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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.20 no.4 Brasília Dec. 2000

 

ARTIGOS

 

Arthur Bispo do Rosário a arte bruta e a propagação na cultura pós-moderna

 

 

Ilka de Araújo Soares*

Escola de Comunicação e Cultura da UFRJ

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O biográfico como representação de alteridades será fonte de explanação neste estudo, cujo interesse advém da considerável repercussão da produção artística de Arthur Bispo do Rosário no circuito cultural contemporâneo e da peculiar execução e expressão de sua obra, produzida mediante diretrizes da atividade delirante, tão proeminentes no decurso de sua psicose.

Palavras-chave: Bispo, “Arte bruta”, Biografia, Alteridade, Pós-moderno.


ABSTRACT

This biographical paper, as a representation of alterity, will be the source of explanation in this study, which interes comes fromthe considerable echoing of the artisticproduction by Arthur Bispo do Rosário in the contemporary cultural circuit and of his peculiar execution and expression of his work, produced by the profusion of his delusional activity, so prominent along his psychosis.

Keywords: Bispo, Art brut1, Biography, Alterity, Postmodern.


 

 

Este estudo abordará a vida e a obra de Arthur Bispo do Rosário na contemporaneidade, com o intuito de enfocar dois pontos básicos:

1). A arte bruta e a cultura: o surgimento de identidades culturais e a criação de novos movimentos no interior do espaço cultural, consensualmente ligados ao direcionamento da cultura pós-moderna no sentido de absorção e profusão das diferenças e conseqüente fomentação de acepções artísticas contraculturais. Neste contexto, os museus pós-modernos vêm como modelo alternativo, apresentar-se como “novas instituições de registro, preservação e análise de produtos culturais”. (Feartherstone, 1995, p. 132)

2). O biográfico, endereçando aqui, o olhar diretamente, para o curso de uma psicose, situando a arte como recurso de direção e recriação do mundo de um sujeito e como possibilidade de revelação e legitimação de uma história. A arte de Bispo, expressão da “desrazão”, advinda da imersão na experiência viva de si mesmo, reverbera enquanto perspectiva de redimensionamento da representação social das alteridades que vem veiculada à narrativa da história de sua vida e obra.

 

Bispo e a Arte Bruta

Bispo já evidenciara seu talento artístico no período anterior ao início das internações psiquiátricas quando há registro de elaboração de pequenas esculturas de madeira e objetos diversos. Foi entretanto, durante os anos em que esteve internado na Colônia Juliano Moreira (50 anos) que produziu a maioria de seus trabalhos dentre pinturas, esculturas, bordados e colagens com utilização de materiais os mais variados possíveis.

Seus trabalhos foram expostos pela primeira vez fora da Colônia em 1982, na mostra “À Margem da Vida”, organizada pelo crítico de arte Frederico Morais, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

Entre 1989 e 1993 foram expostas seis mostras individuais de Bispo em várias instituições culturais e museus do país, sob curadoria de Frederico Morais. Tais eventos contaram com um público de visitantes aproximado de 100 mil pessoas. A exposição de Bispo no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro foi avaliada como de absoluto sucesso, promovendo publicação de reportagens, ensaios em jornais, revistas e artigos no país.

Internacionalmente, a obra de Bispo participou da mostra “Viva Brasil” em uma das principais instituições culturais de Estocolmo, na Suécia. Representou em 1995, o Brasil na 46ª Bienal de Veneza, reconhecidamente o principal evento de artes plásticas do mundo. Repercutiu daí a série de convites posteriores para que a Colônia expusesse sua obra nos EUA, México e Espanha.

A ressonância pública de sua vida e obra impulsionaram a realização de filmes: “O Prisioneiro da Passagem”, por Hugo Denizarte (1982), “O Bispo do Rosário” por Helena Rocha e Miguel Pozdoravski, etc.

Alguns críticos de arte e artistas se mostraram particularmente atentos para a modalidade pouco convencional de confeccionar obras sem consideração pelas convenções acadêmicas, formalismos ou enquadramento estilístico.

O pintor francês Jean Dubuffet foi um dos primeiros a se interessar pela produção artística de pacientes psiquiátricos e de outros despossuídos de formação acadêmica. Denominou “Arte Bruta” a estas produções atípicas inventadas a partir somente dos impulsos do artista.

Em 1949, este artista trouxe à baila a questão do pleonasmo em se intitular “arte de doentes mentais” como algo distinto da arte em si, apontando a impossibilidade de se esperar dela um modelo de conformidade e considerando a loucura antes como um fator produtivo, fecundo, necessário para a produção artística.

A inauguração do Museu de Imagens do Inconsciente em 1952 (com finalidade de estimular produções e comportar peças de pacientes) por Nise da Silveira, culminou após a iniciativa desta médica, de abertura de um ateliê de pintura para os internos do Centro Psiquiátrico Pedro II (Rio de Janeiro) em 1946, acenando como uma contraproposta ao panorama de tratamento psiquiátrico da época, norteado pelo uso de eletrochoques, sedação medicamentosa excessiva, intervenções cirúrgicas cerebrais, punições, etc.

A obra de Bispo é destacada como algo que desponta e toca no nível da transcendência, conforme nos falam espectadores de suas exposições, dadas as condições de adversidade extrema com as quais contou desde a primeira internação em 1938. Tudo no ambiente, desde a precariedade das instalações, às técnicas de tratamento vigentes na época, apontava para a propensão previsível de “uma vida vegetativa, desprovida de afeto e beleza”(p. 4), conforme descreveu Frederico MORAIS (1998) no texto de apresentação da exposição de 1993.

 

Delírio, Arte e Pós-Modernidade

O potencial artístico de Bispo já demonstrado em ocasiões em que esteve fora da Colônia, veio apresentar-se enfaticamente após um episódio ocorrido em 1967. De acordo com Frederico Morais, estando internado na Colônia e recluso na solitária após agredir outro interno (o que reconhecia como função de “faxina” contra a rebeldia de outros pacientes), foi acometido por uma alucinação auditiva que dizia “Está na hora de você reconstruir o mundo”. Quinet (1997) situa este momento como “desencadeante de sua criação como sintoma” (p. 226). A partir daí, Bispo nega-se sair da reclusão (a qual permaneceu por 7 anos), decidido a acatar a ordem recebida, usando então a arte, para retratar “tudo o que existe no mundo” (p. 226) no momento de sua passagem.

Sua obra é portanto, fruto de um intencional inventário do mundo, advindo da impossibilidade de reconstrução pela via única do delírio, que no seu caso constituía na missão de representar a existência da terra.

É assim que Bispo irá utilizar objetos e dejetos recolhidos no cotidiano de sua permanência na Colônia, para fabricar miniaturas (utensílios domésticos, maquetes de esportes, etc.) produzir esculturas mumificadas (elaboradas com a linha azul que desfiava de sua veste de interno), bordando painéis nos quais escrevia com agulha e linha nomes de pessoas, países, acontecimentos, acidentes geográficos, etc.

Contextualizando a produção artística de Bispo na contemporaneidade, é notório que à revelia de sua inserção ou participação em eventos do circuito cultural, realizou obra que a crítica unanimemente posiciona como a melhor produção da vanguarda internacional. É notável a consideração de que após as sucessivas exposições e mostras, tem influenciado sobremaneira, a produção de artistas mais jovens, direcionando a visada da arte atual para além das concepções de arte comumente perfiladas. A arte de Bispo tem sido algumas vezes apontada como uma transgressão na criação. Arte emergente das sucatas, daqueles que “nunca vão às galerias, museus ou bienais” (Aguilar, 1998, p. 3) e que aparece exaltada à categoria de manifestação máxima do instinto criador.

Alguns autores situam esta transgressão na arte historicamente, como Feathrstone (1995),que discorre sobre a importância de algumas correntes artísticas (Dadaísmo, Surrealismo) que se “tornaram fundamentais para o pós-modernismo na década de 60, pois procuraram abolir as fronteiras entre arte e vida cotidiana para mostrar que os objetos mais banais da cultura de massa, poderiam ser estetizados e introduzidos como tema de obras de arte, ou incorporados em sua estrutura formal”. (p. 138)

A discussão inicial a respeito da arte bruta e do contra-senso atual na delimitação da chamada “arte-dos-loucos”, porta em si questões cruciais. A absorção cultural de formas originais e diversas de manifestações expressivas, e a incorporação de modelos informais, distanciados de uma lógica linear e coerente, são aspectos em proliferação e que perpassam as mais diferentes modalidades artísticas contemporâneas (o cinema, a música, a literatura). E se isto ocorre no nível da arte, é por esta consistir uma esfera de veiculação e retração daquilo que vislumbra-se na totalidade do processo sócio-cultural.

O que alude particularmente à obra de Bispo é que além da originalidade de sua execução, há a evocação imediata desta com a genuína figura de seu autor e dos alicerces de elaboração de sua obra: alguém movido por delírios místicos, normativamente situado à “margem” conforme diriam antigos teóricos sociais, cuja intitulação categórica o situaria nos rótulos de estigma, exclusão, marginalidade social.

E eis que Bispo desponta nesse estágio de produção cultural pós-moderna, exercendo fascínio e admiração no público, descortinando a inadiável necessidade de redimensionamento dos valores, de inclusão, na multiplicidade de discursos, de uma ótica que abarque as alteridades.

Neste sentido, é legítimo recorrer aqui, às literaturas que têm abordado os fenômenos culturais da contemporaneidade, em especial no que tange ao “surgimento de novas subjetividades”.

Stuart Hall (1997) fundador de um dos grandes centros culturais na Inglaterra e responsável por amplo debate cultural sobre esta questão descreve “um processo amplo de mudanças que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência, que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social”. (p. 7)

Situando a idéia de pluralização identitária, expõe a definição de identidade pela via histórica, apresentando a produção do sujeito pós-moderno, “como não tendo uma identidade fixa, essencial e permanente” (p. 13) mas sim “transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (p. 13)

“... à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis” (p. 14)

Ao processo de “globalização” presente nas sociedades pós-modernas, atribui-se a incrementação do movimento de mudanças constantes, rápidas e permanentes, que atravessando as fronteiras nacionais, integra e conecta “comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo em realidade e em experiência, mais interconectado”(p. 71).

O que observamos é o aumento do ritmo de integração global, acelerando fluxos e laços entre nações. Paralelo a isso, há consideração de um “colapso nas identidades culturais fortes” (p. 78), e conseqüente produção de fragmentação de códigos culturais e multiplicidade de estilos.

No texto de apresentação da exposição de Bispo do Rosário, na Bienal de Veneza, Edmar Ferreira (1998), então organizador da delegação nacional sobre encargo da Fundação de São Paulo, expõe a função de conexão da produção artística de Bispo com outras nações. Cita:

“A representação Brasileira na XLVI Bienal de Veneza atende à utopia da arte moderna: promulgar a promessa de felicidade, inerente a toda criação artística, seja através de artistas que não tiveram uma educação formal, seja através de outros com formação erudita”. (p.2)

O autor acrescenta a expectativa de “... superação de barreiras culturais, econômicas e políticas, o lugar onde os contrários possam conviver sem mediação”. (p. 2)

O alargamento de fronteiras desta arte, retrata que a ampliação do universo estético não tem se deixado domar por uma tendência unilateral à homogeneização cultural, também oriunda do processo de globalização. Na verdade, há ao lado da direção à homogeneização global, “uma fascinação com a diferença, com a mercantilização da etnia e da “alteridade”(HALL, 1997, p. 83)

 

Arte e Memória: os Museus

Os coordenadores da exposição de Bispo no Museu de Arte Moderna – RJ em 1993, Marcus Costa e Denise Mattar, citam no texto de abertura, o “caráter político” desta proposta de exposição:

“É preciso conscientizar as autoridades competentes, o Ministério da Saúde e o Ministério da Cultura, da necessidade de preservar adequadamente a obra de Bispo, um patrimônio da cidade do Rio de Janeiro.

(...) Apesar de constantemente solicitada para exposições internacionais, essa obra tem se mantido apenas graças aos esforços da Associação dos Amigos da Colônia Juliano Moreira e Museu Nise da Silveira, representada por pessoas dedicadas como Denise Corrêa e Frederico de Morais.

Devido a fragilidade das peças, executadas com materiais precários e perecíveis, é urgente dar condições à Colônia Juliano Moreira para que essa obra não se perca.

É imprescindível que as autoridades federais resolvam impasses burocráticos e se dediquem a manter e preservar esse extraordinário patrimônio para as gerações futuras (...)”. (COSTA & MATTAR, 1998, p. 1-2)

A preocupação com a conservação de peças artísticas no texto acima coaduna com a ênfase atual sobre a “memória” nas sociedades modernas. O processo de aceleração e o desaparecimento de memórias espontâneas têm impulsionado à necessidade de reconstituir objetos, arquivos, apoiar-se em arcabouços exteriores. Face a este esvaziamento da memória tradicional, NORA (1984) menciona ocorrer a veneração pelo vestígio, a tendência em “coletar lembranças assiduamente, testemunhos, documentos, imagens, discursos, sinais visíveis do que aconteceu”. (p. 9)

A ampliação das referências sociais e culturais com proliferação de alusões múltiplas e dispersivas, tem levado paralelamente à tentativa de render os objetos ao aprisionamento na tradição, na ordenação e preservação.

Os museus confrontados com pluralismo cultural dos últimos anos tem se posicionado diante da “necessidade de criação de meios alternativos de atividades”, conforme nos menciona HUYSSEN (1997, p. 246).

O reconhecimento da necessidade de preservação da obra de Bispo remete-nos ao que este autor aponta sobre a natureza de “objetos auráticos (...) fora-de-série como fator-chave da museofilia”. Continua:

“... A solidão (dos objetos auráticos) (...) é o suficiente para reencantá-los (...) É precisamente o isolamento do objeto de seu contexto genealógico que permite a experiência do ‘reencantamento” através do olhar museico”.

É interessante retomar um trecho da citação sobre a convocação para a preservação da obra de Bispo, quando os então coordenadores, mencionam os esforços da Associação dos Amigos da Colônia Juliano Moreira e do Museu Nise da Silveira como fundamentais para sua manutenção e conservação. Ressalta-se aqui a idéia de “Projeto” conforme nomeia Gilberto VELHO (1994) ao resultado de uma “deliberação consciente a partir das circunstâncias do campo de possibilidade” (p. 103). Pondera que o Projeto existe “fundamentalmente como meio de comunicação, como maneira de expressar, articular interesses, objetivos, sentimentos, aspirações para o mundo” (p. 103). É pois “um instrumento básico de negociação da realidade (...) importante para a continuidade de trajetórias individuais e sociais” (p. 102-103).

A particularidade das questões aqui tratadas, têm como referência um sujeito psicótico a quem pouco importava o endereçamento da arte ao social e cujas circunstâncias sinalizavam que, apesar do uso que Bispo fazia de temas e objetos presentes na realidade, transformando-os em caminhos inusitados, trilhados com o veículo da arte , vivia na “solidão da incomunicabilidade” (p. 96) com o Outro cultural. O projeto de organização, manutenção e valorização advém neste caso, por intermédio dos interessados, atentos e admiradores. Isto suscitaria um novo campo de enfoque sobre a localização e a natureza de algumas propostas institucionais atuais concernentes à doença mental, como os conhecidos projetos de desospitalização, luta antimanicomial, inserção comunitária, etc., e da ressonância midiática que estas propostas podem suscitar como a conseqüente invocação de um reposicionamento da representação social destas alteridades.

 

Biografia

Na caracterização sobre as sociedades industriais (em contraposição às pré-industriais), NEIVA (1996) frisa o movimento de absorção da cultura pela produção, tornando consumível, até mesmo o que não parece consumível, como por exemplo, as formas de comportamento. Afirma: “O Comportamento torna-se um tema constante porque sua apresentação num veículo de massa significa a exposição de uma possibilidade normativa” (p. 80).

A busca de fixidez em contraposição às mutações velozes impulsionadas pela aceleração de transformações no cenário sócio-cultural, apontam para a tentativa de garantir certa ancoragem, através do relato de histórias de vida.

Este suposto movimento de resgate da importância das experiências individuais, tem se revelado através de vertentes bastante múltiplas de alternativas. É certo que os relatos tem se apresentado com conotação de excepcionalidade e de presença, na imaginação pública. Assim é que existem as histórias de vida triviais, as consideradas exemplaridades e as que enfocam alteridade. As vivências exóticas, o diferente, “a alteridade, mesmo a dos excluídos ou dos que vivem à margem, tem agradado como objeto de relato” (FILIZOLA & RONDELLI, 1997, p. 221).

No que concerne a biografia de Bispo do Rosário as fontes levantadas (‘Arthur Bispo do Rosário - O Senhor do labirinto - 1996 de Luciana Hidalgo; Catálogo da exposição ‘Registros de minha passagem pela Terra - uma biografia em curso - 1990 de Frederico Morais e textos diversos colhidos via Internet nos sites das instituições ‘Fiocruz’ e ‘Colônia Juliano Moreira’) inclinam-se à explicitação do peculiar posicionamento deste sujeito frente a realidade e no aspecto místico - delirante que permeou sua produção artística, com a ressalva de que os dados biográficos reais são escassos.

As apresentações biográficas trazem dados históricos pouco precisos com apresentação de afazeres e ofícios do passado, retratados na materialização de muitos objetos de sua obra (objetos - embarcações, peças bordadas com nomes de lugares, países, marinheiros, etc., em uma referência a atividade de fuzileiro naval).

A descrição de uma existência silenciada pela inacessibilidade na partilha de códigos normatizados, ganha voz através da fala de entrevistadores, profissionais e conhecidos que emergem como personagens de uma história legitimada na elaboração artística.

Nestas fontes, foram ressaltados alguns episódios marcantes desde a eclosão da doença, à realização da obra e o percurso da vida de Bispo, mencionados brevemente aqui.

O desencadeamento do surto de Bispo ocorreu em dezembro de 1938, reconstituído mais tarde por ele quando disse ter visto Cristo descer no quintal da casa em que residia, acompanhado de sete anjos azuis envolto numa luz irradiante. Após o ocorrido, ficou dois dias vagando pelas ruas, tenho sido preso e internado com diagnóstico de esquizofrenia paranóide.

O desencadeamento de sua psicose vem marcado por uma hipertrofia do imaginário. Lacan (1958) nos informa sobre a tentativa de reconstrução do sujeito pela via da “alusão imaginária” (p. 187) e sobre o uso deste recurso pelo psicótico, na circunstância de manifestações psíquicas inusitados e ameaçadoras, em função da carência de amarras simbólicas.

Dado o desmoronamento dos pontos de referência deste sujeito, ao que supunha-se (conforme relatos) uma existência anterior ao surto norteado por um “precário mas eficaz equilíbrio” (SANTOS, 1991, p. 37), são mencionados episódios de reagudização com escassos períodos em que se manteve afastado das internações psiquiátricas.

Foi após a audição alucinatória de que haveria “chegado a hora de reconstruir o mundo” que Bispo incumbiu-se na realização de sua missão, construindo então sua obra.

Em 1985, o médico que atendia os pacientes do Pavilhão Ulisses Viana, na Colônia, anotou sobre Bispo: “vem mantendo a mesma conduta, permanece em seu quarto, realizando diversos trabalhos manuais criados por ele ...”. Um ano após escreveu: “calmo e orientado, vive num mundo particular, onde se julga iluminado e profetiza o fim do mundo brevemente. Está na terra para cumprir sua missão. Recusa qualquer medicamento”. (MORAIS, 1998, p. 6)

Por ocasião de sua morte em 1989 (quando contava com a idade de 78 anos) recebeu a seguinte saudação fúnebre de um companheiro da Colônia: “Nós internos nos sentimos orgulhosos de ter alguém assim”. No final da cerimônia sugeriu que “as pessoas ali presentes dessem um agrado para os coveiros, pois o Bispo era uma pessoa ilustre e em enterro de gente ilustre os parentes dão um agrado para os coveiros”. (p. 4)

 

Considerações Finais

Apesar dos adjetivos repetidamente dirigidos a Bispo e sua Obra, ele sempre afirmou que as matérias escritas em revistas e jornais sobre sua pessoa “não o reconheciam”. Apenas uma lhe agradou. Há 20 anos a Revista Veja publicou em página inteira, o anúncio de uma coleção:

“... luxuosamente encadernada sobre a história de Jesus, tendo por título ‘Cristo está entre nós’. Este exemplar da Veja, guardado com cuidado, traz a única reportagem que o Bispo acredita merecer: o texto do anúncio foi pacientemente reproduzido por ele num bordado e posto em destaque à entrada de seu quarto”. (INSTITUTO MUNICIPAL DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE JULIANO MOREIRA, 1998, P. 1)

Esta passagem retrata bem o que Quinet marca sobre a arte de Bispo, não endereçada ao Outro da cultura e “sim a Deus, para quem se propõe apresentar todas as coisas da terra” (QUINET, 1997, p. 234).

A despeito do laço social, não incluso no rol dos significantes possíveis para Bispo, a divulgação de sua obra e dos alicerces de execução desta, tem suscitado interesse pela sua biografia, pela organização e preservação de seus trabalhos. Se como apontam Deleuze e Guattari(1995) “Uma sociedade é perpassada por diversas semióticas e possui de fato regimes de signos mistos” (p.23)pode-se dizer que Bispo cria através da arte um modo de inserir-se no mundo, como um campo novo de ação intermediado pela originalidade de sua relação com a realidade.

Pensadores atuais debruçados sobre a problemática da globalização, tem alertado para a complexidade deste processo e para os efeitos que transcendem a esperada tendência à homogeneização e segregação das diferenças. O desenvolvimento da mídia convoca também os indivíduos à absorção e reconciliação de mensagens muitas vezes conflitantes com “valores e crenças enraizadas nas práticas rotineiras da vida cotidiana” (THOMPSON, 1998, p. 158) através do acesso a novos tipos de materiais simbólicos. Lido de outra maneira, é possível articular que os vários registros semióticos que engendram a sociedade de consumo e a velocidade das informações no capitalismo, são passíveis de reconfiguração e dilaceramento pela convocação lançada por exemplo ,pela experiência criadora de uma obra de arte. Burrowes(1999)discorre sobre uma modalidade alternativa de comunicação que permite compreender “a máquina semiótica-Bispo”:

”Uma linguagem capaz de arrancar-nos à nossa prisão subjetiva do mesmo, tragando-nos para uma diferente possibilidade de subjetivação. Nadar no contrafluxo do consumo.” (p.43)

A possibilidade de emergência de múltiplas modalidades de manifestações culturais e de negociação entre segmentos sociais diversos, têm adjetivado Bispo, na concepção social dos discursos, como excepcionalidade artística. É possível vislumbrar que a aclamação da obra de Bispo e sua propagação em distintas esferas do universo midiático constitua um veículo de redimensionamento da concepção social da loucura na contemporaneidade.

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência
Ilka de Araujo Soares
Rua Ministro Amarílio Lopes Salgado, nº 76 apto 402 - Cascatinha
Juiz de Fora
Cel.: +55-32-9102-9677 / Tel.: +55-32-3236-1231
E-mail: ilkaars@terra.com.br

Recebido 3/08/99
Aprovado em 22/09/00

 

 

* Psicóloga, especialização em psicanálise pelo CES JF/MG; Mestranda pela Escola de Comunicação e Cultura da UFRJ.
1 Termo criado pelo francês Jean Dubuffet em 1945.