SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.21 issue1O psicólogo ecológico no contexto institucional: uma experiência com meninas vítimas de violência author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.21 no.1 Brasília Mar. 2001

 

ARTIGOS

 

Encoprese e constipação em gêmeos: um estudo de caso em ludoterapia comportamental

 

 

Laura dos Santos Gomes Coelho*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Relato de tratamento em ludoterapia comportamental de gêmeos (4 anos) onde uma das crianças apresentava encoprese secundária retentiva e a outra apresentava constipação. O tratamento consistiu em avaliação (entrevista e observação), linha de base (padrão de defecação) e intervenções (habituação comportamental, treino intestinal, monitoramento através de gráficos e biblioterapia). Em relação à linha de base, o padrão de defecação dos gêmeos quadruplicou. Foram discutidos os fatores que possibilitaram a mudança no padrão de defecação dos gêmeos e a importância de se investigar os fatores responsáveis pelas diferenças individuais em quadros de encoprese.

Palavras-chave: Ludoterapia comportamental, Encoprese, Gêmeos, Habituação, Temperamento.


ABSTRACT

Behavioral play therapy was utilized in treatment of twins (4-year-old) where one child have encopresis and other constipation. The treatment consisted in assessment (interview and observation), baseline (defecation pattern) and interventions (behavioral habituation, toilet training, feedback via graphics and bibliotherapy). In relation to baseline, the twins defecation pattern increased four times. It were debated factors which made possible the change of the twins defecation pattern and the relevance of investigation about factors responsible for individual differences in encopresis.

Keywords: Behavioral play therapy, Encopresis, Twins, Habituation, Temperament.


 

 

Segundo a literatura médica, os movimentos intestinais ocorrem, aproximadamente, de três vezes ao dia a três vezes por semana em 96% das crianças até quatro anos de idade (Deitos, Lemos, Renk, Copette e Lemos, 1999; Hatch, 1988). Os levantamentos existentes sobre hábitos intestinais são relativos principalmente à população norte-americana embora a literatura registre, por exemplo, que a idade de treino de toalete varie conforme o grupo cultural: por exemplo, dois anos para crianças norte-americanas e inglesas e três anos para crianças francesas (Hatch, 1988). Análise da literatura sobre treino de toalete realizada por Ingberman (1999) mostra que: 1) o treino de toalete é a principal preocupação dos pais que têm filhos na pré-escola (isto é, quando e como treinar e o que fazer quando o treino não é bem sucedido); 2) as atendentes de creches não sabem o que fazer quando o treino de toalete falha; 3) profissionais de saúde (médico ou psicólogo) são menos procurados do que as atendentes da creche, a avó ou vizinha; 4) a explicação para a ausência de material de ensino sobre treino de toalete destinados a leigos decorre, em parte, de uma concepção do desenvolvimento infantil segundo a qual o treino de toalete ocorreria inevitavelmente conforme etapas maturacionais, o que dispensaria treino pelos pais e 5) modelagem é sugerida como o procedimento mais adequado para o treino de toalete ao invés de treino imitativo.

Alteração de movimentos intestinais de origem psicológica é denominada genericamente de megacólon psicogênico ou funcional e tem como sintoma, a encoprese isto é, alteração na freqüência, tamanho, consistência e na facilidade da passagem do bolo fecal (Deitos e col., 1999). A encoprese é definida como incontinência fecal durante a aprendizagem de controle esfincteriano. Segundo o DSM - IV, os critérios diagnósticos para a encoprese compreendem a ocorrência de evacuação repetida de fezes por uma criança, de pelo menos quatro anos, em locais inadequados, no mínimo, uma vez por mês durante três meses (APA, 1994). Descritivamente, a encoprese pode ser classificada como diurna ou noturna; primária ou secundária e retentiva ou não-retentiva (APA, 1994).

Paralelamente à classificação descritiva, Walker (1995, citado em Silvares, 1999) propõe uma classificação teórica: encoprese manipulativa, encoprese induzida por estresse e encoprese retentiva. A encoprese manipulativa refere-se à eliminação sob controle voluntário e deliberado, a qual traz ganhos secundários (expressar raiva contra os pais, esquiva de testes escolares etc). Segundo Silvares (1999), "apesar de na literatura tradicional esta forma de encoprese parecer como sua principal etiologia, dados mais recentes indicam que é rara sua ocorrência" (pag. 292); a encoprese induzida por estresse ocorre quando observa-se paralelo entre períodos de estresse e os episódios de evacuação em locais inadequados; a encoprese retentiva, a qual compreende 80% a 95% dos casos de incontinência fecal, decorreria principalmente de constipação crônica. Nesta hipótese, a constipação crônica seria influenciada por tendências hereditárias à constipação, escolhas dietéticas inadequadas dentre outros fatores (Silvares, 1999). Terapia comportamental tem sido avaliada como eficaz no tratamento dos três tipos de encoprese e tratamento médico é avaliado como eficaz na encoprese retentiva e em algumas etapas da encoprese induzida por estresse (Silvares, 1999).

No estudo de caso de uma criança encoprética secundária retentiva relatado por Gomes (1998), a análise funcional sugeriu que a encoprese provavelmente havia iniciado a partir de um padrão de sensibilização a mudanças bruscas no ambiente da criança e foi mantido através de dicas faciais da mãe. O tratamento da encoprese compreendeu um programa de intervenção (ludoterapia comportamental) guiado pela análise funcional dos vários contextos da criança (observação do comportamento na escola e na casa e entrevista com médico e familiares) que são relevantes para a avaliação e intervenção (Silvares e Gongora, 1998). Habituação (processo oponente à sensibilização) à situação de defecação através de atividades lúdicas foi sugerida como modelo de dessensibilização (Watts, 1979).

Um dos desafios no estudo da constipação crônica é explicar as diferenças individuais, isto é, por que algumas crianças desenvolvem quadro de encoprese e outras não. As diferenças individuais poderiam estar relacionadas tanto a fatores que afetam o início da encoprese (por exemplo, tipo de treino de toalete, escolhas dietéticas, interação pais-criança, padrão de habituação e sensibilização a mudanças bruscas no ambiente físico e/ou social e condições orgânicas) quanto àqueles que afetam a sua manutenção (por exemplo, reforçamento diferencial da quantidade de fezes ao invés da freqüência de defecação, dicas do ambiente físico e social e sensação de dor durante a defecação).

Em termos metodológicos, o estudo da encoprese em gêmeos monozigóticos forneceria informações relevantes sobre o estudo das diferenças individuais em encoprese. A literatura, no entanto, apresenta poucos estudos de casos de encoprese em gêmeos. MacLean e Jones (1987) relataram o atendimento a um menino encoprético primário retentivo de quatro anos, denominado Jason. O irmão gêmeo de Jason, denominado Sam, adquiriu treino de toalete desde os dois anos de idade. Os pais relataram que a encoprese estava afetando o comportamento de Jason e a relação deste com o irmão. Segundo MacLean e Jones (1987), o nascimento dos gêmeos e a mudança para uma cidade pequena exigiu uma mudança na vida cuidadosamente planejada que a esposa estabelecera para ela e o marido, gerando um estado de depressão na esposa que foi subestimado pelo marido, ora ocupado com o novo emprego ora ocupado com o cuidado dos gêmeos. Diante deste quadro, a mãe reagiu agressivamente com os filhos no cuidado das atividades de vida diária em geral, e, particularmente, no treino de toalete. Sam, descrito como mais "passivo" e menos assertivo do que Jason, se adaptou às reações da mãe e esta valorizou tais comportamentos do filho. Avaliação psicanalítica sugeriu que o sintoma de encoprese de Jason era uma expressão de raiva em relação aos pais, especialmente em relação à mãe; a encoprese proporcionou o processo de individuação e separação dos gêmeos e atraiu a atenção dos pais de Sam para Jason. As oitenta sessões lúdicas tiveram como objetivo explicitar tal processo de individuação para Jason e os pais. O atendimento foi dividido em três estágios: o estágio 1 compreendeu o processo de transferência onde a raiva de Jason em relação à mãe transferiu-se para o terapeuta. No fim deste estágio, Jason adquiriu o treino de toalete. O estágio 2 teve como objetivo determinar a individuação de Jason em relação a Sam. O estágio 3 compreendeu alguns tópicos sobre a individuação, recapitulação do atendimento e finalização. MacLean e Jones (1987) discutem o atendimento em termos da função da encoprese em permitir a separação e individuação da personalidade de cada um dos gêmeos e entre estes e os pais.

Teorizações recentes em psicologia do desenvolvimento têm discutido a inadequação da aplicação do conceito personalidade à infância, tal como utilizado por MacLean e Jones (1987), e sugerem o uso do conceito temperamento (padrão de reações primárias) ao invés de personalidade (Shiner, 1998). Matheny (1991) propõe a determinação das categorias teóricas básicas de temperamento através da observação sistemática do comportamento lúdico das crianças, seguida pela criação de um conjunto de ítens decorrentes da teoria tal que as dimensões de temperamento possam ser identificadas, conforme o processo de criação de instrumentos psicométricos (Pasquali, 1998). Smith, Dixon, Jankowski, Sanscrainte, Davidson e Loboschefski (1997) definiram temperamento como padrão de habituação e observaram, em estudo longitudinal, correlação entre tais padrões de habituação em bebês e cinco fatores das escalas de temperamento para crianças entre 1 e 2 anos. O presente estudo de caso se refere ao atendimento de uma criança (denominada Virgílio) com quadro de encoprese secundária retentiva e tem como objetivo relacionar mudanças no padrão de defecação dela com mudanças comportamentais nos contextos ludoterapêutico, familiar e escolar.

 

A Criança

Virgílio, à época do atendimento (agosto de 1997), tinha 4 anos e dez meses e morava com pais e o irmão gêmeo (denominado Hugo). O parto dos gêmeos monozigóticos tinha sido programado para ser normal, mas, Virgílio teve sofrimento fetal e os gêmeos nasceram via cesareana sem seqüelas para ambos. Quando os gêmeos tinham 1 ano e seis meses a fralda foi retirada durante o dia e utilizada somente à noite; aos 3 anos, Virgílio e Hugo solicitaram aos pais que retirassem a fralda alegando que já eram "grandes". Os pais souberam posteriormente que a babá brigava com os gêmeos quando estes urinavam na cueca. A rotina de Virgílio incluía café da manhã (bolo, iogurte e Nescau); brincadeira no período da manhã junto com o irmão e a mãe (desciam pela manhã e brincavam no parque de areia e jogavam futebol na quadra ou assistiam desenhos); almoço (arroz, frango e batata frita; os gêmeos não gostavam de verduras) e, à tarde, iam a escola. Retornando da escola o pai supervisionava o banho, brincadeiras, assistiam desenhos e jantavam. Em dias específicos da semana jantavam na casa dos avós e mantinham um padrão regular de alimentação. Virgílio e Hugo dormiam entre 21:00 e 22:00 horas e o sono era tranqüilo.

 

Histórico da Encoprese

Segundo a mãe, antes do quadro de encoprese, Virgílio almoçava pouco (principalmente quando tomava café próximo ao horário do almoço e quando o intestino não funcionava durante vários dias) e apresentava um padrão regular de três a quatro dias entre as defecações. A avó e a tia maternas apresentavam diverticulite. A partir de junho/julho de 1996, iniciaram-se períodos maiores do que quatro dias entre as defecações. Em outubro de 1996, Virgílio ficou 15 dias sem defecar; neste período, chorava e verbalizava que não queria ir ao banheiro. Os parentes (avós, tios e tias) relatavam alteração do comportamento de Virgílio quando este estava no quinto dia de retenção. Após a defecação, a mudança de comportamento era imediata, isto é, Virgílio sorria e brincava. Virgílio não gostava de falar sobre a constipação. Segundo a mãe, Hugo almoçava regularmente, apresentava sono, padrão lúdico e humor estáveis sem alteração no comportamento e mantinha o padrão de defecação de três a quatro dias na semana. Sob orientação médica (gastroenterologista infantil), foi administrado a Virgílio leite de magnésia (duas colheres de sopa três vezes por dia) e Nujol (duas colheres de sopa três vezes ao dia). Segundo a mãe, "esta orientação foi seguida somente por dois dias, uma vez que as fezes eram eliminadas sem que Virgílio pudesse controlar, gerando constrangimento e maior tensão". Os pais ficavam preocupados com o padrão de defecação de Virgílio, e verbalizavam, várias vezes ao dia ou antes e após a defecação, que era importante o filho ir ao banheiro; Virgílio prometia que não iria reter as fezes, mas, no dia seguinte, iniciava-se novo padrão de retenção de fezes. Os pais procuraram vários tipos de atendimentos (homeopatas, gastroentorologistas e terapia familiar) e os médicos eliminaram a possibilidade de origem orgânica para o padrão de defecação de Virgílio. Nesta época Virgílio foi submetido a um atendimento em psicoterapia familiar, no período de outubro de 1996 a julho de 1997, e o padrão de defecação reduziu de quinze para sete dias. Apesar desta redução, o intervalo de sete dias entre as defecações estabilizou-se e, a partir do quarto ou quinto dia, Virgílio apresentava alteração de comportamento: parava de brincar e permanecia deitado, alteração do sono (movimentos na cama), redução drástica no padrão alimentar e irritabilidade (mau humor). Enquanto Virgílio ficava deitado na cama, Hugo permanecia ao lado do irmão conversando e brincando. Dado que não ocorria alteração no padrão de defecação, os pais optaram por um atendimento específico em psicoterapia infantil, e, sob nova orientação médica (pediatra), foi solicitada outra avaliação psicológica.

 

Avaliação

A avaliação seguiu a seguinte ordem: entrevista com a mãe, visita à escola de Virgílio, duas sessões lúdicas com Virgílio, uma sessão lúdica com Virgílio e Hugo, uma sessão lúdico-familiar com a presença dos pais e do irmão e contato com o pediatra das crianças. A mãe foi solicitada a registrar a ocorrência diária de defecações; o comportamento verbal e o humor do filho durante a defecação e as atividades de vida diária, seguimento de regra, alimentação, atividades lúdicas e relacionamento social de Virgílio (Windholz, 1988).

 

Entrevista com a Mãe

Segundo a mãe, Virgílio era meigo, alegre, carinhoso, criativo para inventar estórias e gostava de cantar; Hugo era líder, "expansivo", apresentava facilidade de adaptação e relacionamento social. A interação entre os irmãos foi classificada em duas fases pela mãe: na primeira fase, Hugo "dominava" a relação com Virgílio, isto é, escolhia a brincadeira e a forma de brincar; na segunda fase, Virgílio começou a ser mais assertivo e, gradualmente, impôs as suas opiniões. A mãe atribuía tal mudança ao atendimento anterior em psicoterapia familiar. Segundo a mãe, o único evento ocorrido no período de junho/julho de 1996 foi a tensão dos pais em relação à manutenção do emprego do marido, o qual aceitara fazer parte do plano de demissão voluntária da empresa em que trabalhava. Os objetivos da mãe em relação ao atendimento em ludoterapia foram: 1) atendimento focal em relação à encoprese e apoio psicológico para o filho; 2) diminuição das alterações no comportamento lúdico (irritabilidade e redução das brincadeiras), principalmente em relação ao quarto ou quinto dia de retenção e 3) obtenção de informação sobre como proceder com o filho e avaliação da adequação das decisões tomadas pelo casal. A mãe foi orientada a registrar as alterações de comportamento e, em um calendário, a freqüência de defecação para que fosse estabelecido um critério (ou linha de base) em relação ao qual as intervenções seriam avaliadas.

 

Observação na Escola

Foi realizada uma visita à escola dos gêmeos com o objetivo de observar e registrar a interação de Virgílio com o irmão e os colegas assim como entrevistar a professora. Segundo a professora, quando Virgílio pedia para ir ao banheiro a defecação já havia ocorrido, em pequena quantidade, na cueca; era possível diferenciar a alteração de comportamento nos dias que antecediam a defecação: "agitação", "nervosismo" e "tremores". No início do ano, Virgílio era muito tímido e, gradualmente, começou a se relacionar com os colegas; realizava todas as atividades solicitadas e as atividades preferidas eram colagem, desenho e recorte; apresentava vocabulário rico e bom desempenho em todas as tarefas; lanchava pouco no recreio e brincava sempre com as mesmas crianças (o irmão e alguns amigos); Virgílio e Hugo gostavam de jogar futebol no recreio. Observação do comportamento corroborou as afirmações da professora.

 

Sessões Lúdicas de Psicodiagnóstico

Foram realizadas quatro sessões lúdicas com o objetivo de avaliar o comportamento lúdico e a interação de Virgílio com o irmão e os pais. Nas sessões lúdicas, realizadas sempre com a presença da mãe, foram registrados o tipo de brinquedo, número de brinquedos com os quais a criança brinca, preferência por brinquedos, qualidade do brinquedo, o uso funcional e o tempo de permanência em cada brinquedo (Windholz, 1988; Bomtempo, 1992). A primeira sessão mostrou o padrão de habituação longa de Virgílio: explorou a sala, os brinquedos, mas só conversou com a psicóloga 20 minutos após o início da sessão; a cada sessão, Virgílio verbalizou, sorriu e manteve contato visual por mais tempo comparativamente à primeira sessão. Virgílio observava o ambiente antes de brincar ou falar; após algum tempo, contava histórias e cantava. Hugo na primeira sessão verbalizou e sorriu freqüentemente, contou estórias e rapidamente se habituou à sessão lúdica. A avaliação das sessões lúdicas mostrou que Virgílio brincou com brinquedos variados, integrou vários brinquedos na mesma brincadeira, criou estórias, solicitou que a psicóloga participasse das brincadeiras e comportou-se assertivamente selecionando o tipo, o início e o término das brincadeiras. Na sessão lúdico-familiar, os irmãos mantiveram uma interação positiva, brincaram de forma adequada e realizaram acordos sobre as brincadeiras executadas. Na interação dos filhos com os pais, estes observaram as brincadeiras escolhidas e ofereciam atenção adequada e dividiam-na igualmente entre os filhos sempre que os gêmeos mostravam-lhes os brinquedos. A interação familiar se mostrou adequada, com regras e limites estabelecidos igualmente para os dois filhos.

 

Análise Funcional

A partir dos dados obtidos (observação nas sessões lúdicas, entrevista com a mãe e contato com a escola) elaborou-se a hipótese de que, ultrapassado o limite do quarto dia para defecação, as fezes ressecavam ocasionando dores nas primeiras tentativas de defecação. A tentativa mal sucedida e a dor, provavelmente, desencadearam o comportamento de retenção das fezes, o qual tinha a função de esquiva da dor. Desse modo, a retenção fecal estaria associada ao medo de sentir dor e os comportamentos emitidos por Virgílio (a irritabilidade, mudança no padrão de humor e lúdico) podem ser concebidos como subprodutos da situação de aversão (Sidman, 1995).

A partir das informações sobre a habituação longa em relação a ambientes físicos (o local de férias), novos amigos, escola, profissionais (interação com a psicóloga, interação com o médico) e hábitos (mudança alimentar e treino de toalete); esquiva em falar sobre a defecação no contexto lúdico e a hipótese de dor como evento que controlava a retenção fecal, foram estabelecidos os seguintes objetivos de atendimento: 1) estabelecer a linha de base do padrão de defecação e das alterações de humor; 2) facilitar o vínculo psicóloga-criança no contexto lúdico para que fosse possível abordar o tema da encoprese; 3) habituação comportamental, isto é, a diminuição das respostas reflexas relacionadas à defecação possibilitando a defecação sem dor; 4) redução do intervalo de defecação para um padrão de defecação de sete para três ou quatro dias, conforme orientação do pediatra; 5) mudança do padrão alimentar e 6) treino de dessensibilização ao vaso sanitário através de biblioterapia (Knell,1993).

 

Atendimento

O atendimento teve início em agosto de 1997 e pode ser dividido em três fases: linha de base, intervenções psicológicas e treino intestinal. Foram realizadas 41 sessões de atendimento com duração aproximada de 55 minutos cada, quatro observações do comportamento de Virgílio e Hugo no recreio escolar e contato telefônico com o pediatra e com a professora. A Figura 1 apresenta a freqüência de defecação dos gêmeos em cada mês ao longo do atendimento. No período de setembro a dezembro o padrão de defecação de Virgílio permaneceu inalterado (duas a seis defecações no mês). No período de fevereiro a junho de 1998, observa-se aumento na freqüência de defecação e a conseqüente diminuição do intervalo entre as defecações de sete para três dias. No período de agosto de 1998 a novembro de 1999 foi realizado o acompanhamento do caso (follow-up) através de contatos telefônicos com a mãe. Durante o acompanhamento a freqüência de defecação de Virgílio torna-se sistematicamente superior à de Hugo. Os principais aspectos do atendimento são relatados a seguir.

 

Linha de Base

Durante o mês de agosto de 1997 foi registrada a freqüência de defecação dos gêmeos com o qual as intervenções seriam comparadas (linha de base). A linha de base do padrão lúdico e das alterações de humor foi estabelecida através de anotações em papel ofício simultaneamente a observação da interação das crianças durante as brincadeiras. Nas primeiras sessões, Hugo perguntava o que terapeuta escrevia e esta respondia que anotava todas as brincadeiras que eram realizadas e, caso quisessem continuar a atividade na próxima sessão, os brinquedos não seriam esquecidos. Gradualmente as próprias crianças pediam para que se anotasse o jogo que haviam escolhido e que, segundo eles, a terapeuta não havia anotado. Eram anotadas as brincadeiras escolhidas, o horário de início e de término da brincadeira, se foi solicitada a participação da terapeuta ou da mãe na brincadeira, se havia exploração do material antes de iniciar a brincadeira, o conteúdo das estórias narradas, se ocorria integração de outros brinquedos e quem guardava o brinquedo após o uso. Em algumas sessões o gravador foi utilizado tanto para facilitar o registro na interação da terapeuta com as crianças quanto para brincar (por exemplo, registro das músicas criadas por Virgílio e Hugo cujos temas eram relacionados à defecação).

Nos meses de setembro e outubro de 1997, Virgílio permaneceu 15 dias sem defecar e ocorreram diarréias, vômitos e febres; o pediatra da criança indicou medicação cuja aplicação foi realizada em três fases: 1) uma geléia composta de produtos laxantes, 01 colher de chá antes de dormir, 2) Biofiber (2 cápsulas, uma no almoço e outra no jantar) e um composto vegetal; 3) Biofiber (1 flaconete) e composto vegetal laxante da empresa Herbarium cuja dosagem diminuía ou aumentava de acordo com o padrão de defecação. A medicação foi utilizada assistematicamente pela mãe nos meses de outubro e novembro. Virgílio manteve o padrão de retenção após o uso da medicação.

 

Intervenções

No período de setembro a dezembro de 1997, foram realizadas as intervenções psicológicas. Dado que Virgílio não gostava de falar sobre a retenção fecal, o objetivo das sessões lúdicas foi tornar o consultório um ambiente reforçador e facilitar a interação social entre a psicóloga e a criança (condição necessária para que fosse possível abordar o tema da encoprese e possibilitar as intervenções). Para alcançar este objetivo, foi solicitada a participação do irmão e da mãe nas sessões, a partir de outubro. A Figura 2 mostra o número de brinquedos selecionados individualmente e em comum acordo entre os gêmeos durante o período de atendimento. Observa-se a diminuição no número de brinquedos selecionados pelos gêmeos com o decorrer das sessões, ocorrendo com mais freqüência a brincadeira compartilhada entre os gêmeos. O uso dos brinquedos foi substituído pela interação verbal (cantar, contar piadas e verbalizar sobre os registros de defecação, filmes que assistiam, brincadeiras da escola, amigos) ao longo das 41 sessões.

Os gêmeos apresentaram diferenças no padrão lúdico: Virgílio solicitava que a brincadeira fosse realizada conforme as regras do brinquedo, mantinha-se por mais tempo na atividade e chamava a atenção do irmão quando este queria passar a frente na jogada ou demorava jogar; Hugo explorava mais a sala e os brinquedos e brincava diferentemente da função especificada pelo brinquedo. Os brinquedos selecionados para as atividades lúdicas foram carrinhos, bonecos, jogos de competição, desenho e pintura. Após 35 minutos de sessão, aproximadamente, tanto Virgílio quanto Hugo integravam todas as brincadeiras num jogo único, às vezes incluindo os bonecos que traziam de casa. A partir de determinadas dicas (comentários da criança sobre a imagem pessoal dela, os brinquedos que tem em casa, o nome dos amigos e perguntas sobre a vida pessoal do terapeuta) a terapeuta perguntava sobre os horários de brincadeiras e as atividades de vida diária (banho, refeições, uso do banheiro e o vestir roupas).

Foram criados gráficos pela terapeuta com os registros (calendários) feitos pelos pais da freqüência das defecações dos filhos. O uso de calendários e gráficos teve como objetivo monitorar a redução do intervalo de defecação para um padrão de defecação de sete para três dias no processo de controle do funcionamento do padrão intestinal dos gêmeos. Foi explicado para as crianças que cada barra representava uma defecação num dia da semana e, a partir de novembro, que o objetivo era aumentar o número de barras. A mãe confeccionou um calendário para cada um dos filhos e a tarefa consistia na marcação de um "x" no dia de ocorrência de defecação. Este calendário era composto das datas destacadas por um retângulo e uma figura ao fundo que cada um escolhia (carro de corrida, moto, animais).

Foi reiterada a necessidade de horário regular de Virgílio e Hugo no vaso mesmo que não quisessem defecar e modificação do padrão alimentar, com auxílio de nutricionista, para que houvesse treino intestinal. Virgílio aceitava mais facilmente experimentar novos alimentos do que Hugo e ambos se negavam a permanecer sentados no vaso. Em novembro, a nutricionista recomendou arroz integral, sopa, biscoito a base de fibras, verduras (verdes, amarelas e laranjas), feijão, doce a base de cereais e frutas (castanha e nozes); solicitou que fossem retirados chocolate, arroz branco e refrigerante. O seguimento destas instruções por parte da mãe foi assistemático devido a reação negativa dos filhos em realizar o treino (somente em fevereiro de 1998 é que tais mudanças se tornam sistemáticas). Na tentativa de facilitar a modificação do padrão alimentar, foram utilizados desenhos com adesivos de frutas, verduras e legumes, sorvetes e doces e decalque de frutas. Psicóloga e gêmeos brincavam contando estórias sobre as frutas e os nomes delas, e, a seguir, brincavam com as frutas e legumes de plásticos.

A biblioterapia, uso de livros para abordar temas específicos relacionados ao tratamento, foi utilizada com o objetivo de realizar aproximação sucessiva ao treino de toalete que Virgílio deveria cumprir (Knell, 1993; 1994). Foram realizadas aproximadamente 30 minutos de sessão, onde, através dos bonecos e biblioterapia, Virgílio foi instruído sobre a defecação no vaso através de treino imitativo (Foxx e Azrin, 1974) e foi ressaltada a importância de comer frutas e alimentos naturais. Virgílio verbalizou sobre o medo que a dor produzia e perguntou se o menino do livro era como ele.

Foi solicitado que a professora registrasse as alterações de humor e propiciasse atividades de movimento no recreio (futebol, por exemplo); se o comportamento de colocar a mão na cueca ou na barriga ocorresse ela deveria incentivá-lo e acompanhá-lo na ida ao banheiro. Embora o padrão de defecação não apresentasse alteração, conforme Figura 1, a professora observa, a partir de setembro, mudança no comportamento de Virgílio: não há ocorrência de irritação após o quinto dia de retenção, verbaliza para a mãe que conseguiu ir ao banheiro e não ficou envergonhado de falar sobre a defecação; diminuição de tremores e vai ao banheiro sozinho.

 

Treino Intestinal

O período de fevereiro a julho de 1998 consistiu no treino do movimento intestinal. No período de férias (janeiro de 1998) Virgílio defecou poucas vezes porque tanto ele quanto o irmão tinham dificuldade de defecar fora de casa. Em fevereiro de 1998, tanto o treino de uso do vaso durante cinco minutos quanto a mudança no padrão de alimentação (pão e arroz integral) são aceitas pelos gêmeos.

Nos momentos de discussão do calendário, Virgílio e Hugo falavam das marcações que tinham feito e o comportamento de marcar os calendários e a ocorrência de defecação eram reforçados; eram ratificados os cuidados que deveriam ter, a importância de marcar quando fossem ao banheiro e que não havia problema se um marcasse mais "x" que o outro. Com o objetivo de evitar que Hugo iniciasse um padrão de retenção devido a Virgílio estar tendo uma atenção especial dos pais e da psicóloga o padrão de defecação foi reforçado positivamente e não havia comparações entre eles, apesar de um falar da marcação do outro. O padrão alimentar de arroz e pão integral no mês de fevereiro foi seguido, no máximo, durante dez dias, Virgílio e Hugo não aceitavam este novo padrão alimentar, a conduta dos pais foi de reduzir os alimentos que propiciavam a constipação como refrigerantes, massas, chocolates e biscoitos.

 

Conclusão

As diferenças individuais no padrão de defecação dos gêmeos pode ser explicada por diferenças no padrão de sensibilização e habituação a determinados estímulos do ambiente (verbalizações, dicas faciais, alteração de humor dos pais etc) durante o processo de demissão do pai no período de junho/julho de 1996. O início da encoprese de Virgílio pode ter sido influenciada pela sensibilização a algum evento novo e aversivo neste período e, a seguir, houve longa habituação a tal evento; as fezes ressecaram ocasionando dores nas primeiras tentativas de defecação e, por fim, o quadro de encoprese. Provavelmente, o quadro de constipação de Hugo não se agravou devido a rápida habituação a eventos (novos e/ou aversivos) no ambiente. As diferenças observadas no padrão lúdico e na interação social dos gêmeos podem ser concebidas como medidas de habituação e sensibilização. Matheny (1991) e Gomes (1998) sugerem que sensibilização e habituação em situações lúdicas e no comportamento exploratório sejam interpretados como medidas de temperamento infantil. Por exemplo, as escalas de temperamento de Presley e Martin (1994) procuram especificar reações mais freqüentes das crianças diante de mudanças nas condições do ambiente físico e social sensibilização.

O conjunto de intervenções psicológicas (participação do irmão gêmeo, biblioterapia, orientação a professora) médicas (laxantes) e alimentar (mudança e redução do padrão alimentar) possibilitaram a redução do intervalo entre as defecações dos gêmeos. As intervenções psicológicas que contribuíram para esta mudança no comportamento de Virgílio foram: 1) habituação e dessensibilização à situação de defecar estabelecidas sistematicamente no período de setembro-dezembro de 1997 (biblioterapia e o reforço sistemático, através de calendários e gráficos, das ocorrências de defecações e interação social positiva com a terapeuta através das atividades lúdicas relacionadas à defecação); 3) reforço positivo estipulado pelos pais para as tentativas de defecação e 4) seguimento das instruções pela mãe (mudança do padrão alimentar, diminuição de dicas faciais negativas e assertividade nas regras do treino de toalete).

A participação dos pais no atendimento foi essencial para que 1) as crianças avaliassem o consultório como um ambiente agradável e de confiança para falar sobre a defecação; 2) as orientações fossem seguidas no momento definido pela terapeuta; 3) a terapeuta agisse com autonomia (em relação às intervenções na escola e nos contatos sistemáticos com o médico das crianças) e 4) os calendários e gráficos fossem preenchidos adequadamente. Pode-se atribuir tal participação ativa dos pais, principalmente, aos resultados que foram sendo obtidos a cada passo do atendimento (diminuição do comportamento de irritação na escola em setembro e aumento da defecação a partir de fevereiro de 1998). O contato com o pediatra possibilitou o acompanhamento das condições orgânicas de Virgílio; a observação precisa da professora, tanto da ocorrência quanto da diminuição dos comportamentos de nervosismo, tremores e mau humor de Virgílio no contexto escolar foi essencial na tomada de decisão no atendimento de Virgílio.

Provavelmente, a diminuição no número de brinquedos selecionados durante o atendimento e o aumento da interação verbal decorreu da função da atividade lúdica na situação clínica: propiciar interação social positiva entre terapeuta e criança, inicialmente restrita ao brinquedo. Posteriormente, tal interação social positiva possibilitou a inclusão de atividades lúdicas predominantemente verbais. Faz-se necessário estabelecer uma classificação do comportamento lúdico em ludoterapia que relacione o efeito de diferentes tipos de atividades lúdicas sobre o comportamento da criança.

 

Referências bibliográficas

Associação de Psiquiatria Americana (1994) DSM-IV Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Porto Alegre: Artes Médicas.        [ Links ]

Azrin, N.H. e Foxx, R.M. (1974) Toilet training in less than a day. New York: Simon and Schuster.        [ Links ]

Bomtempo, E. (1992) Brinquedoteca: espaço de observação da criança e do brinquedo. Em O Direito de Brincar: A Brinquedoteca. São Paulo: Scritta Editorial.        [ Links ]

Conte, F.C.S. (1987) Tratamento da encoprese: estudos de caso. Em A.L.Neri (Org.) Modificação do comportamento infantil. São Paulo: Papirus.        [ Links ]

Doleys, D.N. (1978) Assessment and treatment of enuresis and encopresis in children Em: M. Hersen, R.N. Eisler & P.M. Miller(Org.). Progress in Behavior Modification. New York: Academic Press.        [ Links ]

Deitos, F., Lemos, N., Renk, C.B., Copette, F.R., e Lemos, R.R. (1997) Megacólon psicogênico, diagnóstico e conduta. Revista da Associação Brasileira de Medicina Psicossómática, 3, 31-33.        [ Links ]

Gomes, L.S. (1998) Um estudo de caso de encoprese em ludoterapia comportamental. Psicologia: Ciência e Profissão, 3, 54-61.

Hatch, T.F. (1988) Encopresis and constipation in children. Pediatric Clinics of North American, 35, 257-280.        [ Links ]

Ingberman, Y.K. (1999) Análise de estratégias de intervenção psicológica comportamental em encoprese infantil. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo.        [ Links ]

Knell, S.M. (1994) Cognitive behavioral play therapy. Em K.J. O´Connor & C.E. Schaefer (Org.) Handbook of play therapy. Advances and innovations. New York: Wiley.        [ Links ]

Knell, S.M.(1993) Cognitive behavioral play therapy. New Jersey: Aronson.        [ Links ]

Neri, A.L. (1987) Modificação do comportamento infantil. São Paulo: Papirus.        [ Links ]

MacLean, G. e Jones, B. (1987) The psychological development of a twin: a case study of the importance of a symptom. Canadian Journal of Psychiatry, 32, 588-94.        [ Links ]

Matheny, A.P., Jr. (1991) Play assesment of infant temperament. Em Schaefer,C.E. Gitlin, K. e Sandgrund, A. (Org.) Play Diagnosis and Assesment. Wiley: New York

Pasquali, L. (1998) Princípios de elaboração de escalas psicológicas. Revista de Psiquiatria Clínica, 25, 206-213.        [ Links ]

Presley, R. e Martin, R.P. (1994) Toward a structure os preschool temperament: factor structure of the Temperament Assesment Battery for Children. Journal of Personality, 62, 415-448.        [ Links ]

Shiner, R.L. (1998) How we speak of children´s personalities in middle childhood ? A preliminary taxonomy. Psychological Bulletin, 124, 308-332.        [ Links ]

Sidman, M. (1995) Coerção e suas implicações. São Paulo: Editorial Psy.        [ Links ]

Silvares, E.F.M. (1999) Tratamento de encoprese envolvendo medicação e terapia comportamental: relato de um caso clínico. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 48, 291-297.        [ Links ]

Silvares, E.F.M. e Gongora, M.A.N. (1998) Psicologia clínica comportamental. A inserção da entrevista com adultos e crianças. São Paulo: Edicon.        [ Links ]

Smith, P.H; Dixon, W.E.; Jankowski, J.J.; Sanscrainte, M.M; Davidson, B.K.; Loboschefski, T. (1997) Longitudinal relationships between habituation and temperament in infancy, Merrill-Palmer Quarterly, 43, 291-304.        [ Links ]

Watts, F.N. (1979) Habituation model of systematic desensitization, Psychological Bulletin, 86, 627-637.        [ Links ]

Windholz, M. H. (1988) Passo a passo, seu caminho. São Paulo: Edicon.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Laura dos Santos Gomes Coelho
SQN 206 - Bloco F - ap. 501
70844-060 Brasília-DF
Tel.: +55-61 315-9429 / Cel.: +55-61 977-5785
E-mail: lsgcoelho@bol.com.br

Recebido 23/12/99
Aprovado 22/09/00

 

 

* Psicóloga Clínica Infantil. Especialista em Psicometria.