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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.20 no.3 Brasília Sept. 2000

 

ARTIGOS

 

A clínica para além do pragmatismo

 

 

Abrahão de Oliveira Santos*

Universidade do Grande ABC
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A redescrição neopragmática da psicanálise contribui para desmascarar a transcendência do sujeito e do objeto, subsumida na epistemologia de cunho representacional, mas pode restringir demasiadamente o campo da escuta analítica. Heidegger nos afasta da via representacional e abre uma escuta para o não útil, o irrepresentável, o incomunicável, o absolutamente singular da experiência. Reencontramos então a lacuna do inconsciente freudiano.

Palavras-chave: Psicanálise, Heidegger, Inconsciente.


ABSTRACT

The neopragmatical redescription of psychoanalysis contributes to unmasking the subject’s and the object’s transcendence, covered by the representacional epistemology, but it may restrict too much the field of psychoanalytical listening. Heidegger takes us out from representacional way and opens our listening to the useless, to the not representable, to that is incommunicable, to the unique of the experience. We meet again the hiatus of freudian unconscious.

Keywords: Psychoanalysis, Heidegger, Uncounscious.


 

 

O projeto epistemológico da modernidade, no qual a ciência se autoriza, está baseado na crença em um sujeito autônomo, idêntico a si mesmo, capaz de representar o mundo à sua volta e de estabelecer entre a representação e o que é representado uma relação de correspondência. É um sujeito, portanto, capaz de encontrar e dizer a verdade. Podemos considerar essa concepção o apogeu da tradição do pensamento platônico, predominante no modo de pensar atual.

No século XIX, um período marcado por críticas radicais ao pensamento representacional, o pragmatismo difundiu-se ao lado de nomes como Ernst Mach, Wilham James, John Dewey, entre outros. Do ponto de vista pragmático as crenças científicas, artísticas ou do senso comum, estão atreladas às necessidades e interesses práticos do homem enquanto organismo biológico inserido no contexto da vida e não a serviço da produção de um conhecimento que represente o verdadeiro. Os pragmatistas propõem uma mundanização (dessacralização) das crenças do homem, seja as de caráter científico ou não. Na década de 70 do nosso século esse pensamento foi revitalizado por R. Rorty1 que é um dos autores inspiradores da redescrição neopragmática para a psicanálise proposta por Jurandir Freire Costa2. Para Rorty o campo da experiência humana é constituído na prática linguageira. A tarefa mais importante da linguagem não é a de representar mas a de criar laços discursivos que compatibilizem os sujeitos, isto é, de promover a comunicação entre os membros de uma comunidade. Ela é, portanto, instrumento para tornar compatível (público) os desejos e interesses de cada um com o viver em coletividade. O pragmatismo tem como valores máximos a harmonia, a adaptação e a preservação da vida.

Na proposta de Costa de redescrição da psicanálise através do ponto de vista neopragmático, o sujeito é definido como rede de crenças e desejos. Ele define linguagem como os atos da fala e da escuta. Segue daí sua definição de desejo como aquilo que o sujeito diz que quer e a de inconsciente como aquilo que se fala do inconsciente. Para esse psicanalista, no campo da subjetividade não existe distância fenomenológica entre o que se é o que se diz que é. Somos o que dizemos que somos ou o que nos disseram que somos ou deveríamos ser3.

Diante dessa leitura da psicanálise e tomando como pano de fundo a experiência clínica, podemos colocar algumas questões, no sentido de interrogar essa perspectiva. A linguagem considerada como atos da fala e da escuta, como um instrumento para comunicar as experiências, não inclui a possibilidade do equívoco4, daquilo que cala no sintoma, do não comunicável, da falha subjetiva e enfim do que há de mais radical no conceito freudiano do inconsciente. Se considerarmos a fala com eficácia biológica, isto é, como útil para a expansão das experiências do organismo, para adaptá-lo e para harmonizar o ambiente, como pensar a dissimetria entre desejo e querer, por exemplo, quando o paciente que se queixa da obesidade não quer comer mas come compulsivamente?

O neopragmatismo afirma que o desejo é o que o sujeito diz que deseja; o sujeito coincide, nas palavras de Costa, com o que se diz dele. Não se apresenta aí a clivagem subjetiva, considerada por Freud desde os Estudos sobre a histeria. A divisão do sujeito, o sujeito descentrado, parece não ter lugar; do mesmo modo a idéia de angústia diante da falta e da incompletude parece não fazer nenhum sentido. Não há lugar para o metafenomenal pois tudo pode ser dito, e ainda há o risco de se afirmar tudo é o que é dito. Penso que é um problema uma clínica que não se ponha à escuta do não-dito, do que escapou à linguagem, e que só dê lugar ao que esteja iluminado pelo dizer.

Terapeuticamente trata-se, na proposta de Costa, de redescrever a vida, vale dizer, de construir uma narrativa capaz de torná-la harmônica e, por que não dizer, comunicável e que possa transitar para o público, para o âmbito onde os problemas colocados pelos indivíduos e pela coletividade podem receber solução. Por isso esta perspectiva, com sabor claramente liberal, acaba tendo um maior impacto político do que analítico propriamente. Na redescrição, o caráter performativo da linguagem engendra uma nova realidade mais útil às pessoas, capaz de inseri-las numa convivência mais harmoniosa, ampla e solidária. É uma terapêutica da redescrição das narrativas do paciente, como assevera Costa: se tenho a intenção de transformar o estado subjetivo X do sujeito A em um estado subjetivo Y posso descrever-me ou descrever o outro de tal maneira que a intenção se realize e a mudança ocorra5. Trata-se de uma terapêutica da imagem. Ora, o que Costa não considera é o mutismo da experiência (a exemplo da angústia) e principalmente a impossibilidade da linguagem dizê-la (comunicá-la). Na experiência da angústia há algo que resiste à linguagem, às narrativas e, ao mesmo tempo, se alimenta ali onde a palavra falha em designar. Nem tudo é constituído pelos atos de fala. A linguagem, na concepção pragmática, não tem abertura, não tem fissura, pois é instrumento do comunicar as experiências dos indivíduos e da coletividade; ela é plena porque é apenas aquilo que os sujeitos dizem, apenas atos de fala e escuta.

Vale lembrar que após a morte de Freud a psicanálise tornou-se múltipla, o que pode ter sido impulsionado pelo cartáter complexo - cheio de contraposições e formulações variadas sobre um mesmo tema - da sua obra. Ouso acreditar que há nisso alguma importância, mas não devemos esquecer, aquilo que chamamos psicanálise também deve ter seus limites.

Embora o neopragmatismo contribua para desmascarar a transcendência do sujeito e do objeto proposta pela epistemologia moderna, pensamos que esse ponto de vista restringe demasiadamente o campo da escuta analítica. Observando a clínica podemos dizer que nem toda palavra está a serviço da boa comunicação. O pragmatismo peca por não reconhecer o lugar da não utilidade, do que não foi nomeado ainda pela palavra; peca por dar exclusiva importância ao comunicado e ao público, ao que veicula uma intenção e busca a harmonia entre os homens.

Vamos apresentar agora o ponto de vista de Heidegger que também traz uma crítica do representacional e nos acompanha bem melhor quando se trata de pensar a partir da clínica, considerado-o uma alternativa ao neopragmatismo. Este filósofo nos traz outra possibilidade para a escuta dos acontecimentos clínicos, para a escuta do não útil - ou do que ainda não entrou no sistema de utilidade do sujeito e até resiste a ele - e do além da linguagem, sem que haja a necessidade de recorrermos a noções que nos remetam ao transcendente. Heidegger considera a função constitutiva do nada, do não figurado (não-ente), do irrepresentável, do incomunicável, do além das possibilidades da narrativa, enfim, do que é absolutamente singular do sujeito em sua experiência.

Em O que é metafísica6 Heidegger, no questionamento da ciência que, embora se ocupe apenas com o mundo dos entes, acaba por precisar recorrer ao nada (a ciência nada quer saber do nada) aponta o limite do pensamento representacional. Ele afirma que o nada é constitutivo do saber, está em sua base, mas é ignorado pela ciência. Pelo pensamento representacional não há possibilidade para pensarmos o nada porque partiríamos sempre da pergunta o que é o nada e responderíamos o nada é isso ou aquilo. Dessa maneira em vez de mantermos o nada como abertura, como disposição para a formação de novas figuras, ele é tomado como figura, como ente. O pensamento representacional não mantém a diferença ontológica entre o ente (figura) e o ser (nada, fundo). Cada vez que o sistema teórico fundado na epistemologia da representação pensa o ser, ele o entifica, transforma-o numa coisa, isto é, coloca no lugar do ser um substituto do ente. O pensamento ilustrado ao trazer a luz oculta nossa experiência com a penumbra e ao tomar a doutrina da luz recusa o que está para além do seu brilho e que é condição da iluminação. É então que Heidegger assume a tarefa de investigar o nada fora do campo da representação. Ele usa principalmente as vias das disposições afetivas, vale dizer, privilegia a experiência com o que nos afeta, com o que nos incomoda, que muitas vezes é o que não está na expectativa, não está representado nas falas. Diante da abertura para o novo, para a total alteridade da figura (ente), diante do nada, é o que nos diz Heidegger, somos afetados pela angústia primordial. A disposição diante de uma pura abertura, diante do irrepresentável, nos remete a nossa própria falta constitutiva, nos remete à falha da linguagem que não tem todo o dizer e ficamos diante da nossa singularidade. Ao fugir do nada, ao negar a angústia, criamos estruturas, deuses, imagens, e passamos a apresentar o caráter de unidade e mesmidade, de presença estável e consistente dos entes, embora o equilíbrio alcançado seja facilmente ameaçado quando novos acontecimentos nos afeta, exigindo novas respostas. A tagarelice é uma das formas de fuga da experiência do nada e da angústia primordial, uma fala vazia que evita o comprometimento do sujeito com sua incompletude.

É curioso que Heidegger não tenha visto nenhum sentimento angustiante ante o próprio entulho de representações a que a falta originária estaria sujeita, ante a obliteração do nada constitutivo. Ao contrário, em sua maneira de ver, o homem sempre foge para os entes. Mas, uma vez que a abertura é a condição para o novo, para a criação e, podemos arriscar, para a manutenção do sujeito do desejo, não deveria também a obliteração da abertura provocar mal-estar? É o caso de pensarmos no drama de pacientes marcado pela recusa da palavra médica que pretensamente procura responder ao pedido de atenção que fazem. Outro exemplo é o mecanismo de formação da fobia que, segundo Freud, é a tentativa de fuga da satisfação de um instinto. Nesse caso o sujeito procura manter uma distância entre o que é buscado e o que é alcançado, sustentando um diferencial de realização que não permite a inércia e o impulsiona para o crescimento7, para a busca de novas configurações dos entes.

Não estou com isso estabelecendo a igualdade entre o nada heideggeriano e o diferencial pulsional em Freud. A tarefa de fazer aproximações entre a filosofia e a psicanálise é assaz arriscada. Explorar as aproximações entre um e outro não é tarefa possível de ser feita aqui. A leitura de Heidegger, entretanto, nos possibilita uma disposição em que as questões psicanalíticas, principalmente as mais diretamente ligadas à escuta clínica, avançam com força e vontade de se mostrar, com nuanças revitalizantes no seu engajamento analítico. O presente ensaio teve a preocupação apenas de apontar, num debate que hora se faz, a restrição que a concepção neopragmática pode trazer à escuta psicanalítica, bem como apresentar um pensamento filosófico capaz de servir como alternativa para uma parceria com a psicanálise, inclusive podendo contribuir no sentido de trazer-lhe um clima revitalizador. Em Freud e em Heidegger podemos observar um lugar para o não representável, para o inaudível e o fora da linguagem, e que é abertura e disposição para o crescimento e a criação de novas figuras denotativas das subjetividades. Embora a filosofia de Heidegger esteja distante da experiência psicanalítica, notamos, tanto no que diz respeito a uma certa “metodologia” - uma disposição para a escuta do novo, do que ainda não se constituiu como experiência histórica do sujeito e portanto não está na ordem da comunicação - como no que diz respeito ao que a partir daí se encontra, a experiência com o nada, com a pura abertura e a angústia primordial, que estimula o pensamento que se coloca a partir da clínica e amplia as possibilidades de escuta de uma fala sincrônica, disruptiva, que produza enigmas e traga à baila outra cena. Assim, em vez de uma psicanálise mais voltada para a representação e para a religação, no que diz respeito a uma palavra atrelada às intenções dos sujeitos, consideramos uma psicanálise que valoriza a ruptura e o desalojamento, por exemplo, para que o sujeito saia de sua posição “doente” e passe a suportar sua existência e sua experiência com a incompletude e o desejo; em vez de um sofrimento histérico um sofrimento comum.

À guisa de concluir penso que o campo psicanalítico lida efetivamente com o que não pode ser comunicado. Quando a comunicação é muito boa não há nada de novo na experiência e o indivíduo não precisa procurar um analista. A experiência clínica nos mostra que o que traz o paciente à análise não é o que o sujeito fala, mas o que, em o afetando, deixa-o num estado de angústia e impossibilidade de resposta e precisa ser recuperado e posto no trânsito da sua história.

 

Referências bibliográficas

Costa, F. (1995) O sujeito como rede de crenças e desejos. Em: A face e o verso. Tese de professor titular na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.        [ Links ]

________ (Org.) (1994) Redescrições da psicanálise. Rio de Janeiro: Relume Dumará.        [ Links ]

Freud, S. (1920) Além do princípio do prazer. Em: Obras psicológicas completas, vol. XVIII. Rio de janeiro, 1976.        [ Links ]

Heidegger, M. (1979) O que é metafísica. Em Coleção os Pensadores – Heidegger. São Paulo: Abril.        [ Links ]

Loparic, Z. Ética neopragmática e psicanálise. (Mimeo.)        [ Links ]

Rorty, R. F. Relativismo: encontrar e fabricar. Em: Relativismo como visão de mundo. Banco Nacional de Idéias.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Abrahão de Oliveira Santos
Av. Alfonso Bovero, 336, ap. 31 - Sumaré
01254-000 São Paulo - SP
Tel.: +55-11 895-9237
E-mail: abrahaosantos@hotmail.com

Recebido em 27/07/99
Aprovado em 02/10/99

 

 

* Psicanalista, terapeuta institucional, professor do Curso de Psicologia da Universidade do Grande ABC e doutorando em Psicologia Clínica na PUC-SP.
1 - Para um melhor contato com as idéias neopragmáticas de Rorty ver seu texto Relativismo: encontrar e fabricar.
2 - As idéias do neopragmatismo que apresento aqui podem ser encontradas, além do texto de Rorty, em Costa, J. F. O sujeito como rede de crenças e desejos. O leitor pode consultar também Costa (org.) Redescrições da psicanálise.
3 - Costa,Op. cit., p. 26.
4 - Em Ética neopragmática e psicanálise Z. Loparic aponta uma série de problemas na abordagem de Costa da psicanálise em relação aos conceitos de inconsciente, sujeito, pulsão, entre outros. O texto está sendo publicado na revista Percurso.
5 - Costa. p. 31.
6 -Heidegger, O que é metafísica.
7 -Freud, S. Além do prin-cípio do prazer, p. 60.