que entram nas salas de aula com fome e com a calça rasgada”, mas sim tentar se aproximar de sua realidade respirando de fato a contradição, que de certa forma é nossa também, que nos marca igualmente.

Nem conhecemos a nossa cidade direito, os lugares, as paisagens. Conhecemos muito a segurança dos nossos lares classe média. Esses jovens têm muito a nos ensinar sobre a vida, tenho certeza disso. Será que na miséria só tem coisa ruim? Sempre quando olhamos alguma coisa, interpretamos com os valores e preconceitos que nos são próprios e acabamos olhando para “os outros” pelo que eles não têm, pelo que lhes falta e olhamos para a suas misérias, porém, eles olham para a nossa também, atrelados que somos nas teias que tecemos e que nos sufocam: não poder nem abrir a porta com medo de vir alguém estranho.

 

Voltando à Escola

A escola é amplamente legitimada como a transmissora oficial e privilegiada de conhecimento. É onde a criança começa a receber outra educação que não a doméstica e constitui uma socialização mais ampla. Tendo em vista que a escola é uma pequena sociedade dentro de uma maior, os mecanismos de interação envolvem tensões e pressões típicas de relações de poder. Dos alunos são exigidos a disciplina e o aprendizado, e dos professores, horas de ensino, conteúdos programáticos e sentimentos filantrópicos em relação ao futuro da nação.

Desta forma, a sala de aula surge como palco onde os atores exercem os papéis mais variados, a depender das situações, numa rede de significação e de disparidades linguísticas que nos faz repensar a situação de sala de aula. Então, a observação pode se tornar um instrumento muito útil no momento em que se tenta ser “possuído” pela lógica desta linguagem escolar, ou melhor, pelo mundo escolar, do qual já esquecemos que um dia também fomos alunos. Neste momento a etnometodologia se mostra um método próximo desta tentativa de se livrar do etnocentrismo e conseguir “navegar” pela complexidade dos “mecanismos adaptativos” e estratégias estabelecidas pelos próprios atores.

A didática ganha uma nova ótica a partir das análises das condições de aprendizagem e um novo ângulo se projeta sobre as desigualdades de êxito e de fracasso escolar. Por um lado, não basta a identificação dos conflitos e por outro as teorias macrosociológias não trazem compreensão à situação concreta. A etnometodologia ajuda à visualizar uma “massa indiferenciada de alunos” como atores desenvolvendo estratégias de barganha e de negociações conflituosas, muitas vezes estabelecendo “regras informacionais e tabus” que ficam implícitas na relação de poder professor-aluno, não se tratando unicamente de transmitir e ensinar saberes. Deste modo pode-se chegar a compreender o processo pelo qual as diferenças são transformadas em desigualdades. (Sirota, 1994)

O estudo etnográfico muito contribuiu para a prática do psicólogo, mas é preciso lembrar que muitas questões são levantadas em relação a esse método, devido a sua falta de crítica histórico-concreta com a qual se erguem as contradições da sociedade. Muito se tem chamado a atenção de que a etnografia é um campo por natureza multidisciplinar e que necessita disso para uma melhor compreensão da realidade em questão.

A primeira coisa que me impressiona em um colégio público em geral, e já estive em alguns, é que, é muito difícil manter os estudantes em sala de aula ou dentro do colégio. Muitas são as técnicas para manter o aluno de saco cheio, mas dentro dos perímetros da vigilância da cadeia, ou me desculpe, do colégio. Sim, achamos que não deveríamos trocar as palavras, pois o colégio público se assemelha muito à uma instituição carcerária, especialmente este colégio que estou praticando a observação neste semestre.

Uma das aulas que assistimos foi especialmente chata e monótona. Lembramos deste lado chato da escola e vimos aquela “bruxa” lá na frente impondo todo o seu poder aos ouvintes quase disciplinados, “se não fosse uns três ou quatro”, palavras da professora. A massa indiferenciada dos “alunos que não querem nada da vida“ vai tomando forma e particularidades. Muitos são os motivos de dispersão e muito poucos os artifícios usados pelos professores para chamar a atenção dos alunos. Quando se toca em questões muito quentes, sempre vêm acompanhadas de uma seção de sermões e de moralismos: até o sexo se aborda de forma chata e as drogas são sempre ruins, porém não sabemos porque todo mundo usa, de algum jeito, algum tóxico, mas “não se deve usar!”.

Refletindo melhor sobre o assunto, descobre-se que é muito fácil criticar a professora e achar tudo uma chatice. É preciso compreender a relação de explorado e de explorador da realidade do professor (Saviani,1987). Porém estamos para ver a realidade dos alunos de escola pública e dos professores servir como parâmetro para se começar qualquer didática a nível nacional. Quando o aluno senta na sala de aula é imposto que ele cale a sua efervescência de questões mal resolvidas com o mundo. Nem ao menos se sabe para que se aprender inglês ou português, mas tudo está ali como uma implícita disciplina e todos sabem que para “ser alguém na vida...”.

São realidades e culturas diferentes e, mesmo de um professor para outro, há diferenças muito flagrantes de estilo, sem perder de vista os determinantes mais globais e sociológicos, na atuação do dia-a-dia. A partir daí, pode se começar a perguntar porque o humor passa longe da sala de aula, porque não se toca em certas questões, porque o aluno possui uma natureza amaldiçoada ou uma essência ruim, e como se dão as relações de poder dentro da sala de aula? “Nem tudo é ruim: quando eu ia para escola gostava muito dos meus colegas e companheiros”. Outra lição muito importante há de se aprender e volto a falar: porque sempre olhamos a realidade alheia pelo que ela não tem, pelo que lhe falta? Etnocentrismo? Talvez só o começo de um modo de pensar e de se expressar que foge às perspectivas e aos anseios burgueses e se alia a uma “bricolagem pedagógica” e uma “improvisação regulamentada” na prática pedagógica. (Sirota, 1994)

O estudante universitário, em geral pela sua origem social em classes mais abastadas, pouco conhece do que acontece nas pequeninas ruas dos bairros mais pobres economicamente e nas favelas. Também não se incentiva, em todo o curso universitário, uma prática mais sistemática voltada para um contato mais estreito com a população excluída dos principais processos produtivos e decisórios da sociedade. Existem esforços pontuais que ainda não se generalizaram. Tal prática se mostra imprescindível para a desmistificação de certas ideologias e para construção de um universitário mais crítico e mais atento para os problemas sociais.

Por fim, gostaria de finalizar citando Michel Maffesoli que propõe uma ética sensível em que o conhecimento se apaixone pela verdade e pelo seu objeto, “um saber erótico que ama o mundo que descreve” um “saber dionisíaco”. “Não se trata de fanfarronada mas, sim, de desejo de participar de um debate intelectual que ultrapasse as habituais categorias de um cartesianismo, que tenha engendrado a visão de mundo contratual, regido por um voluntarismo racional. Neste sentido, talvez seja menos interessante preocupar-se em saber de onde vem a crise do burguesismo, sob suas variantes socialistas ou liberais, do que perguntar-se para que tende a energia social. Pois, ainda que não esteja focalizada sobre o produtivismo, que não se projete mais para o longínquo, essa energia é inegável ... é uma forma de criação. Convém pensá-la. No sentido etimológico, isto requer um novo “discurso do método“, isto é, um encaminhamento. Em suma, da mesma maneira como Descartes balizou o caminho da modernidade, é preciso saber balizar o da pós-modernidade.”2

 

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência
Paulo Wenderson Teixeira Moraes
R. do Cipreste, Nª 231, apto. 1102
Ed. M. Riviera, Itaigara
41810-450 Salvador-BA
Tel.: +55-71 353-3922
E-mail: paulow@ufba.br

 

 

* Estudante do 10º semestre do Curso de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
1- As estruturas pampnóptica são descritas por Foucault em “Vigiar e Punir” e dizem respeito à possibilidade de uma disposição espacial, na qual se vigia todo o perímetro a partir de uma posição central, e que, quem está nas bordas se sente sempre vigiado, a exemplo das torres centrais de certos presídios.
2 - Maffesoli, Michel – Elogio da Razão Sensível. Ed. Vozes, Petrópolis, 1998 Pags. 12 e 15.