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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.21 n.1 Brasília mar. 2001

 

ARTIGOS

Morte e castração: um estudo psicanalítico sobre a doença terminal infantil

 

 

Mônica de Oliveira Gonçalves*

Associação Brasileira de Problemas da Aprendizagem - ABRAPA
Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Com o objetivo abordar a questão da doença terminal em pacientes pediátricos, este artigo visa promover uma reflexão sobre a maneira como a criança enferma lida com a morte, bem como seus pais, irmãos e profissionais da área da saúde. A teoria psicanalítica freudiana foi utilizada como embasamento da compreensão dos mecanismos presentes neste processo. A sensibilidade, humildade e compreensão das nossas próprias limitações enquanto seres humanos e profissionais é o meio mais simples e natural de compartilhar com o paciente sua experiência de finitude.

Palavras-chave: Morte, Infância, Psicanálise.


ABSTRACT

In order to address the terminal disease in pediatric patients, this article intends to promote a reflection on how the sick child deals with death, as well as the family and the health professionals. The Freudian psychoanalysis theory has been used as the foundation to understand this process. Sensibility, humility and comprehension of our own limitations while human beings and professionals are the most natural way to share with the patient his death experience.

Keywords: Death, Childhood, Psychoanalysis.


 

 

Psicanálise e Morte

No contexto da teoria freudiana, uma das primeiras manifestações de angústia demonstrada pela criança decorre do afastamento da mãe. Para ela este afastamento, por mais breve que seja, é encarado como uma perda definitiva. No texto Além do Princípio de Prazer (1920), Freud comenta sobre o jogo do Fort-Da, que representa claramente o movimento de afastamento e retorno do objeto.

Neste jogo a criança segurava um carretel de madeira com um cordãozinho em torno dele, o qual arremessava para longe enquanto dizia "ooó" (fort, que em alemão, significa ir, partir). Depois ela puxava o cordão de volta enquanto exclamava alegremente "da" (que significa "ali").

Além da angústia da perda do objeto, existe outro tipo de angústia presente nos contextos que envolvem circunstâncias de limitação e impotência: a angústia de castração. Esta permanece estreitamente relacionada a situações de doença, hospitalização e sofrimento físico imposto pelo tratamento (como injeções, intervenções cirúrgicas, curativos etc). No caso dos pacientes terminais, a morte iminente está fortemente vinculada à castração, pois ela subtrai sua possibilidade de vida. A angústia de castração é decorrente do medo de ser separado de algo extremamente valioso para o indivíduo. O medo da morte é análogo ao medo da castração; logo a angústia de castração pode ser definida como uma reação a situações de perigo e ameaça à integridade do sujeito.

A experiência da castração está presente em nossa vida diária, como a separação das fezes do corpo, a perda do seio no desmame etc. Porém, a experiência da morte representa a "castração por excelência", pois é irreversível e incapaz de ser compensada através de substitutos. O eu permanece absolutamente vulnerável e indefeso perante a morte.

A título de ilustração utilizamos o caso do pequeno Hans (Freud,1909). O aparente medo infundado que o pequeno Hans tinha de cavalos, na verdade nada mais era do que o medo da castração que, em sua fantasia, aparecia na forma de um cavalo que poderia extirpar seus órgãos genitais a dentadas. Na ocasião, a criança encontrava-se no auge de sua atitude edipiana na qual o pai era seu maior rival, disputando com ele o amor de sua mãe. Hans nutria por seu pai um sentimento ambivalente de amor e ódio, e sua fobia, segundo Freud, representou uma tentativa de solucionar este conflito, recalcando do o impulso de hostilidade contra o pai. A idéia de castração esforçava-se para não vir à tona, mascarando-se através de um componente de angústia fóbica.

Existe também outro aspecto digno de nota: Hans temia ser devorado pelo cavalo. Esse medo de ser devorado remonta a um impulso passivo de ser tomado pelo pai como objeto. Além disso o pai de Hans tinha por hábito brincar com ele de "cavalinho"; daí a escolha do cavalo como objeto de sua fobia. A criança, portanto, tinha medo de ser castrada pelo pai, e através da formação substitutiva, deslocou este medo para a figura do cavalo.

O amor em sua relação com a mãe e a agressividade direcionada contra o pai desapareceram através do mecanismo do recalque, sendo substituídos pelo sintoma fóbico. A "vantagem" do sintoma é que o eu passa a ser ameaçado por um perigo externo, que é o objeto da fobia (cavalo), e não mais por um perigo que vem de dentro do indivíduo, uma vez que o que vem de dentro (pulsão) é mais difícil de ser refreado do que o que vem de fora.

Otto Rank menciona que a primeira experiência traumática de castração é o nascimento, no qual mãe e bebê são separados um do outro após nove meses de união. O nascimento seria o protótipo de todas as situações de ameaça e perigo. Freud, criticando Rank, comenta que neste caso a castração seria uma experiência vivida exclusivamente pela mãe, que é separada de seu bebê. O bebê ainda é um ser totalmente narcísico e alheio à sua existência enquanto objeto, e por isso é incapaz de reconhecer a incompletude. Ele apenas reconhece sentimentos de prazer e desprazer. O bebê precisa estar junto à mãe porque esta atende prontamente a todas as suas necessidades, proporcionando-lhe satisfação e prazer; por esse motivo ele sente angústia diante da ameaça da perda da mãe.

De acordo com Bergmann (1978), muitas crianças vêem a doença como uma punição por "maldades" tais como a desobediência, o desprezo pelas regras e a negligência às proibições com relação aos "abusos" corporais, como a masturbação, por exemplo.

Podemos afirmar que essas "maldades" a que se refere Bergmann, no imaginário infantil, são punidas pela castração, pois a pessoa doente experimenta uma série de restrições e impedimentos em função de seu estado. A experiência de castração iniciase no instante mesmo em que o paciente é internado no hospital: ele é desprovido de suas próprias roupas, passando a ter que vestir um avental comum a todos os pacientes. Além disso o indivíduo passa por uma brusca despersonalização: ele deixa de ser o "Fulano de Tal" para ser "o paciente do leito 12" (em alusão ao número do leito que o paciente está ocupando) ou simplesmente "o refluxo", por exemplo, (em alusão à patologia apresentada pelo paciente).

Também é possível que o paciente considere que está sendo punido pelo fato de estar "roubando" sua mãe de seu pai; afinal a criança e sua doença passam a ser o centro das atenções, e quem geralmente cuida da criança doente é a mãe.

O medo e a angústia são sentimentos presentes em situações de doença terminal. O desencadeamento de mecanismos de defesa pode ocorrer em função da busca de um equilíbrio interno. Um dos mecanismos de defesa mais utilizados em situações como esta é o da negação. Tanto os pais quanto as crianças não raro encaram a doença terminal como algo "que vai passar". Caso não fossem erigidos mecanismos de defesa, a maioria das pessoas provavelmente não suportaria lidar com a dor da perda.

Em Luto e Melancolia (1917), Freud aborda a questão do luto e sua diferença com relação à melancolia, que consiste em um luto patológico. Para o autor o luto é uma reação natural referente à perda de um objeto amado. É o momento em que o sujeito retira a libido do objeto que foi afastado ou não mais existe. O luto é uma reação absolutamente sadia e faz parte do processo de desvinculação da libido do objeto perdido. Desta forma, a tentativa de interromper o luto é inútil ou até prejudicial ao sujeito, e a brusca substituição do objeto perdido tende a não ser aceita. O processo de desligamento é gradual e demanda um tempo que deve ser respeitado.

O luto, segundo Freud, caracteriza-se por um profundo desânimo e desinteresse pelo mundo externo, pela perda momentânea da capacidade de amar e inibição de toda e qualquer atividade (mesmo aquelas as quais o sujeito antes realizava com prazer). A pessoa enlutada retira a libido anteriormente investida no objeto e a introjeta em seu próprio eu.

Porém, na melancolia (luto patológico) isso não acontece. A melancolia compartilha com o luto todas as suas características, com exceção de uma: a brutal diminuição da auto-estima do sujeito. O melancólico introjeta o objeto perdido em seu próprio eu, realizando uma identificação deste com o objeto; desta forma torna-se difícil definir o motivo do sentimento de pesar, uma vez que o objeto e o eu se confundem. Assim, o sujeito sabe que perdeu alguém, porém não consegue definir o que perdeu desse alguém. Na melancolia, portanto, a perda do objeto foi retirada da consciência.

Podemos afirmar que a melancolia funciona a serviço da pulsão de morte, uma vez que a perda da auto-estima pode levar a um comportamento auto-punitivo geralmente demonstrado pela insônia e perda do apetite, dentre outros sintomas. Isso nos leva a concluir que a pulsão de vida cede espaço à destrutividade típica da pulsão de morte. O melancólico, portanto, revela-se um masoquista em potencial. Este masoquismo é fruto da agressividade voltada contra o objeto perdido que, introjetado ao eu, volta-se contra si próprio. Cabe aqui mencionarmos que Freud comenta que existem duas forças antagônicas presentes, simultaneamente, no psiquismo: uma delas opera no sentido construtivo e assimilatório, e a outra no sentido oposto, ou seja, destrutivo e dissimilatório. Estas forças antagônicas são denominadas pelo autor de "pulsão de vida" e "pulsão de morte", respectivamente.

Através do conceito de pulsão de morte, Freud introduz a idéia de que todo ser vivo aspira à sua própria morte como um modo de pôr fim à tensão interna provocada pela pulsão sexual, que está sempre elevando o nível energético e promovendo o desequilíbrio interno do aparato psíquico.

O psiquismo tende a descarregar a tensão interna até mantê-la constante em um nível mínimo compatível com a vida. A descarga desta tensão é sentida como prazer. O princípio do Nirvana é a descarga completa de tensão interna do psiquismo até um nível zero de energia, que corresponderia à morte. O desprazer, portanto, surge devido ao aumento desta tensão. Em Além do Princípio de Prazer, Freud, citando Schopenhauer, afirma que:

"...a morte é o verdadeiro resultado e, até esse ponto, o propósito da vida, ao passo que o instinto sexual é a corporificação da vontade de viver"(p.69)

Pulsão sexual (Eros) e pulsão de morte (Tânatos) operam em pólos opostos: a primeira é unificadora, e a segunda, desagregadora. A pulsão sexual tende a formar unidades cada vez mais ricas e complexas primeiramente no plano biológico, e posteriormente nos planos psicológico e social. Eros é uma força interna inerente ao ser vivo e o engloba como um todo (átomo, célula, psiquismo etc). Tânatos, assim como Eros, também é uma força interna e inerente ao ser, porém, opera no sentido oposto: é desagregadora e visa à descarga das tensões que mantêm o aparato psíquico em desequilíbrio. A pulsão de morte visa ao Princípio de Nirvana, ou seja, a redução das tensões a zero, que significa a passagem do estado orgânico da matéria para o estado inorgânico. Além disso, as manifestações da pulsão sexual são visíveis e bastante ruidosas, ao passo que as de Tânatos ocorrem silenciosamente dentro do psiquismo no sentido de sua destruição. O sutil desenvolver de um câncer pode ser considerado um exemplo deste mecanismo.

Freud menciona que todo psiquismo tende a descarregar suas tensões a um nível mínimo que seja compatível com a vida. Tais tensões são percebidas como desprazer, e por isso devem ser eliminadas. Porém o sujeito encontra-se em constante estado de desequilíbrio, pois está sempre demandando algo, e quando satisfaz este algo, surgem novas necessidades em busca de satisfação. Assim, o aparato psíquico tende à redução da excitação interna de modo a manter a mais baixa possível esta quantidade de excitação presente ou, pelo menos, mantê-la constante. Deste modo, somente a morte tem a capacidade de pôr fim a esta busca. Seguindo este raciocínio podemos afirmar que o indivíduo tende à castração por excelência, que é a realização plena pela extirpação das possibilidades de existência.

 

A Criança Doente, a Hospitalização e a Morte

As vivências de doença e hospitalização são fatores desencadeadores de estresse e sofrimento psíquico e, há vários elementos que interferem nas reações emocionais frente à internação. Os mais comuns são: a idade da criança, a natureza da doença, a duração da internação, o afastamento do lar e da família, as experiências anteriores com o adoecer e as vividas durante a hospitalização.

Podemos afirmar que ocorre uma perda da identidade no ato da internação. O sujeito torna-se um paciente, devendo agir como tal, ou seja, ele "tem que" ingerir somente a comida servida no hospital; "tem que" cooperar com as equipes, deixando-se examinar e tomando a medicação, enfim, ele deve adequar-se às regras institucionais. A própria palavra "paciente" define com clareza a tônica da situação: o sujeito deve ter paciência e cooperar com o tratamento. A esta perda da identidade soma-se a própria situação de doença, que por si própria consiste em uma ameaça de morte, principalmente em se tratando de uma doença terminal. Essa perda da identidade relacionada ao fato de o sujeito ter que se despojar de seus pertences, seus hábitos, seu local de moradia etc, equivale à castração, uma vez que o sujeito vê-se diante da perda de coisas que possuem valor para ele. Portanto, a castração encontra-se presente não apenas em relação à doença em si, mas também quanto à adequação às normas institucionais.

De acordo com as idéias de Lewis & Volkmar (1993), crianças que experienciam sucessivas internações permanecem mais suscetíveis ao desencadeamento de reações psíquicas, que podem apresentar-se das seguintes maneiras:

• Sintomas psicossomáticos: mal-estar, dor, irritabilidade, distúrbios do sono e do apetite;

• Intensificação do comportamento de vínculo (a criança começa a solicitar atenção tempo integral);

• Sentimentos de desamparo e impotência;

• Fantasias assustadoras acerca da doença e dos procedimentos;

• Angústia e mobilização de mecanismos de defesa e

• Desencadeamento ou agravamento de doenças psiquiátricas.

A partir destes sintomas, observamos que a passividade ou a agressividade demonstrada pela criança está relacionada à experiência de castração referente à doença e ao tratamento. Enquanto umas crianças reagem passivamente à castração, apresentando um comportamento obediente ou até mesmo regredido, outras reagem agredindo e rechaçando o tratamento, os profissionais de saúde e até mesmo seus pais, uma vez que estes demonstram-se impotentes e incapazes de defendê-las da castração imposta pela doença e pelo tratamento.

 

A Criança com Doença Terminal e a Família

O Processo de Luto dos Pais

Segundo Bowlby (1985), o processo de luto dos pais inicia-se quando o médico comunica o diagnóstico de doença terminal. Eles vivenciam uma espécie de torpor alternado por explosões de ira direcionada aos profissionais de saúde e, principalmente, ao médico que transmitiu o diagnóstico. Os pais sentem-se confusos e por vezes referem-se à situação como se fosse um sonho ruim do qual irão posteriormente despertar. Até que consigam assimilar a notícia, tendem a comportar-se de modo distante, como se tudo aquilo dissesse respeito a uma outra família.

Após o choque do primeiro momento, surge a fase da descrença na exatidão do diagnóstico e a tentativa de reversão do quadro. Os pais iniciam uma busca de informações médicas, geralmente com a finalidade de ouvir aquilo que gostariam, ou seja, que seu filho não está gravemente doente e não para saber mais sobre a doença, seu curso e prognóstico. Neste momento entra em funcionamento o mecanismo de defesa da negação.

Quando os pais surpreendem-se desejando que a criança morra em breve a fim de minimizar seu sofrimento emocional e financeiro, surge um sentimento de culpa, que gera a mobilização do mecanismo de defesa da formação reativa. A angústia dos pais pode ser dirigida à criança através de cuidados excessivos com o objetivo de compensá-la pelo sofrimento. Nesse caso, os pais tornam-se superprotetores com relação à criança doente, tentando preservá-la de tudo e de todos que possam a vir causar-lhe algum mal. Este comportamento superprotetor também pode estender-se aos irmãos do paciente. Quanto mais compulsiva a necessidade de superproteger a criança, mais se pode depreender o esforço realizado a fim de se descartar e negar idéias relacionadas à morte.

Existem casos em que os pais concentram-se na criança enferma e negligenciam a casa, o trabalho, os outros filhos etc. Muitos passam a acreditar que se tivessem estado mais atentos às primeiras manifestações da doença, a criança certamente escaparia da morte.

Alguns pais, ao perceberem que têm raiva de seu filho pelo fato de ele estar morrendo, sentem-se culpados e podem deslocar esta raiva para outras pessoas, como o cônjuge e os profissionais que tratam da criança, por exemplo.

Quando um dos pais reconhece a gravidade da doença da criança enquanto o outro mantém-se em uma postura de negação, ocorrem muitos conflitos conjugais, que persistem no tocante à questão de quando e como transmitir a notícia da doença à criança.

Após alguns meses de expectativas desfeitas com relação à reversão do quadro, os pais passam a admitir a exatidão do diagnóstico médico e iniciam um processo de luto antecipado, com um gradativo desengajamento emocional. Quando a criança falece, os pais geralmente já se encontram preparados e até mesmo aliviados.

Segundo Easson, (referido por Torres et al.,1990) o luto antecipado da família pode ocorrer antes mesmo do diagnóstico ser transmitido. A comunicação não-verbal entre a criança e seus familiares por vezes acaba antevendo a notícia. O diagnóstico apenas faz com que o luto torne-se mais aberto e evidente.

Com a proximidade da morte, os pais podem sentir remorso e um profundo sentimento de amor pela criança. Neste momento, a negação raramente persiste e, após o falecimento, a culpa e o alívio permanecem entrelaçados. Quanto mais se permite aos pais participarem ativamente dos cuidados para com a criança, menos culpados se sentirão.

A boa ou a má evolução do luto depende muito da maneira como os pais se relacionam. Se estes se mantiverem unidos e possuírem a capacidade de confortar e apoiar um ao outro, o luto provavelmente será bem elaborado. Porém, se o casal estiver em conflito, a família poderá desestruturar-se.

O Luto dos Irmãos

As perturbações ocorridas com irmãos de pacientes terminais resultam mais das modificações dos comportamentos dos pais com relação a eles do que dos efeitos da doença e da morte propriamente ditas. O distanciamento dos pais em função dos cuidados com o irmão doente e as explicações de que "Deus levou o irmão" podem resultar em raiva, medo e recusa do afastamento de casa. A imputação de culpa pela morte do irmão sugerida pelos pais não é incomum, o que pode ser extremamente prejudicial à criança.

Para Torres et al.(1990), os irmãos da criança doente experimentam sentimentos de culpa e responsabilidade, provavelmente resultantes do desejo de morte ou de agressividade direcionado ao irmão doente. Quando o sentimento consciente de culpa relacionado ao desejo de morte ou agressividade associa-se a uma corrente de agressividade inconsciente, podem ocorrer atitudes de ensimesmamento e inibição. A queda do rendimento escolar é uma das prováveis conseqüências deste mecanismo.

O sentimento de culpa também pode vir a gerar autoagressividade, que faz com que as crianças, passem a achar que merecem morrer. Surge então a idéia de equivalência entre doença e morte. Assim, diante de quaisquer sintomas, tais como cefaléia, tosse ou dor de barriga, a criança poderá entrar em pânico por achar que vai morrer. É possível que este temor se estenda a situações em que a criança tenha que ir ao médico, hospital etc.

De acordo com Lewis e Volkmar (1993), crianças de menos de cinco anos vivenciam a morte do irmão como um afastamento dos pais e conseqüente perda do afeto. Para elas a morte pode ser percebida como abandono ou punição. A raiva é outro componente que está presente não só no luto dos pais, mas também no dos irmãos do paciente. Neste caso, ela é decorrente do sentimento de abandono, uma vez que os pais encontram-se engajados nos cuidados com o irmão doente.

Já as crianças entre cinco e dez anos envolvem-se com o irmão enfermo e podem sentir-se impotentes. Algumas vivenciam a chamada culpa de sobrevivência, podendo vir a apresentar sérios sintomas e posteriores distorções da estrutura do caráter.

O luto das crianças está fortemente vinculado ao luto dos pais, de modo que se estes não tiverem condições de elaborá-lo, elas também não o conseguirão, pois além de lidar com a perda do irmão, elas também terão de haver-se com a perda de seus "pais de antigamente".

A instituição hospitalar é vista como um "lugar para a cura"; deste modo a idéia de morte e, principalmente, a morte concreta é tida como um fracasso não só da instituição, mas também dos profissionais que ali atuam (Torres e Gurgel, 1984).

A própria formação acadêmica médica contribui para a exacerbação da negação sob a alegação de que as emoções atrapalham a objetividade e a audácia do profissional. O "médico ideal" é frio, calculista e absolutamente técnico e desta forma torna-se muito mais fácil lidar com a morte enquanto falência de um mecanismo (Boemer, 1986). Assumir uma postura meramente tecnicista é uma das formas de afastar-se da morte no contexto hospitalar. Tal postura caracteriza-se pelo enfoque no "órgão com defeito"; assim, os profissionais executam suas tarefas mecanicamente, como se o órgão não fizesse parte do indivíduo.

Segundo Mello Filho et al. (1992), desde que o indivíduo opta pela Medicina, observa-se um desejo de desvendar os mistérios da vida e da morte, havendo uma expectativa de que pelo fato de ser médico, o sujeito estaria imune à morte. O autor ainda comenta o impacto causado pelas aulas de Anatomia, onde os alunos, ao buscarem o aprendizado da cura, acabam deparando-se com a morte. O ambiente de brincadeira estabelecido durante as dissecações seria uma tentativa de negar a morte e afastar-se dela.

"Essas experiências relacionadas à morte já como estudantes de Medicina, ao mesmo tempo que nos causaram um certo choque, faziam com que nos sentíssemos pertencer a um mundo à parte, como que possuindo um poder conferido pelo conhecimento dos segredos do corpo humano e da morte." (p.61)

É bastante difícil para o médico ter que desviar o foco de sua atenção da cura para a perspectiva da morte. Ele é um profissional que está comprometido com a cura e, a incapacidade de alcançar tal objetivo corresponde a um fracasso de sua parte. Daí surgem sentimentos tais como a raiva e a tristeza, que vêm acompanhados de dúvidas acerca de sua competência e autodepreciação.

Quanto à equipe de enfermagem, as dificuldades não são menores. As escolas de Enfermagem, assim como as de Medicina, também se desenvolveram segundo o referencial organicista, que privilegia os aspectos fisiológicos do indivíduo em detrimento dos psicológicos. A ênfase permanece nos fatores referentes à vida, uma vez que a morte consiste em uma ruptura do vínculo enfermeirapaciente, que é sentida pela primeira como um fracasso, gerando sentimentos de culpa e inaptidão, tal como ocorre com o médico.

A partir do momento em que ouvimos o paciente e partilhamos suas angústias, lembramos que, assim como ele, somos mortais. Portanto, quem não consegue lidar com suas próprias questões de morte, não será capaz de lidar com a morte do outro e buscará afastá-la de si, fragmentando a pessoa em órgãos ou referindo-se a ela através de suas patologias. (Boemer, p.113)

O trabalho com pacientes com doença terminal exige do profissional uma capacidade de lidar com a frustração e com a dor do entrechoque da vida e da morte que ocorre nos níveis corporal e psíquico do paciente.

Quando um paciente morre, existem procedimentos sincronizados realizados principalmente pela equipe de enfermagem, que visam retirar o corpo da enfermaria o mais rápida e discretamente possível. O paciente morto é embalado em um plástico e passa a ser referido como "pacote".

Os membros das equipes do hospital também sentem-se ansiosos diante de uma criança com doença terminal e tendem a lidar com isso através de um distanciamento do paciente, criando um ambiente de conspiração de silêncio.

Segundo Raimbault (1979), o silêncio é a máscara da condição do paciente com doença terminal, seja ele criança ou adulto, diante do desejo do Outro. A incapacidade de ouvir esses pacientes acaba fazendo com que eles se calem em sua própria dor. Cria-se uma aura de negação e falsidade, onde o profissional finge que o paciente vai ficar bom e este finge estar bem, pois se deixar transparecer sua angústia, as pessoas poderão, de fato, afastar-se dele.

O médico passa a sentir seu controle ameaçado não só pela morte, mas também pela entrada de outros profissionais em cena, tais como psicólogos, assistentes sociais, fisioterapeutas, etc. Muitos médicos procuram "preservar" seus pacientes de uma possível iatrogenia que uma entrevista psicológica, por exemplo, poderia causar. O doente acaba permanecendo isolado em sua patologia, não tendo com quem compartilhar seus medos e angústias e agindo como se estivesse tudo sob controle, encenando, portanto, um jogo de aparências.

Na fase terminal da doença, grande parte dos cuidados estão relacionados apenas à higiene e à alimentação. O auxiliar de enfermagem costuma ser o responsável por tais tarefas; logo, é ele que passa a maior parte do tempo junto ao paciente. Conclui-se que o auxiliar de enfermagem é o profissional que tem maior probabilidade de sensibilizar-se com a condição do paciente.

"Enquanto persistirem as propostas educativas no sentido de preparo dos profissionais de saúde para enfrentar a morte, o morrer sempre será considerado um desafio a ser vencido e não um momento da existência humana que, vivido com autenticidade, é a expressão máxima da liberdade do ser." (Boemer, p.113)

 

A Atuação do Psicólogo Junto ao Paciente com Doença Terminal

Cabe ao psicólogo diagnosticar e tratar os transtornos prévios ou decorrentes da situação clínica do paciente, principalmente aqueles relacionados à situação de internação na qual a criança se encontra.

O respaldo psicológico aos pais ou responsáveis também é essencial. É importante que o psicólogo ajude-os a compreender seus sentimentos com relação ao filho doente para que a situação de internação seja vivenciada de um modo menos traumático.

O psicólogo coloca-se à disposição do paciente a fim de ouvir suas questões e trabalhá-las juntamente com ele, para que este possa elaborá-las da melhor maneira possível. Alguns recursos utilizados para isso são o desenho e a ludoterapia, que possibilitam e facilitam a exteriorização dos conteúdos psíquicos infantis, que dificilmente poderiam ser acessados através da linguagem verbal.

Os conteúdos a serem trabalhados com o paciente não são definidos de antemão, mas ao longo da relação terapêutica. É importante considerar as questões difíceis para o indivíduo e dar espaço para que ele possa abordá-las e explorá-las livremente. As interpretações de determinados conteúdos inconscientes que possam vir à tona devem ser feitas com muito cuidado, levando-se em conta o grau de fragilidade egóica da criança neste momento. O rompimento de defesas do paciente com doença terminal pode aumentar sua angústia.

É importante enfatizarmos que o trabalho psicoterápico realizado com pacientes com doença terminal, sejam eles crianças ou adultos, não visa substituir tratamentos médicos e muito menos curar processos somáticos.

Alguns profissionais de saúde crêem que a psicoterapia tem como meta tornar o paciente mais dócil e receptivo às exigências do tratamento médico. Deste modo, é importante esclarecermos às demais equipes sobre o trabalho que realizamos. Também é necessário que se leve em consideração a demanda de atendimento dos usuários e da equipe de saúde no contexto da instituição.

 

Conclusão:

Para a família, ter um filho com doença terminal muitas vezes é sinônimo de incompetência e fracasso no desempenho das funções materna e paterna. A morte representa tanto para criança doente quanto para os familiares, uma perda, uma separação, um afastamento definitivo. Deste afastamento definitivo decorre o luto, que consiste em um processo sadio e gradual de elaboração da perda.

O doente terminal é alguém que incomoda, uma vez que suscita em cada um de nós a consciência de nossa própria finitude; daí advêm as dificuldades de se lidar com eles. É difícil aceitarmos a idéia de que uma criança, que sequer começou a viver, experiencie o sofrimento inerente à doença terminal.

Muitas pessoas, ao escolherem trabalhar na área de saúde, buscam de maneira consciente ou inconsciente, um modo de se sentirem mais potentes frente a situações que suscitam fragilidade, tais como a doença e a morte. A relação com a morte do outro, principalmente quando este outro trata-se de uma criança, desperta diversos sentimentos tais como: impotência, cólera, desesperança, fracasso etc.

Os profissionais de saúde só conseguirão lidar melhor com o paciente com doença terminal quando compreenderem a morte enquanto parte da condição de se estar vivo, sem tentar sobrepujá-la nem encará-la como um desafio. Os sentimentos de frustração e de incompetência experimentados pelos profissionais de saúde também podem ser vistos como uma castração, pois denotam uma limitação e uma impossibilidade diante de algo que é maior e mais forte do que todo o saber médico e toda a tecnologia disponível: a morte.

Cabe a nós, profissionais de saúde mental, abrirmos nossa escuta a fim de auxiliarmos os familiares e, principalmente, o paciente a trabalhar suas questões acerca da morte. Lidar com a iminência da morte é lidar com a "castração por excelência" a todo instante.

Devemos proporcionar, na medida do possível, uma melhor qualidade de vida ao pequeno paciente. Apenas fazer com que seu coração continue pulsando não é suficiente. É preciso que haja desejo de estar-com a criança na vivência de sua doença terminal, mesmo que este estar-com seja através da linguagem do silêncio. Oferecer uma escuta psicanalítica significa abrir espaço para "o não dito" e para o "mal dito", isto é, dar ao paciente a oportunidade de falar sobre coisas que são omitidas ou distorcidas no contexto do "lugar para a cura", que é a instituição hospitalar. O psicanalista, por meio de sua escuta, possibilita ao sujeito articular seu desejo através da fala e da brincadeira, via ludoterapia, e por conseguinte simbolizar aspectos que a ciência, com seu pragmatismo, jamais irá alcançar.

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência
Mônica de Oliveira Gonçalves
Rua Visconde de Abaeté nº 149, c/02 - Vila Isabel
20551-080 Rio de Janeiro - RJ
E-mail: monicaol@unisys.com.br

Recebido 25/11/99
Aprovado 22/09/00

 

 

* Psicóloga clínica, orientadora de pesquisa da ABRAPA - Associação Brasileira de Problemas da Aprendizagem - e especializanda em terapia de família e casal pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ