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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.21 n.2 Brasília jun. 2001

 

ARTIGOS

 

Promessa ao infinito

 

 

Maria Emília Sousa Almeida*

Departamento de Psicologia da Universidade de Taubaté

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, um caso clínico constituiu a alavanca vivencial para uma série de indagações e para as conjecturas que foram sendo levantadas a partir daquelas. Dirige-se à investigação do processo mental pelo qual potencialidades, dons e talentos do sujeito são escamoteados ou eclipsados a partir da relação com as figuras originárias de seu afeto. Um outro dado a ser considerado é que a paciente constitui um dos sujeitos, cujas vivências mentais fundamentam outro trabalho da autora. Este tem por título “Entrecruzamento Imaginário na Construção do Objeto Idealizado e Eclipsamento do Eu”. Certamente, as ilações apresentadas referem-se à paciente em questão, mas quiçá podem servir de subsídios para se pensar esta questão em outros seres humanos. Cabe lembrar que a teoria psicanalítica aborda o tema sob outra perspectiva ao apontar as inibições do ego em meio ao desenvolvimento psicossexual da criança. Assinala-se o grande valor teórico das contribuições freudianas e kleinianas quanto às inibições do ego, entre inúmeras outras. No entanto, este trabalho envereda por outros caminhos que, talvez, sejam de alguma valia para se pensar outras facetas da questão.

Palavras-chave: Potencialidades e dons bloqueados, Promessa de ser, Dificuldades na atualização do desejo.


ABSTRACT

Having taken a clinical case as a source of questions, in this article it is investigated the mental processes by which potencialities and gifts from the subject are blocked, since his original figures don’t invest him with constructive affects and he needs that to develop those gifts. This study deals with the idea of an almost eternal delay in the assumption of ego resources to accomplish subject desire. It offers a kind of a new perspective about ego inhibitions, theme very well developped by freudian and kleinian authors.

Keywords: Blocked potentialities and gifts, Promise to be, Delay in wish satisfaction.


 

 

O presente trabalho propõe-se a examinar uma conformação desviante do ser, em meio aos meandros da constituição do sujeito psíquico. Para se deslindar a tessitura semântica de um quase eterno adiamento do desfrute dos próprios talentos e dons, parte-se de recorte de dois relatos míticos: um judaico-cristão e outro grego. Alguns de seus aspectos psicológicos encontram-se no âmago da discussão exposta a seguir.

De acordo com o primeiro, o homem se moveu durante quarenta anos pelo deserto para adentrar a Terra Prometida. Consoante o segundo, dado o dom da profecia a Cassandra, o crédito público quanto a este lhe é extorquido. Percebe-se, nos interstícios destes, que se faz longa a peregrinação humana, quando compassada ao som de promessas e profecias. Configuram-se, assim, tanto o absurdo da longa espera e do imenso esforço para que se efetive a satisfação do desejo no primeiro relato, bem como o absurdo da demanda de investimento libidinal, por parte de outrem, para que dons inerentes ao sujeito se consubstanciem em realização de seu desejo, no segundo caso.

Situando-se o tema da promessa, mais especificamente, no campo psicanalítico, esta evoca a satisfação do desejo. De início, cabe lembrar a proposição de Freud (1911) de que se dá um refinamento anímico quando o aparelho psíquico adia a realização de impulsos, para poder atendê-los, a posteriori, de modo mais organizado e em um momento mais adequado, sob a regência do Princípio da Realidade. Ultrapassa-se, assim, a busca de pronta satisfação dos impulsos. Sob a égide do Princípio do Prazer, o aparelho psíquico visava eliminar a tensão e obter prazer, numa descarga incontinente.

Freud (1915) postula, ainda, que o ego introjeta partes prazerosas do mundo externo, assimilando-as como suas e que projeta partes egóicas desprazerosas para o mundo externo, percebendo-as como hostis. Acrescenta que a fronteira entre ego e objeto pode perder seu contorno, sendo que o outro, por vezes, passa a ser representante do ‘mau’ mundo externo. Compreende-se que, desde os primórdios da formação do ego, faz-se necessária a mediação do outro para a satisfação das necessidades do sujeito.

Uma outra contribuição teórica necessária para este estudo advém da Teoria dos Campos. Para Herrmann(1991), das necessidades biológicas que fazem parte do cerco fisiológico do ser, passa-se à dimensão do desejo. Este se refere à representações de identidade, ao passo que a realidade remete à representação do Real. Há, igualmente, que considerar seu conceito de ruptura de campo que se refere à ruptura dos pressupostos ou das regras regentes de um campo ou complexo psíquico, promovida pelo processo analítico. A partir desta, o trânsito entre as representações volta a ser mais fluido.

Postula-se, neste, que a satisfação do desejo sofre uma espécie de estiramento em função da relação do sujeito com o outro, parte da representação da realidade. A partir daí, imprime-se a esta realização do desejo um selo tanto narcísico quanto relacional. Conjectura-se, então, que, quando da passagem do Princípio do Prazer para o Princípio da Realidade, pode se demarcar uma brecha narcísico-relacional, articulada à satisfação do desejo.

Esta fissura narcísico-relacional enquanto constructo, de que ora se lança mão como hipótese de trabalho, pode ser garimpada a partir do processo analítico. Neste, o paciente pode vivenciar uma protelação quase eterna de satisfação do desejo, posicionando-se como mera promessa de ser. Algumas potencialidades, inerentes ao sujeito, necessárias para o exercício de seu desejo são mantidas em pendência. Fica em estado de suspensão a apropriação de aspectos ‘bons’ do ego do sujeito, vertidos para o outro. Esta categoria modal notável em análise implica um super-investimento afetivo-representacional do outro, um alter-ego do sujeito. Entrelaçam-se, portanto, o ser como promessa e o outro, dado que inúmeras filigranas identitárias do sujeito estão sequestradas e depositadas nesta alteridade intangível, figura extremada que constitui o polo idealizado desta fenda narcísico-relacional.

O ser da promessa está inserido numa operação simbólico-emocional a que se denomina subtração ontológica, na qual se dá uma transformação do +(soma das potencialidades) em _ (subtração destas). Envolve uma depauperação egóica decorrente da enorme quantidade de libido investida no outro. Este menos remete a uma cicatriz representacional de um vazamento ligado a alteridade. Na esteira deste vazamento, a angulação do olhar que dirige a si mesmo sofre um desvio refracional, sendo que no trabalho de análise, o resgate das auto-representações referentes a seu valor encontra uma superfície refratária. Apontado o investimento na alteridade, este é novamente direcionado para o outro que já recebera um quantum valorativo exacerbado. Disfarça a exorbitância do seu desejo sob a forma de uma constrição de sua intensidade, dirigindo-o a uma superlativação do outro que concentra valor de perfeição ao ser depositário dos ideais de ego do sujeito. Para além desse “de menos”, faz-se necessário empreender um apossamento ontológico em que o “demais” retorne ao sujeito.

Visto que a Psicanálise parte da clínica para tecer considerações sobre a mente humana, dispõe-se ,a seguir, de alguns dados relativos a uma história clínica tomada como base para as colocações encontradas neste trabalho. O resguardo humano e ético da paciente implicou alterar dados fundamentais para preservá-la, sem que as referências quanto à sua dinâmica emocional, imprescindíveis para este trabalho, fossem distorcidas. Outros fatores que asseguram sua privacidade incluem o fato de ela morar atualmente em outro país e não se encontrar em análise. Relata-se este historial de modo a fundamentar clinicamente as considerações encontradas neste.

Refere-se a uma senhora, casada e tendo três filhos. Destes, o primeiro e a terceira são adotivos, sendo que um dos focos da problemática da paciente residia na relação com esta última. No panteão familiar matricial da paciente ,a irmã mais velha desta ocupava o lugar de artista bem sucedida, moderna e envolta em glamour, inclusive porque faz exposições no exterior, a paciente ocupava o de filha “ boazinha”, feia ,gorda e pouco aplicada aos estudos embora acordasse às 5:30 da manhã para estudar, enquanto sua mãe ainda dormia e a terceira o lugar de bonita, feminina e elegante.

Do maior destaque narcísico-representacional dado a estas pela mãe, em especial à primeira , derivam as inibições mas também as possibilidades da paciente. Esta tem pendores artísticos que incluem pintura de quadros cuja temática é diferente daquela da irmã mais velha bem como confecção de tapeçarias e cerâmicas, áreas não dominadas pela referida irmã.

Concentrando diferentes lugares identificatórios da família originária da paciente, encontra-se a filha adotiva desta. Tais locus incluem o da própria paciente que se sentia filha adotiva, o da irmã promissora destinada a ser grande na vida, o da irmã bonita e o do pai que era mal-tratado pela mãe. Destarte, a filha adotiva era a excelsa depositária da generosidadade maternal, vertida como uma incomensurável cornucópia de amor e doação. Numa contra-posição reparatória à sua própria mãe se apresentava tal generosidade da paciente que, esbanjada na relação com o outro, não obstante, vem se configurando como roubo perpetrado contra si mesma.

Espoliada por sua mãe/ irmã, viabiliza as reiteradas trocas de parceiras do marido, esburacando-se ainda mais ao avalizar tais roubos perpetuados contra si mesma. Incitada por ele a buscar outros homens, não gostou de tê-lo feito, tendo com isto roubado-se em seus desejos românticos. Em meio a esta trama, Z. ocupa um lugar de (im)possível par romântico escolhido por ela, não querendo, no entanto, que a relação resvale para sexo tão somente. Na esteira dos roubos que lhe atravessam a vida, rouba-se, ainda, quando se representa como a menos artista, a menos bonita e a menos capaz de gerar dinheiro dentre as irmãs, conquanto seus quadros pudessem render-lhe bons proventos. Roubava, outrossim , de si mesma o lugar de dona da casa quando deixava suas filhas usurparem seu espaço.

Ao longo da análise delinearam-se uma série de fantasias relativas à princesa adormecida que a paciente traz dentro de si, apontando para o desejo de que houvesse um príncipe que arcasse com o “...e foram felizes para sempre”, lugar fantástico inocupável pelo marido. No entanto, tais fantasias parecem abrir para novas representações que anteriormente eram locus simbólico da irmã mais nova: beleza, elegância e feminilidade. Mostra-se interessante lembrar que a representação da princesa não pôde ser aprofundada numa dada sessão porque uma barreira mental lhe fora contraposta. No entanto, outras representações como a de lagarta preta, feia e sufocada ou a de lagarta verde e um pouco maior haviam antecedido a de princesa. A posterior representação de lagarta verde suscitara, na terapeuta, uma associação com o bicho da seda que no casulo produz seda: as tapeçarias, pinturas e cerâmicas feitas pela paciente. Aquelas vêm sendo completadas e emolduradas mas ainda não podem ser expostas para o mundo, sítio da irmã mais velha superlativada ao máximo.

Dentre as representações identitárias especialmente mantidas em estado de sítio, pode-se apontar para aquelas que se referem a de ser absolutamente incapaz de se constituir como a renomada, glamourizada e moderna artista em que se transformou a primeira irmã e a de lhe ser bastante difícil se estabelecer enquanto alguém elegante e feminina como a terceira .A auto-representação que se revela mais inacessível e mais defendida envia aos aspectos sobrevalorizados pela mãe no que se refere a irmã artista.

Tal representação-amuleto traz em seu bojo, ainda de forma pouco intensa e bastante camuflada, afetos como inveja e ódio e desejos de vingança e destruição mas também de sucesso. Fora encoberta pelas representações de que era a melhor mãe e a de que tinha o melhor marido e o casamento mais sólido e longo, dentre as três irmãs. Parece bastante plausível suspeitar que o trabalho analítico com tal representação vá trazer muitas vivências de horror e caos. No entanto, disto parece depender a reapropriação dos dons e talentos da paciente.

Observa-se ainda uma desproporcionalidade entre a gradação menor de investimento em facetas da própria identidade e o maior incremento libidinal em aspectos da alteridade que se enraíza em sentimentos de vergonha, culpa e horror. A vergonha encampa a possibilidade de desejar as atribuições psíquicas legadas a alteridade e de aparecer como um ser existente. Invagina-se o desejo numa negação do sujeito e de sua ligação com o outro, num apagamento das coisas do mundo .A culpa embasa-se nos ataques de ódio ao outro/irmã artista, ainda que encoberto pela superlativação deste. Já o horror a si mesma resvala na crença de ser uma exceção monstruosa e disforme, pária familiar. A intrincada condição mental da referida paciente baseia-se, igualmente, na representação de ser o aleijão: adotiva, quase abortada e incapacitada para ocupar um lugar de destaque positivo, sugerindo certo horror a si mesma. A vergonha e a culpa, suscitadas quando sê-lhe apontam seus dons e capacidades, apresentam-se como os outros afetos bloqueadores da realização de seu desejo e protegem-na de outros afetos causadores de um caos mental maior.

No início deste trabalho recorreu-se a um constructo teórico na tentativa de entender o processo pelo qual potencialidades e dons são colocados à parte dos recursos mentais da paciente, impedindo o desfrute destes. Cabe, agora, deixá-lo “falar” através de outros dados clínicos e fazer outras aproximações teóricas às decorrências vivenciais ligadas a ele.

Conformando uma fissura narcísico-relacional, o derramamento de amor no outro idealizado/filha adotiva marca um vazamento que se desvela em roubo instituído contra si mesma. Já a referência de amor a si mesma se faz representar por um vazio, um abismo que redunda em queda abrupta levando à morte ou é representada por paredes que ao se transpor uma delas, outra se lhe apresenta. Excrescência desta fenda que se abre em seu ser, a paciente parece engendrar dentro de si uma entidade imaginária, uma espécie de intermediário entre si mesma e o outro. Adere a esta figura contra-reativamente, permutando com ela auto-representações como, por exemplo, a de ser “mᔠquando entra em contato com seu desejo e com seu ódio por aquela de ser “boazinha”. Com relação a este ponto, esta entidade permite-lhe, de forma compulsiva e reparatória, doar amor em situações nas quais lhe caberia sentir ódio ou outro tipo de afeto. Credita a este ser imaginário as mudanças representacionais já efetuadas ao longo do trabalho analítico, que armazenam-se numa espécie de memória virtual, com o que perde a noção de autoria da própria história. Toda esta conjuntura mental configura no sujeito um roubo representacional-afetivo.

Em meio a esta brecha narcísico-relacional, a possibilidade de mudança das auto-representações fica em estado virtual, que tende ao infinito. Verifica-se uma distensão/estiramento do vir-a-ser das auto- representações do sujeito, que se revela impeditiva para a realização de seu desejo. Neste contínuo adiamento de um possível “já”, marca-se uma negatividade absoluta de “não ser” e de “não ter sido”. A promessa adiada de ser a si mesmo ronda os limites de representações de prazer mescladas a representações de desprazer, como se o prazer sempre pudesse exceder limites de garantia e estabilidade egóicas. Assim, também o prazer torna-se ameaçador, sendo que tal transformação do prazer em desprazer pode manter o sujeito em expectativa suspensa de satisfação, caracterizando o campo da promessa. Destarte, outra decorrência desta brecha refere-se a uma elasticidade masoquista, sob a qual o sujeito suporta sempre um tanto a mais de sofrimento.

Outro ponto de grande relevância para esta questão refere-se às representações-amuleto, enunciado adiante. Articuladas às demais representações da trama psíquica, aparecem em relevo uma ou mais representações fulcrais que se apresentam enquanto pontos de sustentação identitária e que são interligadas a representações de realidade. Pode-se entendê-las como representações identitárias centrais que concentram o investimento libidinal de algumas outras a elas intimamente ligadas e que constituem o principal complexo do paciente, sendo especialmente defendidas. Demandando intervenção interpretativa até o final da análise, esta(s) representação(ões) identitária(s) absolutizada(s) apresentam uma tal concentração energético-afetiva que, ao serem tensionadas, são vivenciadas como enlouquecedoras.

Englobando o vínculo afetivo com o outro e mantendo o sujeito na posição de promessa de ser, esta(s) representação(ões)-amuleto liga(m)-se a uma espécie de aspiradouro emocional que engolfa outras representações que se mostrem conflitantes com ela(s) e que adquirem a significação de perda da identidade. São estas representações-amuleto que lançam o desfrute do desejo, por parte do paciente, para o tempo do infinito. No entanto, caracterizam o maior disfarce identitário do sujeito, pois aspectos essenciais à sua identidade estão estrangulados sob esta camuflagem, cujas filigranas destrutivas demandam ser reelaboradas. Tal representação é o índice maior do conflito intra e interpessoal do paciente pois posiciona-o frente a possibilidades tomadas como absolutamente fabulosas, mas também absolutamente inacessíveis. Deste modo, mesmo quando uma análise promove mudanças que atingem inúmeras filigranas destas representações, seu fulcro permanece patológico, engolfando o sujeito numa quase eterna promessa de ser a si mesmo. O enfrentamento deste fulcro implica a elaboração de fantasias catastróficas de perda de partes do corpo e, mais, da própria vida.

Fruto da confluência de significados referendados inconscientemente por ambos os genitores ou tão somente pela figura materna, tais representações patológicas configuram uma totemização protetora do patrimônio representacional intra-familiar. Deste modo, qualquer tentativa de escapar a este sugadouro representacional significa confrontar-se com o carimbo representativo-afetivo da doença familiar. O sujeito é mantenedor da morte e da doença inscrita familialmente, visto que nele se dá uma petrificação do ódio quanto às figuras parentais.

Da desmontagem da anatematização dirigida a estas, pode-se dar o descolamento do ódio nelas investido, cujo montante energético gera pavor e paralisia no paciente. Faz-se, então, necessária uma complexa transformação de votos de ódio às figuras parentais em votos de amor, perdão e gratidão que sinalizam seu desprendimento da trama familiar. Esta transformação, finalmente, desdobra-se numa espécie de homenagem a aspectos destas, então desvinculada da vivência de vassalagem com relação a elas. Este ódio pode, finalmente, ser dirigido às condições que, verdadeiramente, demandam mudanças.

O ser da promessa marca-se como simulacro de sucesso, pois seus talentos, dons e capacidades estão embargados. Entrega-se a um pacto de devoção à crença de não ser capaz, utilizada para se por em oposição a aspectos de um modelo idenficatório parental. Há que se lembrar que quanto maior é a voltagem dos ataques destrutivos às figuras parentais, tanto maior é a imantação legada ao outro idealizado, repositório de sucesso. Estes modelos parentais, igualmente, revelam-se como promessas não realizadas/não realizadoras de seu próprio desejo.

Imersa nestas relações, a criança depende de um mediador que avalize seu desejo, para ela poder realizá-lo. Este mediador usufrui da posição de senhor do poder/prazer quanto ao desejo da criança. Paradoxalmente não-realizadas quanto a seus desejos, as referidas figuras parentais, senhoras de tal posto, devem ser ultrapassadas, num processo de depuração de facetas identitárias, por parte do sujeito da promessa.

Além disso, a realização do ser envolve o descumprimento de uma série de regras familiares introjetadas, descumprimento este que se apresenta como ameaça aterrorizante. É assim que a consolidação da promessa de ser a si mesmo envolve o enfrentamento de “maldições” lançadas ao sujeito, que se revelam obstáculos para o alargamento do enquadre familiar, para que, então, este sujeito possa tomar posse de si. O sujeito encontra-se paralisado em meio a rituais de propiciação para aplacar a ira destas figuras parentais e do outro, dos quais precisa resgatar os investimentos depositados. Nestes rituais, esboça-se uma promessa de tempos benfazejos; para tanto, o paciente cumula sacrifícios, visando o desfrute, que se apresenta sempre próximo, sempre distante. O percurso entre a proximidade e o distanciamento da realização do desejo torna-se incomensurável, configurando uma brecha temporal dirigida ao infinito. Pontualmente, o objeto do desejo coloca-se a indescritível distância, conquanto talentos, capacidades e dons para alcançá-lo estejam próximos, visto serem inerentes ao sujeito.

Delineia-se, com isto, uma configuração mental constituída por um engolfamento destrutivo/aniquilador de possibilidades representacionais e afetivas do paciente. Tal engolfamento amarra o paciente a um desfrute de seus dons fadado a se resolver no fim dos tempos. Por sua vez, a este final dos tempos subjaz a crença de que catástrofes se abaterão sobre ele; assim sendo o desfrute novamente é ameaçado, por ser experenciado como ameaçador. Neste caso, o desfrute mobiliza um quantum de afeto que, ao invés de ser vivido como prazeroso, é experimentado como caos insuportável de arrebentação de limites do eu.

No cerne da questão da promessa reside, outrossim, uma crença a respeito da própria imortalidade, encravada nos subterrâneos do psiquismo. “Não saber ao tempo que se chega’’ quando instado a fazer mudanças ou “precisar de tempo’’ para mudar são crenças que fundam seu alicerce no tempo da imortalidade. Em conjunto com as representações-amuleto, tais crenças contribuem para que se estenda o desfrute até o fim dos tempos. Destarte, o tempo tende ao infinito, inversamente à finitude temporal do sujeito. A quebra desse tantalizante protelar envolve o contato com fantasias catastróficas em torno da morte até que o sujeito contate a noção da própria mortalidade. Pode-se dar, a partir daí, uma profunda reorganização da relação do sujeito com sua finitude.

Cabe, por fim, retomar algumas fímbrias dos relatos míticos que podem ser articuladas ao relato clínico recém examinado. O arrastar do tempo analítico envolve um esforço enorme para a paciente se apossar daquilo que lhe é próprio: seus dons e talentos. Tendo seus dons sido hipotecados ao ser desinvestida narcisicamente, cabe agora ao processo analítico provocar fissuras no tempo da imortalidade e nas representações-amuleto que posicionam-na enquanto mera promessa de ser. Das profecias maternas há que tomar para si o crédito/credibilidade quanto a seus dons, pondo fim ao absurdo da demanda de investimento libidinal externo para a realização de seu desejo. Não obstante tal quadro, deste confronto afetivo-representacional decorre a possibilidade da paciente escapar ao engolfamento que mantem seus dons em estado virtual, através de rupturas de campo revitalizadoras. Um trabalho analítico que consiga deslindar esta complexa tessitura pode permitir ao sujeito ser um agente mais efetivo de seu próprio desejo, alçando-se para além do locus identificatório de mera promessa de ser.

 

Referências bibliográficas

Freud, S. (1911). Formulações sobre os Dois Princípios do Funcionamento Mental. Em Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de S.Freud. v.XII. Rio de Janeiro, Imago (1984).        [ Links ]

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Herrmann, F. (1991). Clínica Psicanalítica. A Arte da Interpretação. São Paulo: Brasiliense.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Maria Emília Sousa Almeida
Praça Comendador Marcelino Monteiro, 111, apto 13 - Centro
12030-010 Taubaté - SP
Tel.: +55-12 233-6007
E-mail: holoscrita@uol.com.br

Recebido 02/02/00
Aprovado 22/09/00

 

 

* Psicóloga e Psicanalista. Professora Colaboradora-Adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade de Taubaté. Doutoranda em PsicologIa Clínica da Pontifícia Universidade Católica. Membro do Centro de Estudos de Teoria dos Campos-PUC