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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.21 n.1 Brasília mar. 2001

 

ARTIGOS

 

Psicologia comunitária X assistencialismo: possibilidades e limites

 

 

Tatiana Ramminger*

Secretaria da Saúde do Estado do RS

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No presente artigo procuro questionar os objetivos e resultados do "assistencialismo" e o quanto isto acaba atravessando e, até mesmo, determinando comportamentos da equipe de trabalho e dos usuários das Instituições. Ressalto, ainda, a importância da psicologia nestas práticas como um lugar privilegiado de escuta - lugar que infelizmente continua vago, esperando.

Palavras-chave: Psicologia social, Psicologia comunitária, Assistência social.


ABSTRACT

In the present article I try to question the objectives and results of the "assistencialismo" and how this determining behaviors of the work team and of the users of the Institutions. I stand out, still, the importance of the psychology in these practices as a privileged place of he/she listens - place that unhappily continues vague, waiting.

Keywords: Social psychology, Community psychology, Social attendance.


 

 

Já que as palavras não podem dar conta da experiência, como bem já nos alertava Clarice Lispector, minha escrita aparece como tentativa de criar ponte, passagem, para acontecimentos.

O acontecimento é exatamente aquilo de inesperado e imprevisível que (ir)rompe em nossas vidas, desmanchando nossa conhecida trama de representações. Uma crise, uma ruptura de existência, que chama a integração do acontecimento. Integrar o acontecimento é "traduzi-lo", fazê-lo transitar de um início caótico, onde apresenta-se como signo vazio, sem significado, até a construção de um sentido possível.

A partir de uma experiência de estágio em Psicologia Comunitária1 , espero esboçar um território que possa acolher este incômodo, este desconforto que me acompanhou por todo estágio. Incômodo por ver de perto tanta miséria, e a maneira que insistimos em lidar com ela.

 

Miséria, Miséria em Qualquer Canto

Temos que salvá-los. Salvá-los da bebida, da preguiça, da desorganização, da ignorância, do subdesenvolvimento, da desnutrição, das pestes, da falta de higiene, da desinformação, da rua, das drogas, da morte... Até perdoar, nós perdoamos ("Perdoai-vos Senhor, pois eles não sabem o que fazem".)

Nos regozijamos com nossa bondade e solidariedade. Até os tratamos de igual para igual, não é mesmo? Somos como gênios da lâmpada: "Faça seu pedido e ele será satisfeito!!!" E eles pedem. Pedem comida, roupas, passagens de ônibus, consultas em hospital, remédios, dinheiro...

Enfim, todos que já puderam trabalhar em uma entidade de assistência social devem saber do que estou falando e já ter muito se esforçado, como eu, para não deixar ninguém "desamparado". Fazemos de tudo para aliviar sua miséria (e a nossa), para tapar todos os buracos, obturar todas as faltas.

E mais: deduzimos que sua falta é a nossa falta: um bom banho, um médico, uma escola, um emprego. Não é por acaso que são escassos os programas assistencialistas que partem da própria comunidade.

A imensa frustração e sensação de impotência que acometem os técnicos que trabalham com este tipo de população estão diretamente ligadas com esta inversão da demanda. Ao fazer de nosso desejo, o desejo deles, fica difícil entender porque eles não participam como "deveriam" - por que não aproveitam as oportunidades que lhes oferecemos?

Ao querer levar nossos ideais de classe média (como diriam os liberais), pequeno-burguesa (como diriam os marxistas) até outros, fazemos da demanda, além de invertida, infinita - pois ninguém conseguirá sustentar este lugar de provedor incondicional... Enquanto se pensar em assistência social como repasse de recursos, sempre estaremos lidando com recursos finitos para uma demanda infinita.

Quando encerram-se os recursos, àqueles que nos procuram, nada temos a dar - a não ser um sorriso amarelo, e uma esperança: "volta daqui um tempo, vou colocar teu nome na lista de espera..." Lista de espera...

Impossível não lembrar de Chico Buarque, que há mais de 30 anos, intuiu em sua poesia esta marca que perpassa o cotidiano de quem convive com a pobreza:

Pedro Pedreiro (Chico Buarque/1965)

Pedro pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã, parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem
De quem não tem vintém
Pedro pedreiro está esperando a morte
Ou esperando o dia de voltar pro norte
Pedro não sabe mas talvez no fundo
Espera alguma coisa mais linda que o mundo
Maior do que o mar
Mas pra que sonhar
Se dá o desespero de esperar demais
Pedro pedreiro quer voltar atrás
Quer ser pedreiro, pobre e nada mais
Sem ficar esperando, esperando, esperando
Esperando o sol
Esperando o trem
Esperando aumento para o mês que vem
Esperando um filho pra esperar também
Esperando a festa
Esperando a sorte
Esperando a morte
Esperando o norte
Esperando o dia de esperar ninguém
Esperando enfim nada mais além
Da esperança aflita, bendita, infinita
Do apito do trem
Pedro pedreiro penseiro esperando
Pedro pedreiro penseiro esperando o trem
Que já vem, que já vem, que já vem...

O assistencialismo é sempre uma política de exclusão que retro-alimenta a miséria. Ao adotarmos este modelo como política de assistência social, nada mais fazemos do que encarnar este trem que já vem, que já vem, que já vem...

 

Leis para Inglês Ver

O assistencialismo, embora seja prática recorrente e dominante no Brasil, só não está marcado nas leis brasileiras, extremamente avançadas em relação aos direitos sociais. Talvez este abismo entre a lei e a prática não diga apenas da inviabilidade da lei, mas também de um jeito bem brasileiro de lidar com ela...

Figueiredo (1995) chama atenção para a expressão "para inglês ver" que nasceu como referência às leis que o Brasil comprometeu-se a cumprir diante das pressões inglesas contra o tráfico de escravos, mas que nunca foram levadas à sério:

"Enfim, havia uma estratégia de dar uma "satisfação" servil (mas enganosa) ao estrangeiro opressor (que, por sua vez, durante muito tempo fingia-se deixar enganar) com a finalidade de resguardar (com brios orgulhosamente nacionalistas) uma certa liberdade. No caso, a liberdade reivindicada e tão ardilosamente defendida era a de continuar mantendo uma feroz opressão sobre outros estrangeiros, os escravos. Enfim, de uma só vez, servilismo e resistência, orgulho e marotagem, brio e canalhice" (Figueiredo, 1995, p.357).

Aqui podemos perceber o início de um processo que acabou por nos constituir - uma dissociação entre discursos e práticas, promessas e realizações. Leis "para inglês ver" (ou "para americano ver", em uma versão mais atualizada), onde o objetivo passa a ser prestar contas à sociedade, que finge acreditar que medidas estão sendo tomadas, optando por não se envolver... Ninguém sente-se responsável em algum momento, legitimando uma outra típica expressão brasileira: "O último a sair, apague a luz". A preocupação maior sempre é fazer leis (projeto), e não viabilizar seu cumprimento - muito menos partir da prática para sua elaboração (processo).

Assim, já era de se esperar que até isso - a participação da sociedade civil na legitimação dos direitos sociais - está prevista em lei. A LOAS - Lei Orgânica de Assistência Social - promulgada em 1993, prevê a criação dos Conselhos Municipais. Estes seriam formados, principalmente, por membros do governo e da sociedade civil. Seriam eles que decidiriam as prioridades dos municípios e as estratégias adotadas para combater a pobreza. E mais: os próprios Conselhos fiscalizariam a execução desses projetos por entidades ou organizações que eles mesmos escolheriam.

No entanto, na maioria das cidades brasileiras, os conselhos municipais não funcionam, ou nem chegaram a ser implantados. Itamar Franco assinou esta lei no final do seu mandato (só pra inglês ver...), e Fernando Henrique ao invés de priorizar seu efetivo cumprimento, preferiu criar um novo programa: o Comunidade Solidária.

Ao contrário da LOAS, o Comunidade Solidária é meramente deliberativo. Ele indica onde se deve atuar, estabelece as prioridades municipais sem consultar a população local, e nada fiscaliza. Ao invés de universalizar os direitos sociais, ele os particulariza, criando um amplo espaço de atuação para as empresas privadas que investem diretamente naquelas prioridades em que têm interesse. E mais: é permitido a essas instituições particulares o abatimento do imposto de renda. Trata-se, portanto, de uma questão de política fiscal.

 

E Daí?

Em meio a tantas reflexões, fico me perguntando que lugar a psicologia vem ocupando nestas práticas... Onde entra nosso conhecimento nesta rede inter-intra-transdisciplinar?

Infelizmente, o que vemos é uma total confusão em relação ao papel/função do psicólogo. Confusão, muitas vezes, alimentada pelo próprio psicólogo, que acaba legitimando este não-lugar, sem conseguir diferenciar sua prática, da assistência social. Embora pareça "clichê", a intervenção do psicólogo que trabalha junto à comunidade também passa pela "escuta". Escutar os silêncios, os entraves, as possibilidades, as entradas e saídas...

Escutar a demanda, por exemplo. E não só a ela, mas também à oferta. Partindo-se do princípio de que a demanda nunca é espontânea, mas sempre produzida2 , torna-se necessário compreender como foi a oferta destes serviços, que acabou por gerar tal demanda.

O centro da questão passa a ser como a pessoa veio até nós. O que ouviu falar? Como? De quem? É bem diferente chegar ao Centro de Comunidade porque lhe disseram que ali dão um rancho alimentar, ou chegar porque há um programa de reorganização familiar, por exemplo. E o que o faz procurar pela "tia das fichas"3 , ou ainda esperar que lhe arranjem um emprego?

Nada adianta querer sair do simples repasse de recursos, se a comunidade continua entendendo que esta é a nossa função. Sinal que algo na oferta destes serviços, não está bem clara... E será que esta oferta está clara para a equipe técnica?

É interessante observar que da mesma forma que o usuário não participa da elaboração das políticas de assistência social, os técnicos que trabalham diretamente com os programas, também não têm acesso ao seu planejamento - reproduzindo e retro-alimentando esta lógica, onde ninguém sabe muito bem o que pedir, nem o que dar, muito menos o que conquistar e reivindicar...

Indo um pouco mais além, poderíamos colocar em questão o desejo: tudo aquilo que nos falta, nos excede, nos paralisa, nos movimenta ou mobiliza - a nós e a eles. Mas como falar de desejo em uma prática que oscila entre dois pólos: da caridade tal qual concebida pela Igreja, onde o desejo é alusivo ao pecado; ou do ideário marxista, onde o desejo passa a ser um preceito pequeno-burguês?

Além disso, ao desconsiderar seu desejo, infantilizamos a população atendida. Desqualificamos e impomos nossos valores, transformando-os de usuários em assistidos. Nos esquecemos que com isso, despotencializamos esta mesma população que dizemos querer libertar. Impedimos que tomem seu próprio rumo. Talvez por não aceitar a diferença de suas escolhas, talvez para que continuem sob nossos olhares penalizados, sob nosso controle.

O escravo habitanos na medida em que deixamos nos escravizar pelo Outro. Outro-imaginário que acreditamos deter nossa própria potência castrada... Desta forma, o homem é despotencializado, separado de sua vontade de potência, de sua capacidade de construir a vida, ao invés de estar subjugado a uma vontade-outra que a determina4.

Esta vontade-outra que escraviza, sutil e permanentemente, não está encarnada somente nos grandes "vilões" de nossa época, quais sejam, a dobradinha "Capitalismo & Mídia" - instâncias abstratas e intocáveis - macropolítica... Quantas vezes não somos nós que encarnamos o papel deste Outro-imaginário? Quantas vezes não fazemos o usuário acreditar que somos nós que sabemos sobre ele5?

Nós sabemos o que é melhor, temos o mapa da mina, e o entregamos em troca da fidelidade aos nossos princípios e valores. Não temos paciência para escutar, para compreender que a fome (você tem fome de quê? você tem sede de quê?6) nem sempre é saciada com um prato de feijão com arroz. Somos surdos ao interditado quando estamos longe de nossos consultórios, aliás, nem acreditamos nele... Será que pobre tem inconsciente?

 

Referências bibliográficas

Baremblitt, G. F. (1996). Compêndio de Análise Institucional e outras correntes: teoria e prática. Rio de Janeiro: 3ª ed. Rosa dos Tempos.        [ Links ]

Figueiredo, L. C. Escutar, Recordar, Dizer: encontros heideggerianos com a clínica psicanalítica. São Paulo: Educ/Escuta, 1994.        [ Links ]

Figueiredo, L. C. (1995) "Para Inglês Ver" in Cadernos de Subjetividade. Núcleo de Estudos e Pesquisa da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP - v.3, n.2, São Paulo, set/fev.        [ Links ]

Guattari, F. ROLNIK, S. (1986). Micropolítica: cartografias do desejo. 2ª ed. Petrópolis: Vozes        [ Links ]

Lancetti, A. (1994)."Notas para Desinstitucionalização da Assistência Social" in Saúde e Loucura 4. São Paulo: Hucitec.        [ Links ]

Neto, A.N. O Inconsciente como Potência Subversiva. São Paulo: Escuta, 1991.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Tatiana Ramminger
Rua Lima e Silva, 250/104 - Cidade Baixa
Porto Alegre - RS
Tel.: +55-51 227-2103 / Cel.: +55-51 9165-4533
E-mail: tathy@portoweb.com.br

Recebido 06/09/99
Aprovado 22/09/00

 

 

* Psicóloga da equipe da Coordenação da Política de Atenção Integral à Saúde Mental da Secretaria da Saúde do Estado do RS.
1 Este ensaio foi escrito por ocasião do encerramento de meu estágio em psicologia comunitária - último por mim realizado antes da conclusão do curso de Psicologia, em agosto de 1998. Tal estágio foi desenvolvido no decorrer do primeiro semestre de 1998, no CEVI (Centro de Comunidade Vila Ingá) - um dos Centros de Comunidade da FESC (Fundação de Educação Social e Comunitária) - autarquia responsável pelas políticas de assistência social do município de Porto Alegre, atualmente denominada FASC - Fundação de Assistência Social e Cidadania
2 "A demanda não existe perse. Foi produzida por uma oferta prévia de análise e está marcada, modulada, determinada, desde o princípio por essa oferta" (Baremblitt, 1996, p.68).
3 Assim passam a ser denominadas as assistentes sociais por repassarem ao usuário as fichas de vale-transporte.
4 Idéias desenvolvidas por Alfredo Naffah Neto, a partir de uma fecunda leitura de Nietzsche.
5 Podemos pensar aqui na discussão realizada por Foucault e Lacan, envolvendo saber e poder.
6 Titãs, Comida.