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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.20 n.2 Brasília jun. 2000

 

ARTIGOS

 

Repercussões do paradigma pós-moderno na pesquisa de relacionamentos conjugais

 

 

André Maurício Monteiro*

Universidade de Brasilia
Universidade Católica de Brasília

Endereço para correspondência

 

 


 

 

Inicio este ensaio com contextualização histórica do pós-modernismo e alguns precursores do movimento. Prossigo com avaliação crítica ao conceito de self e a inadequação do termo para o estudo do relacionamento didático, em especial quando do emprego de papéis de gênero e outros conceitos interacionais.

As idéias associadas à pós-modernidade têm posto em cheque crenças de toda uma geração recente de pesquisadores das ciências humanas. A busca pela verdade e a adoção de sistemas metodológicos provenientes das ciências exatas são relativizadas pelos pressupostos desse movimento. As manifestações do campo científico têm variado entre o acolhimento e o menosprezo dessas idéias, mas é difícil escapar da polêmica paradigmática que se impõe a todos. As reações têm revelado o desconhecimento dos pormenores do assunto e o apego à posturas estabelecidas.

A compreensão do pós-modernismo como movimento é de fato tarefa complexa. Não se pode falar de um movimento coeso, composto por idéias universalmente compartilhadas por aqueles que se intitulam pós-modernistas. Na verdade, a divergência e a setorização de idéias, em vez de conceitos gerais e consensuais, são características do próprio movimento. O emprego de qualquer meta-narrativa é visto com suspeita de obscurecer singularidades.

Algumas das principais atitudes preconizadas pelo pós-modernismo são a adesão à dúvida quanto à existência independente de objetos organizadores da experiência humana. Esse relativismo critica a noção de existência de uma essência de objetos ou pessoas. Apregoa o foco não na unidade monádica, mas na relação, na dependência discursiva dos sujeitos envolvidos em determinado contexto.

A partir desse princípio do relativismo da existência e do imperativo da relação interpessoal decorrem conseqüências teórico-práticas. A construção da realidade, por exemplo, passa a ser processo ativo e resulta da negociação discursiva entre interlocutores, em vez de uma entidade pré-existente e unitária, a ser captada e decifrada pelos indivíduos. Em vez de descoberta, a realidade seria inventada (Watzlavick,1984).

Não somente a realidade, mas também as próprias pessoas que co-constróem suas realidades não se formam automaticamente, por obra exclusiva da natureza ou da passagem do tempo. Ingressam na cultura com o auxílio de modelos sociais, tais como os papéis sociais e papéis de gênero. Essa dimensão de aprendizagem contrabalança a importância das variáveis biológicas em prol da influência social nas relações interpessoais.

Além de relativismo, papéis de gênero, construção de realidade, e assim por diante, outros termos circulam por trabalhos publicados acerca de “epistemologias contemporâneas”; métodos permitem o registro da subjetividade dos sujeitos pesquisados, em vez de privilegiarem o ponto de vista do pesquisador. No campo da pesquisa em ciências humanas prolifera a divulgação de metodologias qualitativas, desenhadas para atender a essa subjetividade.

A difusão dessa terminologia adotada por teóricos do pós-modernismo promoveu o reconhecimento da contribuição, dentre outros, de trabalhos pioneiros no campo da sociologia do conhecimento, como os de Berger e Luckman (1974). O contato com esse material propiciou a revisão das bases de paradigmas assumidas por número crescente de cientistas pesquisadores das humanidades, principalmente a partir dos anos 90. Apesar de contemporâneo, esse movimento não pertence exclusivamente à história recente. Apresenta raízes desde os primórdios do movimento iluminista.

O projeto do iluminismo propunha a busca da verdade, a compreensão da verdadeira natureza do real pelo uso da racionalidade. Inspirando o movimento da modernidade, os adeptos dessas idéias preconizam a procura da verdade com o auxílio da descoberta de regras e estruturas subjacentes à superfície do mundo. Defende-se a existência de um jeito correto de se fazer as coisas. Se porventura ninguém souber como se faz, esse tal jeito é passível de ser descoberto, porque antecede a existência de seu descobridor. As teorias sociais que organizaram-se em torno dessas idéias foram agrupadas mais recentemente sob o nome de estruturalismo.

Pensadores da pós-modernidade rejeitam tanto a idéia de que haja uma verdade universal e definitiva, quanto a de que a realidade possa ser encontrada em estruturas latentes, conforme os ditames do estruturalismo. Por essa referência ao estruturalismo, chama-se a essas propostas de sua superação como pós-modernidade, ou pós-estruturalismo.

Paradoxalmente, ao multiplicar-se o potencial para inúmeras verdades, incluem-se as premissas do próprio estruturalismo como uma delas. Todas as verdades são potencialmente válidas; mas nenhuma delas é necessariamente melhor que as demais. Relutam em aceitar que o mundo possa ser compreendido em termos de grandes teorias ou metanarrativas universalistas e transculturais mutuamente excludentes. Defendem, pelo contrário, a co-existência da proliferação e variedade de modos de vida, dependentes dos contextos sociais específicos onde ocorrem.

A pós-modernidade como movimento intelectual apresenta centro de gravidade situado não nas ciências em geral, mas sobretudo na arte, arquitetura, literatura e estudos culturais. Faz parte de um fluxo de idéias que remonta ao século XVII e constitui-se numa reação, um contraste em relação às propostas do iluminismo e da modernidade (paradigmas que a precedem historicamente).

Apesar do ar de novidade, as raízes do pós-modernismo remontam a séculos. O filósofo de história Giambattista Vico (1668-1744), por exemplo, defendeu a tese de que este mundo histórico onde vivemos é certamente criado pelos seres humanos e sua estrutura deve, portanto, ser procurada na mente humana. Não em fatos ou datas. Seus trabalhos só foram publicados após sua morte e suas idéias esquecidas por décadas (Hermans, Kempen e Loon, 1992).

A concepção da subjetividade mental do pesquisador ser decisiva para a descrição compreensiva do mundo que nos cerca foi retomada um pouco mais recentemente por Hans Vaihinger (1852-1933). O pensador alemão desenvolveu a tese do ficcionalismo em sua obra. Alegava que uma idéia cuja imprecisão ou inverdade teórica e, portanto, sua falsidade fossem admitidas, poderia, apesar de sua nulidade teórica, ter uma grande importância prática (Hermans, Kempen e Loon, 1992). Vaihinger reconhecia a presença de construtos ficcionais na ciência enquanto explicações provisórias. Seu interesse pela ciência levou-o a diferenciar o conceito de “ficção” do conceito de “hipótese”. Acreditava que a hipótese era baseada na realidade e coincidia com algum tipo de percepção. A hipótese deveria ser submetida a testes empíricos e exigiria verificação experimental. A ficção, por seu turno, demandaria uma justificação, o que implicaria o reconhecimento de seu serviço à experiência, mesmo se não comprovada de imediato. Concluiu que as ficções eram instrumentos científicos, sem os quais o desenvolvimento mais elevado do conhecimento seria impossível.

Um terceiro pensador que contribuiu para o amadurecimento das idéias pós-modernistas foi o psicólogo americano George Kelly (1905-1967). Fundador da psicologia dos construtos pessoais, Kelly é considerado um dos precursores do construcionismo social. O construto pessoal seria uma tentativa de representação do universo. Apresentou o conceito de alternativismo construtivo. Segundo esse conceito, para compreendermos o mundo precisamos interpretá-lo. No entanto, interpretações alternativas para compreensão desse mundo estão sempre disponíveis. Uma construção integral e absoluta do universo seria impossível. Sempre haveria outra interpretação alternativa possível mais adequada. Restar-nos-ia resignar a essa impossibilidade de esgotar uma interpretação totalizadora, adotando uma série de aproximações sucessivas sem nunca se chegar a uma última e definitiva (Hermans, Kempen e Loon, 1992).

As idéias dos três autores comungam da ênfase na capacidade humana para a imaginação. Todos consideravam a mente humana como fundamentalmente ativa e organizadora do meio ambiente onde o indivíduo se encontrava. As concepções resultantes desse processo de construção seriam comprovadas ou substituídas por outras mais apropriadas, dependendo da situação.

A despeito desses precursores valorizarem a capacidade do ser humano de imaginar e não tomarem a realidade como um dado a priori, houve ressalvas à pós-modernidade enquanto movimento autônomo e de fato posterior a outros, em particular o iluminismo. Para certos críticos, a pós-modernidade seria apenas uma reação aos limites impostos pelos preceitos essencialistas do iluminismo. Essa visão não seria um salto epistemológico que inauguraria nova concepção de pensamento, conforme descrição da evolução da ciência por saltos qualitativos, proposta por Kuhn (1970). Seria mais uma denúncia e tentativa de vencer os limites da modernidade e sua subordinação à hegemonia das ciências exatas.

Dentre as escolas de pensamento atuais que compõem a pós-modernidade, destaca-se o construcionismo social com uma proposta específica de recorte da realidade. Entende-se o construcionismo como incluindo, mas não indo além do que Piaget chamaria de construtivismo. O construtivismo expressa a teoria de que o conhecimento é construído pelo aprendiz, ao invés de suprido pelo professor. A aquisição de conhecimento acontece especialmente quando o aprendiz está engajado na construção de algo externo, ou pelo menos passível de ser compartilhado por seus pares. Essa concepção conduz ao modelo de um ciclo de internalização do que está fora e a externalização do que está dentro (Papert, 1990, p. 3). Em suma, a externalização do interno corresponderia ao processo descrito pelo construtivismo e a internalização da exterioridade o construcionismo.

Burr (1995) aborda a definição do construcionismo social de maneira diversa, sem contradizer outros teóricos. No seu entender, não haveria definição unitária e sim uma multiplicidade de autores que compartilham de vários pontos de vista em comum, apesar de nenhum desses pontos ser comum a todos os autores simultaneamente. Dentre os pressupostos construcionistas, destacam-se uma posição de desconfiança e crítica em relação a qualquer conhecimento consagrado; a crença na especificidade histórica e cultural que subsidia determinados valores ou conceitos; a concepção de que o conhecimento seja mantido por processos sociais, ao invés de processos individuais e o princípio de que conhecimento e ação social caminham juntos.

Assim, as posições propostas pelo construcionismo social descrevem o anti-essencialismo dos objetos; o anti-realismo a priori; a especificidade cultural e histórica do conhecimento, em vez da generalização dos processos; a idéia de que a linguagem seja uma pré-condição para o pensamento e uma forma de ação social; um foco na interação humana, na intersubjetividade e a prevalência das práticas sociais sobre as condutas individualizadas.

Dentre os vários temas de controvérsia levantados a partir do enfoque proporcionado pelo construcionismo social, destacam-se os de “self”, de “discurso” e o de “poder”. Para o propósito de avaliação de díades conjugais, o foco deste trabalho será restrito ao conceito de self e suas implicações no estudo de casais.

Um dos pontos centrais em debate hoje em dia por parte de estruturalistas e pós-estruturalistas refere-se ao conceito de self, também conhecido por ego, ou simplesmente “Eu”. A esse conceito do “eu” agregam-se conceitos ontogênicos acessórios, a saber: “narcisismo”, “identidade”, “personalidade” e “caráter”. Esses termos são decorrências diretas da organização teórica do self enquanto unidade organizadora de experiência objetiva e subjetiva do indivíduo. Supõe-se que essa existência do Eu, uma vez organizado, (a) prescinde de interações interpessoais para sua manutenção e que (b) o Eu é passível de mensuração. Essas observações alinham-se com as idéias defendidas por Goolishian e Anderson (1995), ao afirmarem que a suposição da existência do self enquanto entidade implica a existência de algo que preexiste nossa necessidade de descrevê-lo (p. 293).

O estudo do self reacende uma divergência fundamental entre essencialistas e contextualistas. Atualiza a diferença entre modernismo e pós-modernismo. Para os primeiros, as noções de ego e personalidade, acompanhados de uma postura ontogênica, poupam a Psicologia de um relativismo radical que destrói unidades teóricas de pensamento e organização emocional. Abrir mão da existência desses elementos organizadores significaria lançar ao abstrato, neste caso, à cultura e, em especial, à linguagem, toda e qualquer manifestação humana individual. Prigogine (1995) critica essa posição ao apontar para a falsa sensação de segurança proporcionada pela escola positivista, calcada nos pressupostos das ciências físicas ao afirmar que “o descobrimento de leis imutáveis da natureza aproximou o conhecimento humano a um ponto divino, atemporal” (p. 38).

Os contextualistas, por seu turno, entendem que a ênfase no conceito de ego minimiza a importância das relações intersubjetivas. Ao privilegiar a dimensão abstrata da experiência de um ego constituído por pulsões biologizadas, preserva-se invisível e ausente, o processo por meio do qual as visibilidades sejam constituídas pelo que é capturado por meio da linguagem, o impacto cultural da historicidade, da sexualidade e da socialização dos indivíduos.

Edgar Morin (1995) denuncia a cisão entre contextualistas e essencialistas ao propor um paradigma de complexidade que reconheça e tente suplantar essa polarização. Com o intuito de superar a polêmica, Morin sugere conjugar um princípio de exclusão (eu) com outro de inclusão (nós). Aceita a ambivalência entre ambos princípios, mas acredita que esses princípios sejam inseparáveis e fazem com que possamos integrar nossa subjetividade a outras diferentes da nossa, a outros sujeitos (p. 77). As idéias de Morin, se conciliatórias por um lado, carecem de uma metodologia específica que as viabilize na prática da pesquisa.

Glaserfeld (1995) destaca as incompatibilidades entre individual e coletivo evidenciadas por Morin partindo de outras premissas. Ressalta a linguagem empregada pelas pessoas com um peso semelhante ao da historicidade e sexualidade. Assim como a história e a socialização, que particularizam a experiência dos indivíduos, a língua escolhida para as descrições de realidades influi na composição única desses mundos (p.117). A língua compartilhada diferencia e coletiviza simultaneamente as experiências dos indivíduos. Se aceitarmos que convivência permite a co-experiência e a formação de uma linguagem comum, o estudo de casais precisa contemplar as características específicas dessa linguagem conjugal.

Para outro autor contemporâneo, Kenneth Gergen (1996), quando as pessoas falam de suas intenções, crenças e forma geral de ver o mundo, não estão somente gerando e solidificando acordos relacionados à ontologia do ser pessoal. Executam padrões de relacionamento dentro dos quais esses termos são integrantes essenciais. (A declaração “eu te adoro”, por exemplo, afirma não somente a condição de adoração de ser uma essência central dos seres humanos mas, simultaneamente, participa numa forma de conexão que igualmente determina o que é ser humano, o que está incluído na relação). Em relação a essas ponderações, a posição do psicólogo pesquisador é precária em dois sentidos: primeiro com respeito ao relacionamento simbiótico dele/a com as comunidades de linguagem existentes. Em segundo lugar, pelo risco aos estilos de vida que sua descrição profissional pode perturbar ou destruir.

Keller (1995) traz a discussão teórica sobre os relacionamentos entre indivíduo e coletividade para um campo mais palpável ao falar sobre o conceito de papel de gênero. A autora reconhece o quanto “as ciências naturais são consideradas como fonte de metáforas para pensar-se acerca das relações humanas” (p.143). A introdução do conceito de gênero ao estudo dos relacionamentos humanos conferiu nova direção aos estudos psicológicos. Acirrou o debate e a dimensão política das distinções entre homens e mulheres. O conceito de self, por sua própria acepção a-histórica e assexualizada, impede a diferenciação da opacidade discursiva científica, destruindo particularidades. A aceitação do conceito de gênero no meio científico acentuou processo subversivo de desconstrução de realidades propostas pelas comunidades social, política e científica.

A comunidade científica sofre os impactos dessas contribuições teóricas. As repercussões desses conceitos são evidenciados no processo de publicação de trabalhos que versem sobre essas categorias. Eagly (1995) percebe essa mudança. Critica os temas subjacentes à publicação de estudos ao afirmar que “quando psicólogos publicam pesquisa que comparam comportamento de homens e mulheres, confrontam-se com temas políticos, tanto quanto científicos” (p.145).

A pesquisa sistemática de casais exige, portanto, uma reflexão sobre o referencial teórico-metodológico a ser empregado, tendo em vista a multiplicidade de opções disponíveis no campo psicológico e as implicações políticas que impregnam o assunto. A atitude reflexiva deve levar em conta as vantagens e desvantagens das diversas escolas, bem como as características específicas do objeto de estudo. A análise sistemática da dinâmica do casal traz um problema adicional em relação ao estudo de indivíduos. A existência de dois cônjuges em interação torna menos evidente qual é a unidade de pesquisa. Onde termina o indivíduo e começa o casal é um mistério por ser desvendado. Devido à própria constituição múltipla, fica mais difícil estabelecer uma essência específica desse objeto de pesquisa. A recusa em assumir a definição apriorística do casal e o relativismo das opiniões de cada um dos cônjuges para uma auto-descrição da díade tornam a pesquisa sobre a interação matrimonial mais próxima dos pressupostos pós-modernistas.

A partir das críticas desses autores, pode-se depreender que qualquer pesquisa sobre o relacionamento conjugal que se restrinja ao self dos parceiros enquanto unidade de pesquisa, obterá dados parciais em relação às tendências atuais em ciências humanas. O fetichismo cientificista do self minimiza as repercussões do impacto social de associações afetivas heterodoxas, cada vez mais disseminadas. A investigação sobre o relacionamento conjugal precisa considerar, entre outras variáveis, os papéis de gênero, apesar de sua complexidade e implicações políticas, a linguagem e o estilo de narrativa manifestadas pelos participantes, sem excluir a postura adotada pelo pesquisador diante de seus objetos de estudo.

Os papéis de gênero, por exemplo, abrem as portas para conferir visibilidade à emergência pública de relações afetivas onde há semelhanças e dessemelhanças, sejam essas de ordem cronológica, étnica, sexual, ou sejam os desníveis de poder ou nível instrucional entre os cônjuges. Enfim, variáveis que remetem o pesquisador a toda uma dimensão política do estudo da psicologia. Hare-Mustin (1987) denunciou as tentativas de minimizar a questão ao afirmar que, ao invés de ser um tema periférico, gênero seria categoria básica sobre a qual o mundo está organizado. Trata-se de variável fundamental para a sistematização da pesquisa conjugal.

Outros aspectos específicos a serem considerados no método de estudo que reconheça as diferenças intra-conjugais seriam ainda: as diversas formas hierarquização entre os indivíduos que compõem a dupla no que concerne a importância do momento atual, eventos históricos significativos na vida de cada um e na vida em comum; o fato de os critérios de escolha que levam um dos cônjuges a escolher o outro não necessariamente coincidirem.

No caso de os critérios de escolha recíproca serem iguais, como por exemplo a “fidelidade”, não significa que a descrição do conceito entre os cônjuges coincida. Em suma: os resultados obtidos pelo conjunto diádico não necessariamente refletem posições individuais de cada esposo e vice-versa.

Nesse contexto interativo, o conceito de self pode tornar-se um obstáculo à pesquisa do relacionamento conjugal. Primeiro porque a unidade de estudo inclui dois selves, ao invés de lidar-se com um indivíduo sob avaliação de cada vez, o que supostamente duplica o desafio do trabalho. Segundo porque além das duas pessoas e suas histórias prévias, existe uma história em comum que define uma ligação muito particular entre elas, constituindo-se num segundo componente na vida de cada cônjuge. Reconhecer essa história comum amplia a unidade de estudo de dois para três elementos. A interação dos cônjuges propicia o cultivo de uma linguagem própria ao sistema marital. Para Mancuso (1996), uma visão contextualista apresenta a suposição de que certos sinais adquirem sentido somente dentro do sistema no qual a produção sígnica ocorreu. Finalmente, outro fator considera que a interação com o pesquisador irá promover a narrativa de uma série de realidades específicas à experiência dessas três pessoas e a criação de uma narrativa comum aos três participantes.

O reconhecimento da singularidade interacional entre sujeito e pesquisador impossibilita a prática da neutralidade do pesquisador. O psiquiatra Gianfranco Cecchin (1995) entende que a neutralidade pode ser entendida como uma metáfora para uma posição de “poder” do terapeuta. Confessa ter demorado a perceber que a neutralidade poderia ser vista como uma forma ou estado de atividade, ao invés de aceitação passiva.

O entendimento da complexidade desses processos interativos entre pesquisadores e os participantes da pesquisa ampliam as possibilidades de interferência na pesquisa por tantos níveis subjetivos que o conceito de self perde seu valor para esse tipo de investigação. Torna-se necessário recorrer a, ou mesmo forjar uma terminologia mais adequada para esse nível de pesquisa interacional. A ausência de neutralidade não significa a ausência de parâmetros científicos. O passo seguinte consiste em avaliar o método a ser empregado.

O método adequado para focalizar a complexidade interacional e a singularidade da configuração afetiva de cada casal deve ser subsidiado por uma metodologia qualitativa interativa. Mais do que um levantamento estatístico do relacionamento, uma epistemologia qualitativa considera a subjetividade singular do casal. Nas palavras de Rey (1997), “a epistemologia qualitativa se orienta mais a legitimar o aspecto processual da construção do conhecimento do que a defini-lo como uma expressão direta dos instrumentos utilizados. Os métodos qualitativos e quantitativos podem resultar compatíveis somente dentro de uma epistemologia alternativa ao positivismo” (p. 3).

Essa ótica da epistemologia qualitativa inclui a complexidade do relacionamento conjugal enquanto objeto de estudo. Os parâmetros pósmodernistas podem conduzir o pesquisador a deixar de lado uma visão supostamente neutra e substituí-la pelo que Cecchin (1995) descreve como uma atitude de curiosidade e busca de compreensão.

As propostas estipuladas pela pós-modernidade impelem a Psicologia a assumir uma posição de crise... de identidade, se nos ativermos ao paradigma positivista. A organização de novas propostas força-nos a repensar os métodos, a metodologia e os paradigmas que amparam as práticas de pesquisa que deles se derivam, em especial ao lidar com a interação humana.

Mais do que a busca por uma verdade única e atingível, defrontamo-nos com novas opções metodológicas e novas aproximações apropriadas para compreender a complexidade da dinâmica conjugal. Os caminhos a serem adotados para pesquisa multiplicam-se. Certa confusão inicial instaura-se devido à perda de certezas oferecidas pelo cientificismo naturalista, apresentado até recentemente como a única rota segura para a compreensão da verdade e, por conseqüência, da subjetividade.

Em vez de propor novas estratégias e abandonar as outras ferramentas metodológicas fornecidas por séculos de história científica, compete-nos redefini-las a partir das particularidades do objeto de estudo. A proposta pós-moderna convida à inclusão de novos referenciais, em vez da exclusão. Uma tarefa primeira consiste em estabelecer parâmetros gerais que discriminem as condições mais indicadas para a adoção de enfoque que contemple abordagem mais essencialista ou mais relativista, estipuladas as vantagens e desvantagens de cada uma. Mais importante do que a escolha entre uma ou outra abordagem, compete ao pesquisador a compreensão abrangente de critérios rigorosos de avaliação de seu projeto de pesquisa, mediante uma epistemologia tolerante à diversidade de posições impostas pela riqueza interacional entre pesquisador e sujeitos pesquisados.

O campo para a busca de novas zonas de sentido que contemplem a complexidade da experiência conjugal engatinha. O desafio imposto pela pesquisa de casais decorre da adequação de vários pressupostos pós-modernistas ao estudo situacional. Multiplicam-se as opções para recortes das realidades co-construídas entre pesquisador e cônjuges. Apesar de não prometerem a objetividade ou mesmo a verdade definitiva, o paradigma pós-moderno viabiliza a redefinição dos limites de intervenção e a conquista de uma visão múltipla mais abrangente dos caminhos a serem percorridos pelas ciências sobre o ser humano.

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência
André Maurício Monteiro
SQ S111 Bloco D apt. 504
70274 - 040 Brasília - DF
Tel.: +55-61 345-6782

Recebido em 07/05/99
Aprovado em 30/09/99

 

 

* Doutorando em psicologia clínica na Universidade de Brasília (UNB), Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Católica de Brasília ( UCB)