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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.20 n.4 Brasília dez. 2000

 

ARTIGOS

 

A autonomia do sujeito psicótico no contexto da reforma psiquiátrica brasileira1

 

 

Núbia Schaper SantosI, *; Patty Fidelis de AlmeidaII, **; Ana Teresa VenancioIII, ***; Pedro Gabriel DelgadoIII, ****

I Universidade Federal de São Carlos
II Escola Nacional de Saúde Pública / Fundação Oswaldo Cruz
III Núcleo de Pesquisa do Instituto Franco Basaglia - RJ

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Mais de uma década após o início do movimento pela Reforma Psiquiátrica no Brasil, novas modalidades de assistência ao dito “louco” como CAPS, NAPS, hospitais-dia, foram implementadas. Nesse sentido, o momento atual parece ser de reflexão e avaliação destas práticas com vistas a apontar quais transformações podem ser assinaladas em decorrência das mesmas.

Palavras-chave: Autonomia, Saúde mental, Centro de atenção psicossocial.


ABSTRACT

More than a decade after the beginning of the moviment towards Psychiatric Reform in Brazil, new forms of assistance for the so-called “mad”, such as CAPS, NAPS, hospital day-care, have been set up. Thus, the current moviment appears to be one of reflection and the evaluation of these practices with a view to pin-pointing further developmental measures.

Keywords: Autonomy, Mental health, Attention psycho-social of centre.


 

 

A partir da década de 70, percebe-se no país alguns movimentos de crítica ao modelo hospitalocêntrico no que se refere à assistência psiquiátrica. A violência nos manicômios e a exclusão já eram pautas de discussões que reivindicavam os direitos do doente mental. Os principais questionamentos se relacionavam à natureza do modelo privatista e à sua incapacidade de produzir um atendimento que contemplasse as necessidades de seus usuários. Entretanto, ainda não havia um modelo de cuidado muito claro e nem uma proposta estruturada de intervenção clínica.

Foi só na década de 80 que o movimento pela reforma psiquiátrica, no Brasil ganhou importância, tanto política como social. Tal período, marcado pelo final da ditadura, abriu a possibilidade de mudanças no setor da saúde e permitiu a participação de outros setores, que não os médicos, nesse processo. Ganhou ênfase também uma série de críticas às noções de clínica e cidadania, ambas ancoradas em uma concepção universal de sujeito, em que a normalidade deveria ser reconstituída. Para Birman (1992), a construção de um novo espaço social para a loucura exigia que a noção de cidadania e a base do saber psiquiátrico fossem colocados em debate. Era preciso inventar novos locais, instrumentos técnicos e terapêuticos, como também novos modos sociais de estabelecer relações com esses sujeitos.

Nessa trajetória, a influência da psiquiatria democrática italiana, a partir de meados dos anos 80, ganhou força no país. Este movimento propunha o questionamento da suposta universalidade do racionalismo científico das psiquiatrias, desvelando sua pretensa neutralidade. Novos protagonistas, como usuários e familiares, aumentaram o coro de reivindicações por outras possibilidades de atenção, espaços e avanços técnicos. Corroboraram esta tendência, a implementação de experiências de hospitais-dia; a inserção do movimento psicanalítico em vários setores, a realização da 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental no Rio de Janeiro, em 1987, considerada um marco histórico na psiquiatria brasileira; a criação do Centro de Atenção Psicossocial Professor Luiz Cerqueira, em São Paulo, no mesmo ano; a intervenção, em 1988, na Casa de Saúde Anchieta, em Santos e o Projeto de Lei do deputado federal Paulo Delgado.

Nos anos 90, assistimos a criação e consolidação de propostas como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), Lares Abrigados, etc., embora, desde os anos 80, algumas experiências já estivessem sendo desenvolvidas (Venancio, 1990) e apesar do fato dos hospitais psiquiátricos ainda absorverem a maior parte das verbas destinadas à assistência em psiquiatria (Alves, 1994). A esta década parece ter ficado o papel de, efetivamente, implementar novos dispositivos, sem perder o compromisso da reflexão e do fluxo constante de avaliações, sem os quais corre-se o risco de produzir novos enclausuramentos e novas hegemonias.

Buscando refletir mais aparudamente sobre as práticas substitutivas em Saúde Mental, este artigo é o resultado de uma pesquisa que teve por objetivo investigar como um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), localizado no estado de Minas Gerais, trata a questão da produção de “autonomia” dos sujeitos psicóticos atendidos pelo serviço. A indagação é pertinente por dois motivos distintos. A discussão sobre a autonomia dos sujeitos psicóticos põe em debate os tradicionais conceitos de alta e cura em psiquiatria. Além disso, depois de aproximadamente uma década de implantação dos “novos serviços”, este parece ser o momento de refletir e avaliar possíveis transformações no campo da atenção em saúde mental.

 

Algumas Reflexões Sobre o Conceito de “Autonomia”

A palavra autonomia é originada do grego para designar a capacidade de um indivíduo de se autodeterminar, de se auto-realizar, de autos (si mesmo) e nomos (lei). No Dicionário encontramos: autonomia. sf 1. qualidade ou estado de autônomo, independente, livre. Autonomia. 1. faculdade de se governar por si mesmo. Autonomia significa então auto-construção, autogoverno. A discussão travada em torno deste conceito é recente e encontra-se em outras instâncias da sociedade como autonomia na escola, autonomia operária, autonomia institucional. Contudo, no campo da saúde mental o conceito parece recobrir-se de sentidos imprecisos. Como lidar com este tema quando se trata de sujeitos destituídos de todo e qualquer valor ao receber o atributo de doente mental? Outra pergunta que pode ser feita é se as instituições que utilizam novos dispositivos assistenciais, contrários àqueles do tradicional manicômio, propiciam a produção de autonomia para os usuários que se beneficiam do tratamento?

Parece que o ponto nodal está em definir o que pode ser entendido como autonomia para nós e para a clientela assistida. De acordo com Leal a produção de autonomia pode ser caracterizada em duas vias: Primeiro o abandono da expectativa de resolutividade e eficácia a partir da comparação com o nosso desempenho; e segundo a criação de outras possibilidades de vida a partir deste outro padrão de subjetivação (Leal, 1994:153). Outra questão diretamente interligada ao tema diz respeito à possibilidade de repensar o processo de cura em psiquiatria a partir da discussão de uma autonomia possível. Dessa forma, entra em cena também a polêmica entre autonomia e tutela. Segundo Delgado (1992), todo cuidado implica um grau de tutela, todo serviço de caráter protetivo, tem a função de tutela. Entretanto, as atuais modalidades assistenciais não visam mais a adequação a um padrão único de subjetividade, seu sentido sendo bastante diferente daquele instituído pela clínica clássica.

Pode-se observar que no Brasil, a tradição de pesquisa sobre a produção de autonomia é ainda muito recente, principalmente na área com a qual estamos lidando. Um dos impasses é como avaliar ou quais critérios eleger para que a realidade possa ser retratada sem que seja reduzida a padrões universalizantes e reducionistas. Observa-se atualmente, a realização de alguns estudos (Pitta, 1997) sobre o assunto pautado na definição e avaliação de critérios chamados pragmáticos e apragmáticos, como autonomia para higiene, alimentação, medicação, ir e vir, trabalho e relações sociais (família, amigos, grupos sociais). No entanto, quando se trata de uma clientela específica como é o caso dos sujeitos psicóticos, a adoção de tais critérios não nos parece suficiente.

Neste estudo, ainda que tenhamos nos preocupado com os critérios pragmáticos e apragmáticos para refletirmos sobre a questão da autonomia dos usuários em uma instituição representativa dos novos modelos de atendimento, a questão prioritária foi observar de que maneira o CAPS/MG vem lidando com impasses que surgem quando falamos em “resgatar a cidadania do louco”, de construir uma nova concepção de clínica, de repensar a questão da alta, de lidar com a demanda que se amplia, entre outros.

Assim, uma concepção possível para autonomia seria pensá-la como o momento em que o sujeito passa a conviver com seus problemas de forma a requerer menos dispositivos assistenciais do próprio serviço. Assim, caberia à instituição funcionar como um espaço intermediário, um local de passagem, na medida em que possibilitaria aos usuários um aumento de seu poder contratual, emprestando-lhe, segundo Tykanori (1996), sua própria contratualidade. Importa menos, neste sentido, criar e impor critérios de autonomia para esta clientela, mas observar qual seria o lugar ocupado pela questão no interior de uma nova perspectiva de atenção à loucura, como a instituição a concebe e promove no cuidado de seus usuários.

 

Método

Abordagem Metodológica

Trata-se de uma pesquisa que privilegiou a abordagem qualitativa. Foi realizado um estudo de caso em um CAPS, localizado no estado de Minas Gerais, com a proposta de investigar a inserção dos usuários no serviço, por meio de observação participante, realização de entrevistas com familiares e técnicos e da reconstrução da história de vida desses indivíduos, com o objetivo maior de analisar qual o papel da produção de autonomia no modelo terapêutico selecionado para a pesquisa.

Universo da pesquisa

Constituiu o universo da pesquisa o CAPS/MG, onde foram envolvidos três atores sociais: usuários, técnicos e familiares.

O CAPS/MG se insere no contexto de reformulação da atenção em Saúde Mental, pretendendo ser um serviço que de alguma forma viesse a inaugurar o “novo” em termos de atendimento ao doente mental.

A clientela atendida é constituída em sua grande maioria por indivíduos psicóticos, embora haja também alguns poucos casos de neuroses graves e deficiência mental. Há uma nítida predominância de usuários do sexo masculino, sendo a média de idade da clientela assistida, aproximadamente, 35 anos. Com raras exceções, os usuários provém de camadas populares, dispondo de poucos recursos financeiros. É importante destacar que cerca de 90% destes indivíduos são egressos de hospitais psiquiátricos com longo histórico de internações.

Em relação ao serviço, o número de usuários inscritos no programa é de aproximadamente 90, embora no dia-a-dia observemos uma média de 35 participantes. A equipe é composta por profissionais de várias áreas, inclusive fora do campo “psi” como artistas plásticos, ritmistas, entre outros. Cabe ressaltar que outra diferença que pode ser assinalada em relação ao modelo asilar, refere-se ao modo como a instituição lida com a hierarquia. No cotidiano, as sugestões de qualquer membro da equipe são acatadas e discutidas com o mesmo grau de importância no que se refere à orientação de conduta para cada caso, corroborando a tendência no campo da atenção psicossocial de desmistificar a figura do psiquiatra como o único profissional detentor do saber sobre o sujeito e o sofrimento psíquico.

Foram selecionados para a observação quatro usuários, cujas histórias funcionaram como casos exemplares da instituição. Esses sujeitos, diagnosticados como esquizofrênicos, foram observados em uma oficina terapêutica, um grupo terapêutico e durante as assembléias. A reconstituição das histórias de vida foi realizada a partir da consulta aos prontuários e entrevistas com os familiares. Foi realizada também uma entrevista com alguns representantes das categorias profissionais existentes no CAPS/MG, quais sejam: psicologia, psiquiatria, administração e enfermagem.

Instrumentos da Pesquisa

Os instrumentos utilizados na obtenção dos dados foram: pesquisa bibliográfica; pesquisa documental, em que consultamos os prontuários dos usuários envolvidos e atas de reuniões de equipe, e a pesquisa de campo. Esta foi constituída por dois instrumentos: observação participante em espaços institucionais (uma oficina terapêutica, um grupo terapêutico, a assembléia de técnicos e usuários, uma reunião de mini equipe e as reuniões de familiares); e realização de entrevistas do tipo semi-estruturadas, com um familiar de cada usuário observado e com profissionais da instituição.

 

Resultados e Discussão

Tradições e contradições no cotidiano da instituição

Passaremos a expor os resultados e as discussões acerca dos dados obtidos na pesquisa. Com este propósito, além das observações do cotidiano do CAPS/MG, lançamos mão de entrevistas com técnicos e familiares.

O discurso da instituição evidencia que, lidar com a realidade de um CAPS é trabalhar com o “novo”, o “inusitado”, sem que se esteja preso a idéias preconcebidas. Além disso, surge também o ideal de uma clínica “dialética”, em “eterna transformação”, o desafio é o da “reconstrução da clínica”. Estas palavras são próprias do movimento pela reforma psiquiátrica e revelam o ideal de uma prática em construção. Mas, ainda que se tente instaurar um modelo destituído de todos os “incômodos” do modelo asilar, podemos afirmar que mesmo nas novas propostas, o risco de cometer os equívocos dos antigos dispositivos manicomiais permanece.

No contexto da Reforma, um dos discursos freqüentemente ventilados refere-se aos benefícios para os indivíduos que usufruem dos novos tipos de tratamento. Uma das vantagens apontadas pelos profissionais está no fato dos usuários não se reinternarem em hospitais psiquiátricos com tanta freqüência como antes de iniciarem o tratamento no CAPS/MG. Além disso, foi colocado que o serviço tem ajudado na promoção do “desempenho social”, “ocupacional” e em “ganho de autonomia”. Para a equipe tais vantagens manifestam-se no âmbito da “qualidade de vida”, significando que essas pessoas têm um acesso ao social que antes não tinham, tendo assim a possibilidade de fazer “laço social”. Este conceito traduz-se pela idéia de que o sujeito possa falar alguma coisa e ser entendido naquilo que está dizendo. Assim quando o sujeito se expressa, ainda que tudo não tenha sido compreendido, “algo da ordem de uma subjetividade se dá”. Observamos porém que, no que se refere a este diálogo possível, capaz de fazer laço social, a “palavra do louco” ainda está aprisionada a uma série de a prioris, sejam eles do senso comum ou legitimados cientificamente, que continuam fazendo desta comunicação um movimento não dialetizável. Quer dizer que hoje já é possível que o louco fale, fato impensável há alguns anos atrás o que, sem dúvida, anuncia que mudanças aconteceram. No entanto, este “discurso” permanece aprisionado por saberes imbuídos de mais autoridade para dizer desses sujeitos do que suas próprias palavras.

Outra preocupação da pesquisa foi investigar a concepção de autonomia para a equipe técnica. Além de ter sido o eixo norteador do trabalho, a produção de autonomia configura-se como uma importante discussão no campo da atenção psicossocial. As concepções divergem com relação a uma tentativa de delimitar o conceito no âmbito da instituição. Uma das possibilidades que surgiu nas entrevistas compara autonomia a uma escala onde o sujeito pode perdê-la ou readquiri-la. Neste sentido, há sempre uma perda no desempenho geral e na capacidade de auto-gestão do sujeito psicótico, não cabendo ao serviço resgatar toda a autonomia perdida quando da instalação da doença.

Outra concepção que emergiu e difere-se da primeira traz a idéia de um conceito de autonomia relativizado e calcado nos pressupostos da psicanálise. Dessa forma, a autonomia é importante do ponto de vista da resolutividade do serviço, pois considera-se que a melhora do usuário advém do maior grau possível de autonomia adquirido. Mas do ponto de vista da psicose, apreendida em sua versão lacaniana, este seria um objetivo inviável por tratar-se de um conceito do “mundo da neurose”; em outras palavras, trata-se de um termo que fala de uma condição que não se pode aplicar ao sujeito psicótico porque também ele jamais conseguirá atingi-la.

Embora existam outras possibilidades de definição de autonomia que, em uma certa medida, divergem conceitualmente, a última concepção apresentada vem predominando nas discussões e ações implementadas no serviço. Fica explícito que falar de autonomia dos sujeitos psicóticos não é pensar em algo que se acumula. O que importa é considerar o tempo de cada sujeito. Para uns, esse processo ocorre de uma maneira, para outros ocorre de outra.

É interessante observar que tais idéias vêm sustentando a maneira da instituição lidar com a alta. Esta discussão é bastante recente e surgiu diante da pressão de órgãos externos para que o serviço absorva novas demandas. De um lado, a visão predominante sobre alta pauta-se nos pressupostos psicanalíticos. Assim, a perspectiva é de que o próprio sujeito se dê alta, sem que haja critérios previamente estabelecidos. De outro lado, observa-se que alguns profissionais da área julgam a ausência de alta um péssimo indicador de resolutividade do serviço. Verificamos assim, que tanto as concepções que dizem respeito à idéia de alta quanto de autonomia, e que até hoje vêm definindo o fazer cotidiano da instituição, coadunam-se a um modelo de assistência identificado como “clínica da psicose”, referendada na psicanálise apreendida em sua versão “lacaniana”.

É notório que a inserção do movimento psicanalítico teve um papel de destaque dentro do contexto da Reforma ao possibilitar que o fenômeno da loucura readquirisse sentido. Contudo, alguns questionamentos podem ser feitos a partir desta posição, cuja ênfase recai naquilo que distingue cada ser humano (e não no que lhe é comum) e que ainda elege o espaço da clínica como lugar privilegiado para a promoção de mudanças. Em primeiro lugar, corre-se o risco de ignorarmos o fato de que a “doença mental” é um problema que não se restringe ao campo “psi” e que, por este mesmo motivo, exige muito mais que mudanças exclusivamente técnicas e restritas ao espaço da clínica (Basaglia, 1981).

Outra questão que se coloca diz respeito à predominância de uma “tendência”, seja ela qual for, como norteadora da prática clínica. Pensamos que não se trata agora de substituir o paradigma do “sujeito biológico” pelo “sujeito singular” ou por outro paradigma qualquer. Quando pensamos serviços substitutivos, que assistem a uma clientela bastante diversificada, consideramos que não deva ser o sujeito a se adequar a uma proposta clínica, mas ao contrário, que o serviço seja capaz de absorver demandas que exigem as mais diversas abordagens. Durante as observações, pudemos apreender que propostas terapêuticas que não estão em consonância com os pressupostos da psicanálise “lacaniana” não gozam de muito respaldo e quase nunca são levadas a efeito.

Uma outra consideração poderia ser feita acerca da efetiva falta de critérios de avaliação do serviço no que diz respeito a aspectos bastante relevantes como: critérios de alta, resolutividade, ampliação do atendimento e construção da autonomia dos usuários. Os argumentos caminham no sentido de que é impossível estabelecer tais critérios, porque estes movimentos são sempre singulares. Paradoxalmente, observamos que a excessiva ênfase nos “movimentos individuais” tira do foco central a reflexão sobre a organização do serviço e até mesmo sobre a forma como o tratamento está sendo conduzido.

Ainda que o discurso hegemônico na instituição não venha a considerar os critérios pragmáticos como significativos indicadores de melhora no tratamento, por acreditar que não são critérios relativos à psicose, a equipe considera importante a promoção dos mesmos por meio do serviço. Esta questão vem sendo discutida no contexto da reabilitação psicossocial (Pitta, 1997). Consideramos que somente a adoção de critérios pragmáticos não são suficientes para abarcar a singularidade produzida pela loucura. No entanto, são esses os atributos exigidos pela sociedade moderna e um serviço que propõe a reinserção social não pode desconsiderá-los.

Em relação ao papel do CAPS/MG na integração de seus usuários à comunidade, as respostas caminham no sentido de dizer que algumas ações vêm sendo promovidas tanto pela via de oficinas que se desenvolvem fora da instituição, quanto pela promoção de passeios e festas. Ainda do ponto de vista dos profissionais entrevistados, o fato de um CAPS ser um espaço de formação de profissionais, recebendo estagiários de várias áreas, contribui para que um grande número de pessoas circule na instituição promovendo, assim, possibilidades de integração dos usuários com outras pessoas. Sem dúvida, espaços como o CAPS permitem que a representação da loucura passe a tomar outra dimensão e a ser considerada de um outro ponto de vista pela sociedade e pelos profissionais de saúde. Contudo, percebemos que alguns aspectos ainda permanecem quase inalterados. Como exemplo, temos a relação entre o Serviço de Urgência Psiquiátrica, porta de entrada para os hospitais psiquiátricos, e o serviço. Falta um intercâmbio entre tais espaços, o que muitas vezes, acarreta internações desnecessárias de usuários que fazem tratamento no CAPS/MG . Pensamos que, falta ainda no serviço um trabalho de cunho “político”, no sentido de colocar em evidência as relações entre clínica e política, o que exige a saída do território exclusivamente psiquiátrico para construir dentro da sociedade um espaço de soluções (Basaglia, 1981).

Alguns estudos demostram que o envolvimento da família tem papel fundamental para o sucesso do tratamento do sujeito psicótico. Inúmeras são as associações de familiares e usuários que se organizam e se engajam na reivindicação por direitos à assistência digna, à integração social, ao resgate da cidadania. Contudo, este envolvimento é um processo recente, se considerarmos que, há cerca de uma década, o único modelo de atendimento era o manicômio. A participação da família no CAPS/MG não é efetiva. Ainda que considere-se a participação familiar como fundamental para o tratamento de seus usuários e que este discurso seja freqüentemente ventilado, tal participação restringe-se às reuniões que discutem assuntos relativos à medicação e a como lidar com alguns comportamentos inerentes à doença. Isto também reflete-se na Associação de técnicos e familiares, fundada há alguns anos e que não vem conseguindo uma adesão significativa e nem desenvolvendo ações efetivas no sentido de se ampliar as discussões que tangem à assistência.

As questões que vimos abordando até o momento dizem um pouco da dinâmica da instituição e serviram também para que pudéssemos refletir em que medida os novos modelos de atenção à loucura vêm se diferenciando do tradicional modelo asilar. Sobre este aspecto, é interessante ressaltar que muitas conquistas estão sendo asseguradas para que a transformação no atendimento em Saúde Mental se efetive. Contudo, por se tratar de um campo ainda em construção, muito se tem a fazer.

Hoje podemos dizer que, no campo protegido da clínica, já é possível que estes sujeitos transitem e até consigam de certa forma estabelecer “laços sociais”. Entretanto, é no espaço da pólis que as barreiras permanecem quase inalteradas. O ideal de construção de um “outro lugar social para a loucura” parece esbarrar na histórica impossibilidade da sociedade conviver com a diferença. Neste sentido, podemos pensar que a doença mental é um problema que não se restringe ao campo da clínica e que, por esse mesmo motivo, exige muito mais que mudanças técnicas. Transformações reais implicam em ações mais efetivas no que diz respeito ao trabalho da instituição fora da própria instituição. Além disso, observa-se que ainda não foram construídos critérios de avaliação capazes de abarcar a complexidade da loucura e, ao mesmo tempo, responder a questões referentes à resolutividade, alta e constantes cortes de verbas, temas sempre freqüentes na realidade dos serviços públicos brasileiros.

Pensamos que um dos caminhos que possa fazer dos modelos substitutivos algo realmente “novo” no que diz respeito ao lidar com a loucura, é justamente a capacidade das novas propostas refletirem sobre suas práticas. O desafio atual parece ser, mais do que criar uma nova concepção de clínica, colocar a própria “clínica em análise”.

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência
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Ana Teresa Venancio e Pedro Gabriel Delgado
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36680-000 - São João Nepomuceno
E-mail: palmeida@starmedia.com

Recebido em 11/08/99
Aprovado em 22/09/00

 

 

* Psicóloga, mestranda em Educação Especial (UFSCAR).
** Psicóloga, mestranda em Saúde Pública (ENSP/FIOCRUZ).
*** Orientadora da pesquisa - Núcleo de Pesquisa do Instituto Franco Basaglia/RJ.
**** Orientador da pesquisa - Núcleo de Pesquisa do Instituto Franco Basaglia/RJ.
1 Este artigo é decorrente do Trabalho de Conclusão do Curso de Psicologia da UFJF, orientado pelo Núcleo de Pesquisa do Instituto Franco Basaglia/R