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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.21 no.1 Brasília Mar. 2001

 

ARTIGOS

 

O psicólogo ecológico no contexto institucional: uma experiência com meninas vítimas de violência

 

 

Clarissa De Antoni*; Silvia Helena Koller**

Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Centro de Estudos Psicológicos sobre Meninos e Meninas de Rua

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este ensaio consiste em um relato da experiência de trabalho de um psicólogo ecológico em uma instituição para meninas vítimas de violência, embasada no Modelo Ecológico de Desenvolvimento Humano. É discutida a integração da prática com a teoria, envolvendo desde aspectos relacionados ao cotidiano da instituição e da história de vida das meninas, até a influência cultural e social dos sistemas ecológicos. Os resultados mostraram que a integração destes aspectos levaram à melhoria da qualidade do trabalho dos profissionais e da vida das meninas atendidas.

Palavras-chave: Prática do psicólogo, Instituição, Psicologia ecológica.


ABSTRACT

The present study describes the work of an ecological psychologist in an institution for girls who were victims of violence, based on the Ecological Model of Human development. The integration of theory and practice is discussed, involving issues related to the daily life of the institution, the life history of the girls, and the cultural and social influence of the ecological systems. The results showed that the procedures adopted led to an improvement of the quality of professional services and a betterment of the life quality of the girls in the institution.

Keywords: Institution, Ecological Psychology, Psychologist services.


 

 

Este ensaio consiste em um relato de experiência do trabalho do psicólogo em uma instituição denominada Casa de Passagem, baseado na aplicação do enfoque teórico-metodológico do Modelo Ecológico de Desenvolvimento Humano proposto por Urie Bronfenbrenner (1979/1996).

A Casa de Passagem é um abrigo temporário para meninas de oito a dezoito anos incompletos, em situação de risco pessoal e social, abrigadas por terem sofrido algum tipo de violência intrafamiliar e/ou social. A Casa pertence a uma instituição religiosa, que a mantém através de doações da comunidade e em parceria com o município. O planejamento das atividades é estruturado de acordo com o Regimento da Casa e preza pelo atendimento personalizado e de qualidade, com base no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei n.º 8.069/1990). A Casa atende no máximo a seis meninas simultaneamente. O período de permanência varia de um a quarenta e cinco dias, com possibilidade de prorrogação, dependendo do caso e dos recursos disponíveis na comunidade. Cada caso é avaliado separadamente, e as meninas podem ser encaminhadas de volta à sua família, para uma família substituta ou para uma instituição permanente. Nos seus cinco anos de existência, trezentas meninas foram atendidas.

O endereço da Casa é mantido em sigilo para salvaguardar a integridade física, emocional e moral da população atendida. A Casa de Passagem está localizada na região central de um bairro de nível sócio-econômico muito baixo, em um município próximo a um grande centro urbano. As meninas encaminhadas são, em geral, oriundas de bairros com infra-estrutura precária. A Casa está localizada em um bairro com as mesmas características. Não há transporte urbano próximo, calçamento nas ruas ou rede de telefonia. No entanto, a Casa tem uma estrutura física e de conforto material melhor do que a maioria das casas da região, pois possui uma sala ampla, para estar e refeições, um dormitório com três beliches, uma pequena cozinha, um pequeno gabinete, dois banheiros e uma área de lavanderia. É mobiliada para propiciar boas acomodações para as meninas. Junto à Casa, há uma guarita para o guarda noturno, todavia sua fachada não se destaca das demais casas do bairro. A Casa de Passagem está inserida e integrada não somente à paisagem, mas à necessidade da Comunidade, pois é a única casa que abriga meninas em situação de risco, desta faixa etária, no município.

A Casa conta com uma equipe formada por uma diretora (administrativa e gerencial), uma assistente social, uma psicóloga, uma enfermeira (representante do Conselho da instituição religiosa) e oito monitoras. São denominadas de "técnicas" as que possuem uma formação profissional específica. As monitoras, por exemplo, não possuem nenhum tipo de especialização. No entanto, prestam atendimento direto às meninas nas situações do cotidiano (alimentação, recreação, cuidados com a higiene etc.). As monitoras são funcionárias municipais. A instituição recebe a colaboração esporádica de uma nutricionista, de estagiários de áreas diversas e de outros voluntários. A vigilância noturna é realizada pela guarda municipal.

Os encaminhamentos das meninas para a Casa são feitos através do Conselho Tutelar, após o recebimento da denúncia de violação dos direitos impetrada por abuso físico, sexual, emocional, negligência, abandono e exploração (uso e tráfico de drogas, exploração sexual e trabalho infantil; para um levantamento completo, ver De Antoni, Mesquita & Koller, 1998). A abrigagem é uma medida de proteção à menina, para garantir sua segurança e sobrevivência, por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis (ECA, 1990). O encaminhamento ocorre porque as meninas estão imposibilitadas de retornar, temporariamente ou de forma definitiva, ao convívio da família de origem (configuração familiar formada pelas pessoas com as quais a menina residia anteriormente, e na maioria dos casos onde se deu a violência que gerou a denúncia).

É importante definir, brevemente, os tipos de abuso sofridos pelas meninas e acima mencionados. Estes são descritos pelas conseqüências físicas, emocionais e morais geradas, que, conforme a freqüência, a intensidade e a simultaneidade, são fatores indicativos e preditores do grau de severidade do caso. O abuso físico é detectado quando a menina apresenta lesões orgânicas clinicamente diagnosticáveis, tais como: ferimentos cutâneos, neurológicos, oculares e ósseos. Estas lesões podem ser provocadas por queimaduras, marcas e fraturas, entre outros, como resultado de espancamento ou atos de punição e perversão impetrados por outras pessoas (Farinatti, 1997; Farinatti, Biazus, & Leite, 1993; Koller, 1999).

O abuso emocional ou psicológico é evidenciado pelo prejuízo à competência emocional da menina, isto é, a capacidade de amar os outros e de sentir-se bem a respeito de si mesma. São atos de hostilidade e agressividade que podem influenciar na motivação da menina, em sua auto-imagem e auto-estima. O abuso emocional dificilmente ocorre separado de outras formas de abuso, e os relatos das meninas confirmam isto (raramente alguém espanca uma criança e diz que isto está acontecendo porque ela é linda, inteligente ou simpática). As formas comumente apresentadas de abuso emocional envolvem: humilhação, degradação, rejeição, isolamento, terrorismo, corrupção, exploração e agressão verbal (Farinatti e cols., 1993; Koller, 1999).

Os abusos sexuais correspondem aos atos impostos à menina por um adulto, que explora seu poder sobre ela, sob a forma de toques, assédio, voyerismo, sedução, estupro e exploração sexual. Neste tipo de abuso, deve ser considerada principalmente a atividade sexual imposta à menina, por não estar sintonizada com o seu nível de desenvolvimento, e para a qual é incapaz de dar o seu consentimento (Farinatti, Biazus & Leite, 1993; Furniss, 1993; Koller, 1999). A maioria das meninas abusadas sexualmente, que chegam à Casa, confirma o relato de Pires (1999) de que o abusador é uma pessoa conhecida, isto é, o pai, o padrasto, o avó, o tutor ou parente próximo.

A negligência, segundo Farinatti (1997), é evidenciada pela falta da oferta de nutrientes e estímulos emocionais necessários à integridade física, intelectual, moral e social da menina. O abandono é uma das mais graves formas de negligência, ocorrendo quando os pais biológicos ou adotivos declaram, publicamente, que não têm mais interesse na permanência da criança ou da adolescente em sua residência. Nestes casos, as meninas são "entregues" ao Conselho Tutelar ou são, geralmente, encontradas dormindo na rua (De Antoni, Mesquita & Koller, 1998).

No caso de exploração, a jovem é induzida ou coagida a participar de ações ilícitas, com prejuízo à sua integridade física, psicológica e moral. Estas ações são comandadas por outras pessoas que, muitas vezes, a convencem de que as estão ajudando. Destacam-se a exploração sexual infanto-juvenil, o uso e tráfico de drogas e a exploração no trabalho. Estas atividades as expõe a riscos físicos, exigem ampla carga horária e, em geral, não garantem remuneração, apenas algum amparo para sobrevivência, como moradia ou comida e, estão nitidamente em desacordo com os meios de proteção que um adulto pode oferecer a uma criança previstos no ECA (1990; De Antoni, Mesquita & Koller, 1998).

Cada tipo de abuso desencadeia uma sintomatologia diferenciada, que necessita ser trabalhada de forma singular. As meninas chegam à Casa com problemas variados, desde doenças físicas, como dermatites, doenças sexualmente transmissíveis, escabiosis, cáries dentárias etc., como também apresentam comportamentos que evidenciam ansiedade, depressão, baixa auto-estima, desvio de conduta, entre outros. Diante desta realidade, a equipe, e inclusive o psicólogo, necessita de subsídios teóricos e práticos que possibilitem a compreensão da amplitude dos processos envolvidos e que, ao mesmo tempo, a capacite na operacionalização das tarefas e no atendimento de cada caso.

A inserção do psicólogo na equipe técnica da Casa ocorreu na inauguração do serviço. A princípio, as tarefas eram realizadas de acordo com uma demanda de urgência, com o objetivo de amenizar o sofrimento das meninas através de um atendimento individualizado e sob uma ótica com base apenas na singularidade dos conhecimentos e da formação específica do profissional. Entretanto, havia por parte do psicólogo uma preocupação em compreender o processo subjacente que permitia a ocorrência da violência, a partir do ponto de vista da menina e dos registros de encaminhamento do caso para a instituição. A partir deste entendimento e contando com os recursos da Casa, eram decididos e efetuados os encaminhamentos para outras instâncias de atendimento, para efetivar o retorno às famílias de origem ou substitutas. As decisões tomadas representavam o melhor que a Casa podia fazer por aquela menina naquele momento. Não havia, no entanto, práticas de atendimento às famílias, ou outras trocas que envolvessem as demais instituições comunitárias, ou a integração multidisciplinar dos profissionais e da equipe da Casa, que estava ainda se constituindo.

Como o atendimento era restrito às meninas e o auxílio era momentâneo, a situação, muitas vezes, não era resolvida. Os relatos de reincidência ou perpetuação de violência familiar se acumulavam e, em alguns casos, se agravavam. A história de abuso se repetia na família de origem e a menina era reencaminhada à Casa. Nas famílias substitutas era constante os casos de não-adaptação às rotinas e à estrutura daquele novo grupo, além de relatos repetidos de exploração no trabalho doméstico.

Diante desta realidade, havia um sentimento de impotência presente na equipe e no psicólogo que os incomodava profundamente. Os técnicos envolvidos no processo, em geral, se defendiam com racionalizações como: "faz parte deste contexto social" ou responsabilizavam a família, o sistema ou outros pelo insucesso. Esta postura refletia uma rigidez de papéis dos membros da equipe e das pessoas que participavam de outros órgãos de apoio. A falta de clareza da responsabilidade de cada sistema ou órgão de atendimento era um fator preocupante. A Casa de Passagem, por exemplo, poderia responsabilizar o Conselho Tutelar, alegando que o trabalho de reintegração da menina à família ou a sua adaptação em outra, era de competência apenas daquele órgão. Assim, se isentaria da responsabilidade diante do fracasso na condução do caso e o respectivo retorno da menina à instituição. O trabalho era fragmentado e gerava a cada reingresso um sentimento ainda mais intenso de frustração e impotência, tanto para a menina, como para o profissional. Esta desesperança agravava-se pela nítida evidência de que a qualidade de vida da menina se deteriorava, e pela inconformidade e desconforto dos técnicos diante desta situação. Certamente, com estas dificuldades a qualidade de vida dos técnicos também estava abalada.

Identificados estes sentimentos e problemas, a equipe avaliou sua atuação e resolveu buscar alternativas eficazes no atendimento da menina. Havia claramente uma necessidade de capacitação para este trabalho por parte da equipe e do psicólogo. Faltava um referencial teórico que permitisse compreender o todo de forma dinâmica, sistêmica e contextual, ao mesmo tempo em que fornecesse novas alternativas para resolução dos problemas de forma eficaz, garantindo a melhoria da qualidade de vida de todos os envolvidos. O modelo ecológico do desenvolvimento humano, proposto por Urie Bronfenbrenner (1979/1996), veio responder a esta demanda e aos questionamentos da equipe, revelando uma possibilidade de aplicação do conhecimento para implementação de práticas efetivas de atendimento, e sinalizando para a necessidade de participação de toda uma rede comunitária externa ao âmbito restrito da Casa. Na verdade, o novo aprendizado da equipe a fazia perceber que "as lentes para olhar o mundo" estavam mudando. Antes viam o mundo focalizando na menina e agora deveriam ver o mundo social, ambiental, histórico e temporal da mesma menina em interação. As "lentes de perto" deveriam ser substituídas por "lentes de visão ampla", com um foco integrado para perto e para longe, levando em conta a ecologia do mundo no qual a menina se desenvolvia.

O modelo ecológico privilegia a compreensão do ser humano de maneira ampla e sistêmica. A menina, até então vista enquanto vítima institucionalizada por uma situação de violência familiar, passaria de um atendimento individual, com base em seus processos internos, a ser entendida como uma pessoa em interação em um sistema ecológico. Buscar-se-ia a superação deste papel de "vítima" e do fortalecimento pessoal da menina. Havia agora mais clareza de que não era possível executar um atendimento eficaz, sem que houvesse a compreensão de que a menina se desenvolvia, interagindo com o ambiente imediato no qual está inserida e com os outros ambientes aos quais pertence. A equipe passou a desenvolver uma visão ecológica, abrangendo contexto (ambiente), momento histórico, rotinas, crenças, processos, interpretação dos eventos de vida da menina nas situações familiares e na instituição. A equipe pôde, então, começar a definir com mais clareza o seu papel, e os papéis de cada técnico em sua especificidade. O psicólogo e a própria Casa, enquanto sistemas presentes no momento de vida das pessoas envolvidas na situação de violência, também passaram a agir com maior integração.

O novo modelo precisou ser bastante estudado e discutido para sua implementação efetiva, que ocorreu de forma sutil e ao longo do tempo. O psicólogo teve, desde o início, um papel importante no incentivo da capacitação dos técnicos e na adequação dos fundamentos teóricos às realidades vividas. A aplicação destes conhecimentos exige a avaliação de quatro núcleos do sistema ecológico em permanente interação dinâmica: a pessoa, o processo, o contexto e o tempo (PPCT) (Bronfenbrenner,1993). O psicólogo, com o apoio da equipe técnica e dos monitores, passa, então, a trabalhar dinamicamente estes núcleos no atendimento à menina, à família e à instituição.

A pessoa é compreendida pelas características biológicas, físicas e psicológicas em interação com o ambiente. Bronfenbrenner e Morris (1998) chamam a atenção para as disposições, recursos e demandas da pessoa para melhor defini-la. Disposições referem-se aos aspectos da pessoa que acionam e mantêm a sua interação com o ambiente. Recursos consistem nas características adquiridas e internalizadas pela interação da menina com o ambiente, como suas experiências (relações de apego ou escolaridade) e habilidades (competência social). Demandas consistem nas características inerentes e pré-determinadas da menina, como o próprio gênero, etnia, herança genética, temperamento, que convidam ou desencorajam reações do ambiente sobre ela (Alves, 1999; Bronfenbrenner & Morris, 1998). Estes três aspectos combinados formam a estrutura da Pessoa, e podem direcionar e fortalecer o desenvolvimento da mesma.

Estas meninas precisavam, então, ser vistas como pessoas, em sua totalidade, com seus sentimentos, histórias de vida, experiências, interpretação de suas interações, crenças e como organismo físico em desenvolvimento. Era necessário, ainda, que a equipe entendesse que elas eram, em sua maioria, adolescentes, com as características inerentes desta fase do ciclo vital, do ponto de vista emocional, cognitivo, moral e físico. Elas vivenciaram situações de violência, que marcaram significativamente suas vidas e influenciaram na forma de agir ativamente no seu ambiente. Este evento de vida não poderia ser desqualificado ou esquecido pela equipe, mas não deveria ser encarado como um fato definitivo e único que rotulasse esta menina, sem a possibilidade de buscar uma superação ou sucesso em seu desenvolvimento. Deveria, certamente, ser considerado como uma experiência vivida, que poderia ser trabalhada, partindo muito mais dos aspectos sadios preservados pela menina e pelo seu potencial de adaptação, calcado no auxílio da equipe, na busca de uma coesão ecológica baseada em novos vínculos e com o apoio efetivo de uma rede afetiva.

O outro núcleo a ser considerado é o que Bronfenbrenner (1993) denomina como processo, ou seja, a forma como a menina interpreta suas experiências, interações e o ambiente no qual se desenvolve. Bronfenbrenner e Morris (1998), recentemente, ampliaram este conceito, chamando de processo proximal a interação da pessoa com outras pessoas, contextos, objetos e símbolos. Na prática da equipe, lidar com os processos de desenvolvimento das meninas parecia uma tarefa mais fácil, uma vez que desde o início do trabalho da Casa houvera uma preocupação com os aspectos psicológicos internos. No entanto, este conceito novo trazia o desafio de focalizar mais os processos sadios e a promoção da resiliência, integrando esta prática e o conhecimento da equipe com os recursos, demandas, interações e sistemas externos, ora salientados pela visão ecológica do desenvolvimento.

O contexto aparecia, nestes casos, com uma forte intensidade. Era necessário entender os níveis de interação entre os quatro sistemas - microssistema, mesossistema, exossistema e macrossistema, que Bronfenbrenner (1979/1996) descreveu como um meio ambiente ecológico. O microssistema é definido como o espaço de interação de diferentes pessoas, em relações face-a-face, baseadas em reciprocidade e estabilidade. Para a menina, a família é o microssistema primário, mas seu desenvolvimento é povoado por vários outros microssistemas, como a rua, a escola, a igreja, entre outros. A Casa também deveria ser vista como um microssistema, enquanto a menina está institucionalizada. O conjunto de micros-sistemas consiste no que Bronfenbrenner (1979/1996) chamou de mesossistema. A equipe deveria estar atenta para a participação ativa da menina nos diversos ambientes, assumindo papéis específicos em cada um deles, com base nas expectativas geradas em cada interação. Isto demonstra que os ambientes também agem sobre a menina e possibilitam que esta transite ecologicamente entre eles. A eficácia desta transição ecológica entre os microssistemas e os diferentes papéis exigidos pelas pessoas nos variados contextos dependerá da saúde das interações (Bronfenbrenner, 1979/1996). A equipe percebia que os fatos ocorridos em um microssistema estão relacionados e interagem com o que acontece nos outros microssistemas, porque a pessoa em interação está transitando entre eles. A atenção deveria ser focada no efeito sinergético criado por uma interação de características que inibem ou estimulam o desenvolvimento da menina e nos potenciais riscos para o desenvolvimento que surgissem desta transição. Para a adolescente, na Casa de Passagem, a família, a escola, os amigos são percebidos como integrantes do seu mesossistema e por isso, devem ser conhecidos e compreendidos pela equipe técnica.

Ainda há o exossistema, que foi postulado como um ou mais ambientes nos quais a pessoa não participa face-a-face, mas cujas decisões tomadas, direta ou indiretamente, influenciam na sua vida (Alves, 1997; Bronfenbrenner, 1979/1996; Muuss, 1996). O exossistema pode ser formado por órgãos governamentais e não-governamentais, ações comunitárias, o emprego dos pais, Conselho Tutelar, Promotoria da Infância e Adolescência, Secretária da Saúde do Município, instituição religiosa que forma o Conselho da Casa, entre outros ambientes, que têm poder decisório sobre o destino das meninas e elaboram as diretrizes do atendimento. O conhecimento desta nova dimensão teórica abriu horizontes no trabalho da equipe, que percebeu que as decisões tomadas sobre o encaminhamento e o futuro da menina precisavam abranger todos estes ambientes. Para um trabalho eficaz e efetivo, a atuação do psicólogo deve ultrapassar as paredes da instituição à qual está ligado, integrando em forma de rede de apoio todos os ambientes que têm qualquer implicação no desenvolvimento da menina (Brito & Koller, 1999). A troca de experiências, o apoio social, jurídico, assistencial, religioso, comunitário, familiar, entre vários outros, são fundamentais para ampliar possibilidades de ação no atendimento de cada caso. Para tal, o psicólogo deveria se "desatar das amarras" de sua formação de trabalho em um gabinete e "desbravar" a comunidade ampla na qual tanto ele, quanto as meninas e as demais pessoas, estavam envolvidos. Então, tem condições de conhecer como funcionam estes órgãos, quem são e como agem as pessoas que fazem parte deste sistema, qual a legislação vigente e as políticas de atendimento. E, assim, o psicólogo pode entender como se estabelecem as relações, quais são as possibilidades, as limitações e os desafios do seu trabalho. Este aprendizado ocorre quando o psicólogo se propõe a promover a interface entre a instituição e os demais órgãos, juntamente com outros profissionais da equipe, abrindo-se para esta nova prática. Como conseqüência, o espaço da instituição também é aberto, para que os demais sistemas possam se conectar em forma de rede de apoio social, comunitário e de atendimento. A passagem do exossistema para o mesossistema de algumas entidades pode representar um fator de proteção importante diante da situação de risco à qual a menina está exposta. Se o Conselho Tutelar, por exemplo, passar a interagir face-a-face com a menina, buscando uma solução para seu problema, deixa de ser apenas uma entidade que garante o direito da criança em caso de violação, para agir diretamente na promoção da assistência e da proteção desta menina. Os papéis institucionais devem estar bem definidos e não devem transpor gratuitamente as suas fronteiras. Isto diminui o sentimento de impotência e frustração da equipe. No entanto, é importante ter clareza que a rigidez e a ausência de flexibilidade podem atingir, dramaticamente, a vida de uma menina. Os papéis atribuídos à Casa de Passagem devem estar bem definidos, para que, diante da necessidade de mudança de um sistema exo para meso, a Casa possa agir eficazmente, sem perder a visão de sua própria função ou invadir as fronteiras e as possibilidades de outros órgãos.

O contexto mais amplo, denominado por Bronfenbrenner (1979/1996) como macros-sistema, abrange todos os outros sistemas mencionados até aqui. Nele estão presentes os valores culturais, sociais, religiosos, políticos, educacionais, legais e econômicos e a ideologia de uma sociedade. Este sistema, embora amplo, não está distante da realidade das pessoas. Ao contrário, tem influência direta no desenvolvimento e na qualidade de vida delas, pois envolve as regras de convivência, estereotipias, crenças e preconceitos de um grupo cultural. Sabidamente esta influência age sobre as leis, políticas de atendimento e decisões sociais e pessoais. Por exemplo: se uma sociedade entende que a violência intrafamiliar é uma questão particular deste grupo, pois acredita que ele tem posse sobre a criança, ou que o marido tem posse sobre a sua mulher, certamente não desenvolverá políticas de atendimento eficazes com base em um compromisso com a saúde e os direitos da criança e da mulher, inseridas na situação de violência. A mesma idéia de posse pode ser cúmplice da punição corporal, se a sociedade considerá-la como uma forma vigente de educar e socializar uma criança. Os casos de exploração sexual da mulher e da menina, baseados na crença de que esta é uma escolha pessoal de vida e que elas poderiam modificar sua realidade se quisessem, são outro exemplo da influência equivocada do macros-sistema. Por fim, em nível ainda mais amplo, a valorização e a intensificação da violência pela mídia, a visão social e cultural sobre a mulher, o preconceito social, racial etc., certamente afetam o desenvolvimento de uma pessoa, e os profissionais devem estar alerta em seu trabalho comunitário, seja com o objetivo de educar, de prevenir ou de intervir diante de violações de direitos.

Outro aspecto importante, para ser incluído no trabalho da equipe, foi designado por Bronfenbrenner (1979/1996) como cronossistema, e consiste na seqüência de eventos que constituem a história e as rotinas de uma pessoa. Funciona como um organizador social e emocional (Alves, 1999), que aponta para a estabilidade ou instabilidade dos eventos no ciclo vital ou diário. O cronossistema divide-se em: microtempo, mesotempo e macrotempo (Bronfenbrenner & Morris, 1998). O micro-tempo é analisado pela continuidade e descontinuidade dos episódios relativos ao processo proximal, ou seja, o tempo de reação das meninas, de interpretação dos eventos e de aprendizagem. O mesotempo é a periodicidade desses episódios através de intervalos amplos como os dias e as semanas, envolvendo as rotinas, o estabelecimento de organização disciplinar, percepção dos limites, horários e regras de convivência. O macrotempo está centrado na história de vida da menina (e de todas as pessoas e contextos nos quais interage) e nas expectativas de mudanças e de ocorrência de eventos que possam ter influência no desenvolvimento durante o ciclo vital. Este aspecto tem impacto direto no projeto de vida e nas perspectivas (e expectativas) de futuro da menina e da equipe.

Diante dessa perspectiva teórica e da possibilidade de uma prática ecológica, o trabalho da equipe inicia antes ainda da menina ingressar na Casa e não se encerra com a sua saída. As ações de trabalho estão voltadas para o resgate da melhoria da qualidade de vida e para o despertar da consciência de cidadania.

 

A Prática na Instituição com Enfoque Ecológico

Ao entrar na Casa de Passagem, a menina substitui o ambiente hostil e de violência por um ambiente acolhedor. Em sua chegada, a menina é recepcionada pela diretoria, monitoras e, principalmente, pelas outras meninas. Com este ambiente acolhedor, a equipe facilita a transição ecológica da menina de um microssistema para outro, ao mesmo tempo que a auxilia na apropriação dos novos papéis e na tentativa de superação dos aspectos desadaptados e/ou doentios presentes em sua história. Para tanto, precisam ser apresentadas as características deste novo ambiente, regras de convivência e as expectativas com relação à menina, para que ela possa realizar esta transição de forma efetiva. Na recepção, são mostradas as dependências físicas da Casa e é explicado o seu funcionamento, salientando os seus direitos e deveres neste novo ambiente. Os diversos sentimentos oriundos desta nova situação são respeitados, tais como: o medo do desconhecido, a falta de perspectivas, a saudade das pessoas que ama, o suposto sentimento de "aprisionamento" e de institucionalização, entre outros. O trabalho da equipe ultrapassa as tarefas operacionais de suprir as necessidades básicas de alimentação e conforto, tentando propiciar um ambiente de apoio afetivo para a menina, que amenize as marcas de algum tipo de violência em sua história recente. Com esta intervenção inicial, a equipe procura interagir com a menina em coesão ecológica e na busca do estabelecimento de um vínculo.

É fundamental que cada profissional saiba o seu papel e as suas tarefas, porém tenha flexibilidade diante das diferentes necessidades cotidianas que surgem. A proposta do trabalho multidisciplinar enriquece os profissionais, pois permite discutir estratégias diversificadas que almejem resultados eficazes. As decisões sobre o procedimento a ser adotado são tomadas em conjunto, após todos os técnicos fornecerem sua opinião. E, neste momento, é possível expor os sentimentos, as frustrações e as gratificações, a indignação frente a estas situações de violência, como também, identificar as barreiras e avaliar os resultados do trabalho. A preocupação ética está presente em todos os momentos, preservando a integridade física, emocional e moral das meninas (Hutz & Koller,1999).

O papel do psicólogo na equipe é fundamental. O entendimento do processo e a realização de seu trabalho são dinâmicos, porém, para efeitos descritivos, serão apontadas as tarefas do psicólogo separadamente, lembrando que poderão ocorrer ou não na ordem descrita.

Cada caso exige uma intervenção diferente, mas sempre com o intuito de preservar e valorizar os aspectos sadios existentes na menina, em sua família, na Casa de Passagem e nas demais pessoas e instituições que fazem parte da sua rede de apoio. Geralmente, a intervenção inicial do psicólogo ocorre com o atendimento individual, no qual busca estabelecer um contato afável e receptivo, resgatar o histórico dos acontecimentos através da visão da menina e, ao mesmo tempo, na relação face-a-face, identificar e promover aspectos relacionados às características pessoais, que favorecem enfrentar a situação estressora, por exemplo: a promoção da resiliência e a elevação da auto-estima. O stress poderá ser fruto da violência intrafamiliar, como também da institucionalização, que obriga a menina a sair do seu lar, enquanto o agressor permanece, muitas vezes, intocável. Neste contato individual, para efeito de registro e documentação do caso, são obtidos dados bio-ecológicos da menina (idade, escolaridade, configuração familiar, história de vida etc.), anotados em uma Ficha de Ingresso.

Além da preocupação com os aspectos enfatizados pela abordagem ecológica do desenvolvimento humano, o psicólogo embasa seu trabalho nos conceitos de resiliência e vulnerabilidade, risco e proteção. Rutter (1987) definiu resiliência como a capacidade de buscar alternativas eficazes que auxiliarão a enfrentar de forma satisfatória os eventos de vida negativos. Vulnerabilidade consiste na ausência desta capacidade ou na ação ineficaz dos recursos pessoais na superação de eventos negativos de vida, provocando comportamentos desadaptados ou sintomas psicopatológicos em casos extremos (Garmezy & Masten, 1985). Ambos os conceitos envolvem fatores de risco e de proteção aos quais a pessoa está exposta. Risco está associado às características ou aos eventos que podem levar a resultados ineficazes, enfraquecendo a pessoa diante da situação de stress.

Em contrapartida, os fatores de proteção inibem a intensidade deste risco e têm sido identificados principalmente no cuidado estável oferecido pela família, que reforça a identificação com modelos e papéis; nas características pessoais, como a habilidade para resolver problemas, a capacidade de cativar pessoas, competência social, crenças de controle pessoal sobre os eventos de vida e senso de auto-eficácia; e na possibilidade de poder contar com o apoio social e emocional de grupos externos à família, diante de eventos estressores. Garmezy (1996) considera que, para desenvolver a resiliência, três fatores precisam interagir dinamicamente: a coesão familiar, as características pessoais e uma rede de apoio social e afetivo eficaz. O trabalho do psicólogo está centrado na importância de fortalecer (empowerment) as características pessoais da menina, oferecer alternativas de apoio na comunidade e de propiciar um sentimento de coesão ecológica no ambiente institucional, com relações de confiança e vínculo.

Durante a permanência das meninas na Casa, o trabalho consiste na promoção de resiliência, isto é, na identificação de fatores de proteção individuais, familiares e sociais. Sendo assim, há um incremento em relação à esperança no futuro, pois as meninas podem desenvolver uma capacidade para adaptar-se às novas formas de vida. Portanto, poderão formar suas próprias famílias e adotarem estratégias eficazes para enfrentar a situação, que diminuam o risco e evitem a reincidência da violência vivida.

As histórias de vida familiar relatadas pelas meninas eram marcadas pela falta de diálogo, de confiança e pela passividade diante da agressão. Vários fatores de risco podem ser apontados em suas famílias, que são caraterizadas pela instabilidade econômica e afetiva, pela dificuldade em buscar soluções efetivas para seus problemas e pela ausência de definição e valorização dos papéis. As meninas relatavam, em geral, o sentimento de não-pertencimento e desvalorização no grupo familiar, a baixa qualidade das interações e a falta de estruturação de um sistema de apoio, onde predomine um canal aberto de comunicação, com coesão de pensamentos e consistência de ações. Relatavam, também que, na família, as regras não eram definidas, o apoio emocional era precário ou inexistente, e a auto-estima era baixa, que se reflete na precariedade de expectativas e de visão de futuro (De Antoni e cols., 1999). O ambiente familiar para elas, além do risco da violência, era pouco sadio e propício para a organização e execução de um projeto de vida. A violência em si era atribuída ao autoritarismo dos seus pais ou responsáveis civis, idéia de que eles tinham posse sobre elas e de que mereciam ser punidas e culpadas pelos acontecimentos, muito mais do que protegidas.

Na busca de uma rede de apoio social e afetivo fora da família, a precariedade e insatisfação se mantinham. A pobreza afetiva e social da família estendia-se para fora de seu ambiente físico, não permitindo o estabelecimento de relações significativas, estáveis e recíprocas em muitos dos casos. A rede de apoio teria sido eficaz se a menina pudesse contar com pessoas e/ou instituições capazes de auxiliá-la nos momentos difíceis da denúncia e na evitação da violência. Na Casa, as meninas são, então, estimuladas a desenvolverem e manterem redes de apoio social e afetivo fortes e de qualidade, para se fortalecerem e se sentirem protegidas diante de situações de risco (Brito & Koller, 1999).

O psicólogo analisa o processo de desenvolvimento da pessoa para compreender como estabelece suas relações interpessoais. Isto ocorre através do estudo e análise do modelo PPCT (pessoa, processo, contexto e tempo), e envolve, também, o conhecimento teórico das fases do ciclo vital, as causas e conseqüências dos diversos tipos de abusos, entre outros. Através do relato da menina são verificados os aspectos relacionados à percepção e aos sentimentos sobre sua família, amigos, namorados, colegas e demais pessoas que compõem sua rede de apoio social e afetiva. Mas, sobretudo, a percepção e sentimentos sobre si mesma. Portanto, o atendimento individual proporciona um espaço e um tempo para a menina pensar sobre sua trajetória de vida e de cidadania, seus relacionamentos, sua situação atual e sobre suas características pessoais. Assim, através da conscientização sobre seus direitos e sobre seu potencial, poderá construir metas e objetivos que auxiliarão na elaboração de um projeto de vida, com expectativas de melhoria no futuro.

Além do atendimento individual, o psicólogo realiza regularmente grupos com as meninas maiores de doze anos. Neste encontro, os temas são propostos por elas e, em geral, são temas comuns a adolescentes:questões relativas à sexualidade (transa, namoro, "ficar", doenças sexualmente transmissíveis, gravidez etc.); relacionados a temas presentes em suas vidas (drogas, família, violência, fofoca); aos sentimentos humanos (inveja, ciúme, medo, angústia); e a respeito do funcionamento geral do sistema sócio-político (Casa, Conselho Tutelar, Promotoria, seus direitos, entre outros). Os grupos são informais, nos quais são utilizadas técnicas ou jogos que visem a dinamizá-los, tais como: dramatizações, simulações de cenas, composição ou canto de músicas, hora do conto, elaboração de histórias, entre outros. O objetivo do grupo é a troca de informações, que ocorre através da valorização da experiência de cada menina, ao mesmo tempo em que desenvolve o potencial criativo e a comunicação eficaz. Este momento oportuniza ao psicólogo a aproximação maior à cultura valorizada pelas meninas, expressa pela linguagem, significados, gírias, crenças, certezas, preconceitos, ídolos e modismos vigentes. O psicólogo pode perceber ainda a forma como as meninas interpretam o mundo no qual vivem, seus recursos pessoais, suas disposições, a influência na construção de sua identidade, suas experiências, entre outros aspectos. A aproximação à cultura (contextos ecológicos) e às formas de interpretação de mundo (processos proximais) permitem ao psicólogo o melhor entendimento da pessoa - menina adolescente vítima de violência, como um "eu ecológico", que merece e precisa ser protegido do risco (Koller, 1998).

Para dar maior confiabilidade a esta compreensão ecológica, uma tarefa importante para o psicólogo é o atendimento familiar, que ocorre, em geral, por visita domiciliar, juntamente com o assistente social. Embora possa ser um procedimento duramente criticado por psicólogos "tradicionais", ou até mesmo argumentada a exclusividade do assistente social nesta tarefa, a visita domiciliar do psicólogo ecológico deve acontecer como um procedimento fundamental e ter seus objetivos bem claros e definidos. A visão e a análise ecológica do microssistema familiar ou do mesossistema de que a menina dispõe, só podem realmente ser confiáveis se obtidos no próprio ambiente. Para o maior entendimento da realidade da menina, é importante triangular as informações obtidas com ela, observar o ambiente físico (condições de moradia e da vizinhança) no qual vivia e as relações da família da qual se origina (visão a respeito da menina, interação, percepção sobre a violência, expectativa de futuro, valores morais, emprego e desemprego, uso de drogas, doenças físicas e mentais etc.). Esta etapa antecede a reintegração da menina na família e baseia o projeto de intervenção para a saída dela da Casa. O encontro do psicólogo com a família imediata pode ser ampliado para um contato também com outras pessoas pertencentes ao ambiente da menina, isto é, parentes, vizinhos, conhecidos e todos aqueles que foram ou poderão vir a fazer parte de sua rede de apoio social e afetivo, ou seja, é com elas que a menina contará na retomada da sua vida fora da instituição. São buscadas, também, nestas visitas, alternativas para a resolução da situação, ou pelo menos, indicadores que amenizem o sofrimento de todos os envolvidos. Quando estas alternativas podem ser encontradas nestes contatos, a equipe fica mais otimista e confiante na eficácia de seu encaminhamento. No entanto, algumas vezes, estas visitas servem mesmo é para definir, com base nos vários riscos, que é necessário buscar novas alternativas de atendimento e encaminhamento das meninas. Esta prática subsidia o que Gomes (1994) enfatiza no trabalho com famílias, ou seja, uma orientação no sentido de fortificar as possibilidades da família (fatores de proteção) e a busca de recursos da comunidade (diminuição ou extinção dos fatores de risco).

Nestas visitas aos familiares, o psicólogo busca compreender os diferentes modos de relacionamento e de estruturação familiar vigentes, ao invés de se deter no modelo tradicional de uma família nuclear burguesa, composta pelo pai, mãe e filhos, com uma ordem hierárquica estabelecida e com a divisão sexual do trabalho (Gomes, 1994). Essa visão tradicional limita o profissional na busca de alternativas junto à família e obnubila a percepção das estratégias que a família está utilizando para lidar com a situação de violência e institucionalização de um de seus membros. O psicólogo deve ter presente que família é um conceito bastante flexível e depende da visão particular de cada pessoa. De Antoni (2000) salienta que as adolescentes maltratadas, consideram como membros da sua família, as pessoas com as quais têm alguma proximidade afetiva do que aquelas com quem têm apenas laços de consangüinidade.

A entrevista com a família não segue um roteiro predeterminado. Isto favorece o diálogo sobre o trabalho que o psicólogo está realizando, os esclarecimentos necessários, a visão sobre o momento atual da vida da família, a história da família (formação, configuração, papéis, perdas e separações, relações entre os familiares, doenças, trabalho), identificação de fatores de proteção e de risco e o planejamento conjunto, se possível, de estratégias para o encaminhamento do caso. O retorno à família de origem, a adaptação à família substituta ou a ida para outra instituição são acompanhados de forma sistemática pela equipe da Casa. É importante que as instituições que formam a rede de apoio estejam em concordância com a decisão tomada, para que não haja retaliações ou boicotes ao trabalho, pois o êxito na adaptação da menina à família depende da menina e de toda a rede de apoio. No entanto, fica evidente para a menina, durante o seu processo de desligamento, que a Casa é parte de sua rede e que será acolhida novamente caso a violência se repita.

Tarefas organizacionais também fazem parte do trabalho do psicólogo, como as relacionadas à capacitação teórico-prática, com base na abordagem ecológica do desenvolvimento e suas aplicações no trabalho. A promoção de eventos é discutida e organizada em conjunto com a equipe. Os temas são sugeridos com base nas demandas emergentes da dinâmica e da realidade atual da Casa. Os aspectos operacionais relativos à disponibilidade de horários, local, entre, outros também são estabelecidos pela equipe. O primeiro encontro, visando a capacitação da equipe, foi denominado de "Trabalho com crianças e adolescentes em situação de risco" e composto de temas como: desenvolvimento psicossocial da criança e do adolescente; violência na família (causas, tipos e conseqüências); ECA; sexualidade, drogas e doenças sexualmente transmissíveis e, os procedimentos de saúde (primeiros socorros, nutrição e higiene). Outros programas de capacitação, com temas semelhantes estão sendo desenvolvidos, atualmente, em parceria com o município, seja no ambiente da Casa, na comunidade próxima ou em eventos externos promovidos pelo meio acadêmico. Para a realização destes eventos é fundamental que a equipe recorra a pessoas competentes nas temáticas a serem desenvolvidas. A participação de pesquisadores das universidades e de profissionais de outras instituições de atendimento tem sido extremamente valiosa na realização deste trabalho de educação continuada.

Acredita-se que a participação no programa de capacitação para realmente surtir os efeitos desejados, deve ser informativo, permanente e beneficiar todas as pessoas que atendem as meninas dentro da instituição. Assim, com a qualificação do grupo pode ser elaborado e aplicado um plano de ação coeso ecologicamente no trabalho da Casa. Entretanto, existe certa resistência por parte de alguns profissionais na participação neste tipo de evento, apesar da necessidade sentida na prática. Provavelmente isso ocorra, pelo despreparo e falta de qualificação para este trabalho. Este processo é cíclico à medida em que esta falta produz desvalorização do profissional pela comunidade e por si mesmo. A partir de uma tomada de consciência sobre o seu papel e a importância de suas atribuições torna-se possível identificar o profissional, mais do que por sua formação acadêmica básica e atribuições cotidianas (psicólogos, assistentes sociais, técnicos ou monitores), mas pela possibilidade de agir ecologicamente em seu meio, mediante uma visão de saúde e entendimento do desenvolvimento humano, ou seja, como um educador social.

Como conseqüência do processo de capacitação continuada, a realização de reuniões semanais é outra tarefa importante para a equipe. As reuniões internas dos técnicos tratam das práticas no cotidiano da Casa, planejamento, estabelecimento de regras, relacionamento pessoal, estudos dos casos, avaliação da interface com outras instituições e entidades, entre outras demandas imediatas que se façam necessárias. Com base no enfoque ecológico, a Casa privilegiou também a participação do psicólogo em reuniões na comunidade. No contato com outras instituições, Promotoria, Conselho Tutelar, entre outros, o psicólogo se atualiza. Ao mesmo tempo, obtém subsídios para efetuar um diagnóstico ecológico do exossistema no qual a Casa está inserida. As informações obtidas, através da observação e da participação, favorecem a compreensão do todo, das limitações políticas e sociais do município e as possibilidades de oferecer e obter recursos e melhorar a qualidade do trabalho da Casa. Com a sua participação efetiva, ao mesmo tempo que contribui com a sua visão e experiência sobre os temas propostos, interage com a rede de apoio disponível nesse contexto, o que favorece ainda mais as decisões sobre os encaminhamentos a serem realizados.

Para complementar o ciclo de tarefas, o psicólogo junto com o assistente social elabora uma Síntese Psicossocial, ou seja, um registro escrito com dados bioecológicos (iniciado na Ficha de Ingresso), sócio-demográficos e históricos da menina, antes e durante a sua permanência na Casa, e o relato dos procedimentos adotados pela equipe. Esta Síntese é remetida para o Promotoria da Infância e da Adolescência e para o Conselho Tutelar.

Todas estas tarefas são fundamentadas em uma atualização profissional constante. Estudar, pesquisar, debater, ouvir outros profissionais da Psicologia e de outras áreas contribui para o entendimento cognitivo e, para aliviar ansiedades e frustrações advindas das limitações político-sociais e pessoais existentes.

 

Considerações Finais

O trabalho do psicólogo na Casa de Passagem é reconhecido por ações que visem a melhorar a qualidade de vida da criança e da adolescente em situação de risco. Estas ações são realizadas em equipe e estão relacionadas ao atendimento individualizado, ao atendimento em grupo, ao atendimento familiar (visitas domiciliares), a capacitação dos profissionais, a sistematização dos dados obtidos na Casa e a participação ativa nas reuniões de equipe e de outras entidades. Conhecer a rede de apoio e as diferentes faces da mesma história é fundamental para a compreensão e resgate das diversas peças/fragmentos do quebra-cabeça que constitui a realidade da menina. Com o trabalho de uma equipe multidisciplinar, a menina encontra recursos pessoais e sociais para enfrentar o momento difícil de sua vida, tendo melhores condições emocionais diante da situação de violência e para planejar seu futuro.

Atualmente, o resultado do trabalho desenvolvido pela Casa vem sendo avaliado e valorizado pela equipe e pela comunidade por sua eficácia, que é evidenciada através da baixa incidência de reingressos. Este índice demonstra que o acompanhamento, com base no entendimento ecológico da realidade da menina e da Casa, está surtindo efeito. Certamente, ainda existem limitações, dificuldades e o trabalho está em pleno processo. Ainda há reingressos que revelam a persistência de trabalhos isolados, sem que todos que fazem parte da rede sejam ou estejam envolvidos. No entanto, o sentimento da equipe não é mais de impotência e frustração, mas de esperança e otimismo, de motivação e busca de novas aprendizagens e oportunidades para melhorar o seu trabalho.

A vitimização pela violência continua sendo um evento de vida negativo, que abala a resiliência das meninas e a expõe à sua fragilidade, mas a equipe tem buscado mais e mais que a institucionalização dela seja vista como um fator de proteção e de fortalecimento da resiliência, muito mais do que outro evento negativo em sua história pessoal. O resultado positivo do novo enfoque e das novas práticas também é avaliado pelo vínculo estabelecido entre os profissionais da Casa e a menina. Cada vez mais diminui o reingresso por reincidência de violência e cada vez mais aumenta o número de meninas que voltam espontaneamente à Casa para buscar auxílio quando precisam ou, simplesmente, para manter contato, visitar e dar notícias.

O trabalho do psicólogo não é uma tarefa fácil e simples. Nem todos os problemas estão resolvidos, porque muitos fatores independem dele ou da participação da Casa. No entanto, há uma constante revisão crítica de seus posicionamentos e de suas ações. Boas intenções sozinhas não são suficientes. É necessário estar comprometido com a melhoria da qualidade de vida das meninas, da equipe e da sua própria. É necessário, também, revelar a importância de seu papel como profissional. O psicólogo precisa compreender que é imprescindível fazer parte do todo e se sentir especial por isso.

 

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Endereço para correspondência
Clarissa De Antoni & Sílvia Helena Koller
CEP-RUA/UFRGS
Instituto de Psicologia
Rua Ramiro Barcelos, 2600/104
90035-003 Porto Alegre - RS
Tel.: +55-51 316-5150
Fax.: +55-51 330-4797
E-mail: cep-rua@vortex.ufrgs.br

Recebido 23/12/99
Aprovado 22/09/00

 

 

* Doutoranda e Mestre em Psicologia do Desenvolvimento do Curso de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Membro do Centro de Estudos Psicológicos sobre Meninos e Meninas de Rua (CEP-RUA/UFRGS). Coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Desenvolvimento Comunitário e Cidadania e da Equipe de Pesquisa sobre Resiliência Familiar do CEP-RUA/UFRGS. Trabalha como voluntária na Casa de Passagem Suzana Wesley, mencionada no relato de experiência.
** Psicóloga, Doutora em Educação,pesquisadora do CNPq e professora do Curso de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenadora do Centro de Estudos Psicológicos sobre Meninos e Meninas de Rua (CEP-RUA/UFRGS).