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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.20 n.2 Brasília jun. 2000

 

ARTIGOS

 

O psicodrama e as abordagens alternativas ao empirismo lógico como metodologia científica1

 

 

Ana Maria Otoni Mesquita*

Endereço para correspondência

 

 


 

 

Meu intuito, neste trabalho, é o de fazer uma reflexão sobre a teoria e o método psicodramático, a partir de alguns construtos e noções desenvolvidos por J.L. Moreno, na tentativa de, em primeiro lugar, compreender como o psicodrama rompe com a visão tradicional de ciência, mais especificamente a visão apresentada pelo Empirismo Lógico. Em segundo lugar, situar a abordagem de Moreno no momento histórico atual, discutindo a relevância de sua proposta terapêutica e pedagógica, na medida que ela apresenta afinidades com outras abordagens metodológicas para as ciências humanas, tais como a Hermenêutica, o Estruturalismo e o Pragmatismo. Serão selecionados conceitos e noções específicas do Psicodrama, assim como os principais pressupostos que caracterizam o Empirismo Lógico, o Estruturalismo, a Hermenêutica, o Pragmatismo.

O empirismo lógico que marcou a visão de ciência do século 16 até o século 19 e que a partir do final do século passado vem sofrendo a oposição de outras concepções metodológicas como o estruturalismo, a hermenêutica sob influência da fenomenologia e do pragmatismo, em que pese o fato de já estarmos convivendo com visões ditas pós-modernas e pós-pragmáticas.

O empirismo lógico se caracteriza pelas noções de conhecimento como representação objetiva da realidade, de sujeito em oposição à realidade objetiva, da concepção de verdade essencial e universal, e de uma lógica finalista de causalidade.

Teve início no racionalismo cartesiano que decretou a supremacia do pensar (razão) sobre o sentir (corpo, sentidos), ou seja, o dualismo mente/corpo; na concepção de uma razão natural, apriorística, com idéias inatas, de uma mente que forma representações da realidade e mediadora do conhecimento. O empirismo inglês introduziu a concepção de conhecimento da realidade através dos sentidos e da experiência, o que foi uma contribuição importante no sentido de abalar a premissa do solipsismo cartesiano do isolamento do eu não apenas em relação ao mundo, mas também em relação ao corpo. A idéia era introduzir uma ponte entre o pensamento subjetivo e a realidade objetiva.

Contudo, a concepção de dualidade sujeito/mundo objetivo continuava intacta, assim como a de verdade universal e essencial.

Portanto, o empirismo lógico introduz e mantém uma visão objetivista com relação à realidade, independente do sujeito e da linguagem; entende que o conhecimento verdadeiro é representação correta, ou cópia da realidade, assim como a verdade como correspondência a essa realidade. Ele é uma tentativa de criar uma linguagem ideal, formal que represente a realidade corretamente e implica na busca de universais, numa visão ahistórica, descontextualizada do sujeito e num fisicalismo que considera as questões referentes a valores, ética e estética como pseudo-questões.

É nessa medida também que ele instaura o predomínio da análise quantitativa acreditando que quanto maior o número de dados, mais possibilidade se tem de universalizar os dados. Já a análise qualitativa visa a particularização, como o sujeito contextualiza os aspectos que estão sendo pesquisados.

Segundo Carolina Lampréia, apenas a pragmática de Ludwig Wittgenstein faz uma oposição consistente à visão objetivista do empirismo lógico. Isto porque para este filósofo, não faz sentido referir-se à realidade objetiva, pois, segundo ele toda realidade é sempre interpretada, sempre significada, sempre contextualizada. Portanto, o conhecimento não é uma representação correta da realidade, pois todo conhecimento se constitui pela linguagem e a linguagem é tudo aquilo que envolve significação, formas de vida, formas de ação e prática social. À antiga noção de realidade, ele contrapõe as noções de necessidades e interêsses, e conclui que a partir deles vamos ser levados a ter formas de vida diferentes, o que acarreta uma mitologia diferente e isso vai dar significado aos jogos de linguagem. Segundo Danilo Marcondes2 “na noção de ‘jogo de linguagem’, o significado não é estabelecido pela forma da sentença, nem pelo sentido de seus componentes, mas pelo uso ou função que fazemos das expressões linguísticas (termos, sentenças, etc…) nos diferentes contextos ou situações em que as empregamos, pelos efeitos e consequências que geram em seus usos específicos”4. (Marcondes, 1994/1995, p. 225). Segundo Wittgenstein “falar a linguagem é parte de uma atividade, de uma forma de vida…Dar ordens, e obedecê-las. Descrever a aparência de um objeto,…Produzir um objeto a partir de uma descrição (desenho). Apresentar os resultados de um experimento através de tabelas e diagramas. Inventar uma história e lê-la. Representar uma peça de teatro…Pedir, agradecer, amaldiçoar, saudar, rezar. É interessante comparar a multiplicidade de instrumentos da linguagem e as formas como são usados, e a multiplicidade de tipos de palavras e sentenças, com o que os lógicos têm dito sobre a estrutura da linguagem”. (Marcondes, 1994/1995, p. 222).

E o psicodrama3? Que afinidades tem o psicodrama com a hermenêutica, o estruturalismo e o pragmatismo? Em que medida o psicodrama abole a noção de realidade-em-si, de realidade objetiva, de conhecimento como representação correta da realidade e de verdade essencial e universal?

Vamos por partes.

 

Relação do Psicodrama com a Hermenêutica e o Estruturalismo

Quero esclarecer que me pautarei nos escritos de Moreno e também em escritos biográficos que ajudem a contextualizar suas propostas, ou seja, para melhor compreender a proposta moreniana, mais vale conhecer um pouco do contexto sócio-histórico em que viveu o seu autor. Mais do que ele tenha escrito ou as influências filosóficas que sofreu, tomarei como referência o que ele fez.

J.L.Moreno foi um psiquiatra romeno, de origem judaica, que estudou Medicina em Viena entre os anos de 1909 a 1917, quando então completara 28 anos.

Sua paixão pelo teatro vem da infância. Conta-se que gostava de reunir amigos para representar. A adolescência em Viena foi a fase mais mística de sua vida. Segundo seu biógrafo René F. Marineau “Moreno começou a reunir um grupo de amigos e discípulos à sua volta em 1908. Juntos criaram a ‘religião’ centrada em criatividade, encontros e anonimato. Ajudavam pobres e refugiados, deixavam crescer a barba e dedicavam um bocado de tempo a discutir questões teológicas e filosóficas”. (Marineau, 1992, p. 41). Durante o período em que cursou a escola de Medicina, editou com um grupo de intelectuais o jornal Daimon ( palavra grega que pode significar tanto o bom como o mau espírito; é o ‘duplo interior’ de cada indivíduo) onde publicou algumas poesias e artigos como ‘A divindade como comediante’, onde já fala da inversão de papéis uma das principais técnicas da futura teoria do psicodrama, utilizando-se de seus conhecimentos do método socrático de ensinar. No artigo “Convite ao Encontro”, publicado em três etapas, Moreno edita o poema afirmando sua visão de que a pessoa é mais importante do que sua produção, “ Mais importante do que a evolução da criação, é a evolução do criador”(Marineau, 1992, p. 59) , a dialógica da relação que implica na inversão de papéis, na percepção intuitiva do outro (Um encontro de dois: olhos nos olhos, face a face,…arrancarei seus olhos e os colocarei no lugar dos meus; …então verei você com seus olhos e você me verá com os meus),4 e finalmente a idéia de reunião, de encontro, à semelhança de seu contemporâneo, o filósofo existencialista Martin Buber. Buber diz que no princípio era a relação Eu-Tu, Moreno afirma que no princípio era a ação e o grupo. Ou seja, o importante é o fazer contextualizado.

Moreno também fazia um trabalho com crianças nas praças, onde ele desenvolvia jogos dramáticos, criava histórias e observava a espontaneidade e a enorme capacidade criativa das crianças, o que ele atribuiu ao fato das crianças serem mais livres das “conservas culturais”5. Mais tarde, seu trabalho com um grupo de prostitutas ja mostrava o outro lado da moeda: pessoas que eram segregadas do resto da sociedade, não por questões religiosas ou étnicas, mas pelo tipo de ocupação. Moreno não tinha interêsse em reformar ou ajudar economicamente aquelas mulheres. Desenvolveu sim um trabalho de grupo em que ele começou a formular seus conceitos de psicoterapia de grupo através da ajuda mútua, do reconhecimento dos direitos como cidadãs, do desenvolvimento de papéis no grupo, da percepção do individuo como agente terapêutico do outro, a mutualidade, as ações co-conscientes e co-inconscientes, co-responsabilidade, co-criação, a espontaneidade, a criação como processo contínuo.

Em 1922, Moreno alugou um teatro, propriedade do pai de uma famosa atriz na época, a que dá o nome de Teatro de Espontaneidade. Todas as noites ali se reuniam atores de projeção para representar dramas do cotidiano com intensa participação do público. É quando Moreno começa a desenvolver sua proposta de psicodrama, sociodrama e axiodrama. Ele propôe uma inversão de papéis entre os atores e o público, no qual o público passa a representar seus dramas cotidianos no espaço cênico. Esse espaço é composto pelo palco, o protagonista ou cliente, um diretor ou terapeuta, egos auxiliares e o público ou platéia. Através do uso de técnicas como a inversão de papéis, o duplo, o espelho, a concretização da imagem de um sentimento, uma emoção, da interpolação de resistência, entre outras, as pessoas desenvolvem uma nova percepção sobre si mesmas, sobre os outros e sobre o ambiente, permitindo o surgimento do novo, da eventualidade, da resposta nova, uma nova linguagem resignificada. Portanto, o espaço cênico6 é multidimensional, vivencial pois inclui o verbal, o corporal, gestual, a cultura, o jogo, a imaginação, presentificados no momento, ou seja no aqui e agora.

Em 1925 Moreno foi para Nova Iorque, onde mais tarde comprou um sanatório e desenvolveu a metodologia do Psicodrama até a morte em 1974, aos 85 anos de idade. Foram os anos de crescimento e amadurecimento da teoria e da técnica. Ele propos as três etapas da sessão psico, sócio ou axiodramática: o aquecimento, a dramatização e o compartilhar.

Cada uma das etapas representa um momento diferente no processo. No aquecimento se trabalha com a idéia de aleatoriedade através de jogos que envolvem a linguagem verbal, do corpo e a imaginação. Na dramatização alguma situação já adquiriu significado para o grupo, para o protagonista emergente ou mesmo para um único indivíduo no caso da terapêutica bi-pessoal (apenas terapeuta e cliente no setting psicoterápico). No compartilhar é quando há troca de sentimentos, impressões e reflexões sobre o acontecido em cena. É o momento de dar significado aos conteúdos da cena.

Para Moreno há uma intencionalidade na cena: dar fluência à espontaneidade e à criatividade, através da contextualização da problemática, da ação dramática, do encontro, do olhar do outro, do olhar sobre si mesmo. Desta maneira ele acreditava que as pessoas estavam transformando seus papéis, dando-lhes nova visibilidade, podendo desempenhá-los mais adequadamente às necessidades do contexto.

Para Moreno, a teoria dos papéis é um dos construtos fundamentais do psicodrama. Na sua concepção de desenvolvimento bio-psico-social, o bebê nasce numa matriz de identidade, ou seja, numa família ou ambiente e já começa a desempenhar papéis fisiológicos, psicossomáticos, culturais e imaginários que são os psicodramáticos. A mãe, ou pessoa que cuida é o primeiro ego-auxiliar e é a partir desse desempenho interativo de papel e contra papel, que o “eu” se desenvolve. Os papéis se transformarão até o resto da vida da pessoa, e sua concepção de saúde mental considera o número, a adequação e a flexibilidade dos papéis características fundamentais. A doença seria uma inadequação no desempenho desses papéis.

Talvez seja interessante tecer aqui algumas considerações teóricas sobre as afinidades do psicodrama com o Estruturalismo, a Hermenêutica e o Pragmatismo.

A Hermenêutica enquanto visão filosófica tem a preocupação com a compreensão do sentido, da interpretação, do entendimento do ser. Sua origem vem dos estudos bíblicos, que através da interpretação da linguagem, atribuia-lhes sentido e compreensão religiosos e também históricos. Portanto, não há como negar uma visão essencialista da hermanêutica, no sentido heideggeriano que “visa trazer à luz o ser, pesquisar o sentido do ser enquanto desvelamento, manifestação”…”que revele o ‘ente que nós somos’, o ser-aí, o Dasein”. (Marcondes, 1997, p. 267).

É nessa medida que Heidegger tem afinidades com a fenomenologia. Husserl propõe o “método que pretende explicitar as estruturas implícitas da experiência humana do real, revelando o sentido dessa experiência através de uma análise da consciência em sua relação com o real”…,”voltando-se sobretudo para a análise das essências, entendidas como unidades ideais de significação, elementos constitutivos do sentido de nossa experiência”. (Marcondes, 1997, p. 257-258).

Em vários momentos de sua obra, Moreno afirma que “o desempenho de papéis é anterior ao surgimento do eu. Os papéis não emergem do eu; é o eu que emerge dos papéis”. (Moreno, 1997, p. 25).

Essa afirmativa é muito importante na proposta psicodramática, pois se considerarmos o “eu” aqui citado como plano essencial que dá unidade estrutural à pessoa, podemos interpretar que o autor compreende que ela não é uma unidade dada a prioristicamente, mas a posteriori à ação da pessoa no mundo [no desempenho dos papéis sociais, psicológicos e fisiológicos]. Diríamos que nessa medida Moreno estaria mais próximo filosófico-metodologicamente da afirmativa sartriana de que “a existência precede a essência”.

Entretanto, nota-se um ceticismo bem humorado de Moreno em relação a questão da coisa em si (nümeno), a essência do ser e também da verdade. Escreve ele: “O psicodrama pode ser definido, pois, como a ciência que explora a “verdade” por métodos dramáticos. Uma outra definição de psicodrama pode ser dada em contraste com a das Ding an sich [a coisa em si] de Kant, sendo então o psicodrama das Ding ausser sich [a coisa fora de si]…A frase alemã ausser sich tem uma outra e significativa implicação. Ela também quer dizer “alguém que está fora de si, que perdeu as estribeiras e o controle”. (Moreno, 1997, p.61).

A partir deste jogo de palavras Moreno dá a entender que concebe os dois planos: da coisa em si e a realidade da nossa experiência (o fenômeno) que seria a ação de desempenharmos papéis no mundo e assim construirmos nosso self7. Portanto, ele não supõe uma realidade em si a priori, e passa a ocupar-se com os movimentos de ação, interação, construção da pessoa, dos grupos, das sociedades. Sua definição de protagonista no psicodrama deriva desse jogo de palavras e também do teatro grego: “Protagonista significa um homem tomado de frenesi, um louco. Um teatro para o psicodrama é, portanto, um teatro do homem enlouquecido, um público de loucos que olha para um deles, que continua sua vida no palco”. (Moreno, 1997, p. 61).

Aqui vale ressaltar, que em primeiro lugar, Moreno não tratava a “loucura” enquanto doença da estrutura da mente, alheia ao sofrimento da pessoa, de sua inserção familiar e social. Ele costumava dramatizar os delírios e, no contexto do cenário psicodramático, com o auxílio das técnicas psicodramáticas ajudar o protagonista a olhar para si mesmo, reconhecer-se a si mesmo e ao outro. Em segundo lugar, vale reprisar, o espaço cênico é um espaço existencial, multidimensional no qual a ação dramática se desenvolve no imaginado ou “como se” para dar visibilidade ao que nos escapa do olhar viciado do cotidiano, a aquilo que “foge ao controle”.

Assim, do ponto de vista conceitual vamos encontrar afinidades, mas também divergências com o existencialismo. Por exemplo, Kierkegaard dizia que o homem acreditava que Deus o havia criado, mas de fato era o ser humano que ‘criava’ Deus. Como todos os filósofos existencialistas acreditava na condição de liberdade do ser humano e na situação de contruir o sentido de sua existência. Entretanto, para Moreno o indivíduo não cria Deus, ele é Deus. Isso lhe valeu vários mal entendidos ao longo de sua vida pois, como ele próprio explica, Deus enquanto possibilidades infinitas, potencialidade de criar seu ambiente, sua linguagem e criar-se no mundo na relação com o outro. Há certamente algo de bergsoniano na noção de tempo e espaço em Moreno. O espaço cênico é o espaço das multiplicidades, das infinitas possibilidades, onde o tempo são todos os tempos. Presente, passado e futuro na intensidade do Momento.

Outra questão é a da liberdade: para Moreno o ser humano está sempre num movimento de conquistar, construir sua liberdade e o psicodrama apenas o ajuda a fazer isso, a lidar com as tensões entre as “conservas culturais”, ou seja, as tradições da cultura (mitos, crenças, hábitos de linguagem) repetitivas e massificantes, que atrapalham o movimento da espontaneidade enquanto prontidão, para o ato, vontade de ser livre, e criatividade enquanto ação no mundo e sobre si mesmo através do olhar (o encontro, o compartilhar) do outro que dá a dimensão do social, do cultural, do compartilhado, do contextualizado. Por fim, para Moreno, o ser humano não constrói o sentido de sua existência, mas sim constrói o seu existir. Não há a preocupação com a interpretação, mas sim com o fazer e o pensar sobre o que foi ou está sendo feito. No como do aqui e agora, mais do que no porque do passado.

Moreno foi um crítico do que denomina Daseinsanalise ou Análise Existencial, apesar de ter sofrido influência de filósofos existencialistas. Compreendo que, apesar de ficarmos tentados a considerar o psicodrama uma hermenêutica, pelos mesmos motivos que o aproximamos da fenomenologia e do existencialismo, ele não resiste a alguns pressupostos paradigmáticos destas alternativas, como por exemplo ser uma ciência do ser, do espírito, da interpretação. Como afirma Moreno, o psicodrama é a ciência da ação e escreve: “o ato é anterior à palavra e a “inclui”. (Moreno, 1983, p. 125).

Há, por outro lado, aqueles que aproximam Moreno do Estruturalismo, e isso tem fundamento no próprio fazer moreniano e na sua história.

Antes de propor o Teatro da Espontaneidade, ele propos o “teatro recíproco”. Em 1920, como escreve Marineau, “Moreno usava seu próprio consultório ou ia à casa das pessoas para explorar novos meios para sair de situações psicológicas difíceis. Convocava membros próximos da família e da comunidade mais ampla. Iria representar de novo situações que tinham inicialmente trazido sofrimento, descobrindo que esta nova representação levaria à desdramatização e que a liberação muitas vezes ocorre mediante o riso…O ‘teatro recíproco’ [tem afinidade] com a teoria sistêmica e é precursor da terapia familiar e comunitária”. (Marineau, 1992, p. 78).

A noção de papel e contrapapel desenvolvida por Moreno, a sociometria, ou seja, uma medida das interações grupais no aqui e agora, a partir de diversos critérios estabelecidos pelo próprio grupo, deram origem a diversos estudos sobre a propriedade da abordagem sociodramática no tratamento sistêmico-construtivista dos conflitos nas relações familiares, individuais e grupais.

Na medida em que o psico, sócio ou axiodrama contextualizam as relações, os valores e crenças dos grupos e dos indivíduos nos grupos, é bastante compreensível que a metodologia proposta por Moreno ofereça um instrumental terapêutico rico não apenas nas abordagens familiares, mas também nas grupais e individuais; nos processos de treinamento e de aprendizagem.

Nos conceitos de rede social, “conservas culturais”, de papéis, de matriz de identidade, de “eu” e de self, apenas para citar alguns, implicam a noção de estrutura enquanto configuração possível, real e atual. Implicam virtualidade e não padrões evolutivos de desenvolvimento. Moreno é um apaixonado pelo movimento, pela intensidade do momento, pela complexidade bio-socio-antropocultural da pessoa e suas relações. Apesar de referir-se a ‘estruturas’ mentais, no meu entender, a circunstancialidade dos papéis, sua funcionalidade, não permite uma leitura que suponha uma estrutura a priorística do psiquismo, do comportamento humano, da sociedade.

 

Psicodrama, Pragmatismo e Pragmática: Conclusão

A partir do que foi exposto, compreendo que o psicodrama rompe com Empirismo Lógico na medida em que: 1. Não propõe uma visão objetivista da realidade; 2. Não supõe o conhecimento como representação da realidade; 3. Não pressupõe uma realidade independente do sujeito; 4. Não desenvolve uma visão ahistórica, descontextualizada do sujeito; 5. Não considera as questões de valores, ética e estética como pseudo-valores.

Para Moreno, a realidade é construída pelo sujeito através de sua ação no mundo e significada através do outro. Isso é um movimento que implica interações grupais, os valores, a ética e a estética de um determinado grupo social. O psicodrama constrói a realidade através da imaginação que se concretiza na ação do representar. Representar enquanto ação dramática e não como epi-fenômeno, ou seja, algo que está no lugar de outra coisa. Nele, o sujeito está implicado integralmente no seu fazer, seja pela palavra, pelo sentir, pelo gestual do corpo, pela expressividade plástica, assim como o olhar do outro através do encontro, do compartilhar.

Apesar da abordagem psicodramática suscitar questões relativas às teorias alternativas ao Empirismo Lógico, como a Hermenêutica, o Estruturalismo, compreendo que com o Pragmatismo, em especial a Pragmática, não tem apenas afinidades teóricas, mas também metodológicas. Isto porque a metodologia proposta pelo psicodrama é a da pesquisa-ação, ou seja, aquela que enseja o pesquisador a estar implicado no processo de criar e recriar suas premissas no seu fazer, significar e resignificar a linguagem como verbo e também como estética da ação em todas as suas formas.

Se para Wittgenstein a linguagem é uma forma de ação, uma prática social, para Moreno as formas de ação e a prática social são a linguagem.

Se para Wittgenstein as regras são as regras do uso, são as regras sociais, sendo as regras da linguagem como as regras de um jogo, podem mudar a qualquer hora; para Moreno os seres humanos podem estar sempre mudando as regras do jogo através do jogo.

Plagiando Wittgenstein quando se refere à investigação filosófica, é possível dizer que o psicodrama não se caracteriza assim como um saber especial, mas como uma terapêutica, um meio de “ensinar à mosca o caminho para fora da garrafa”. (Marcondes, 1994/1995, p. 222).

 

Referências bibliográficas

Marcondes, D. (1994/1995). Wittgenstein: Linguagem e Realidade. In Cadernos Pedagógicos e Culturais. Rio de Janeiro: Centro Educacional de Niteroi, p. 217-230.        [ Links ]

Marcondes, D. (1997). Iniciação À História da Filosofia - Dos Pré-Socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores.        [ Links ]

Marineau, R.F. (1992). Jacob Levy Moreno 1889-1974 - Pai do Psicodrama, da Sociometria e da Psicoterapia de Grupo. São Paulo:Ágora.        [ Links ]

Moreno, J.L. (1997). Psicodrama. São Paulo: Editora Cultrix.        [ Links ]

Moreno, J.L. (1983). Fundamentos do Psicodrama. São Paulo: Summus.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Ana Maria Otoni Mesquita
Rua José Pinhares, 57/301 - Leblon
22430-220 Rio de Janeiro - RJ
Tel.: +55-21 259-1815
E-mail: antoni@ gbl.com.br

Recebido em 02/06/99
Aprovado em 02/10/99

 

 

* Psicológa Psicodramatista pelo Delphos Espaço Psicossocial, Psicoterapeuta breve, Mestra em Psicologia Clínica na Puc - RJ
1 - Trabalho apresentado originalmente para conclusão do seminário Métodos de Pesquisa. Curso de Mestrado em Psicologia Clínica, PUC-Rio - 98.1. Coordenação Prof. Carolina Lampreia, Doutora PUC-Rio.
2 - Meus agradecimentos ao professor/doutor em filosofia Danilo Marcondes pelas sugestões precisas e enriquecedoras à versão final deste artigo.
3 -Psicodrama é a denominação genérica dada à abordagem proposta por J.L.Moreno como forma de terapia individual e grupal.Psicodrama propriamente dito trabalha a problemática do sujeito e suas relações; o Sociodrama trabalha a problemática do grupo, suas relações, crenças e valores; e o Axiodrama desenvolve a ação dramática a partir de crenças e valores do grupo.
4 - Poema de autoria de J.L. Moreno, popularizado no Brasil pela cantora Maria Betânia em seu show Rosa dos Ventos, 1975.
5 - O conceito de conserva cultural é traduzido diretamente dos escritos em inglês, cultural conserve, Já os psico-dramatistas de fala espanhola, frequentemente traduzem o conceito para tradição cultural.
6 - O espaço cênico é sempre um espaço imaginário. Pode se situar num palco real, numa sala de psicoterapia, num espaço aberto ou outro qualquer. Como no teatro, todos os participantes são convidados a fazer uma “viagem imaginária”, que simutaneamente inclui o virtual, constrói a realidade e vice-versa.
7- Nas traduções para o portugues o uso dos termos ‘eu’ e self é indiscriminado. Em inglês, Moreno dá ênfase ao termo self.