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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.21 n.2 Brasília jun. 2001

 

ARTIGOS

 

Modo de morar e modo de cuidar: uma proposta de tipologia1

 

 

Elaine Pedreira Rabinovich; Ana Maria Almeida Carvalho*

Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir do acompanhamento de crianças de 0-12 meses em visitas domiciliares, propõe-se um esquema de análise no qual os conceitos de apego e autonomia, relativos à relação mãe-criança, são associados aos conceitos de “lugar” e “espaço”, relativos à organização do ambiente doméstico, compreendidos como expressão de um “sistema de desenvolvimento” que inclui a organização psicológica da díade mãe-criança e as crenças e condições de vida concretas nas quais o desenvolvimento ocorre. Sugere-se uma tipologia - rígido; flexível; simbiótico; instável - associando o modo de morar ao modo de cuidar.

Palavras-chave: Sistema de desenvolvimento, Contexto, Moradia, Tipologia.


ABSTRACT

From a follow-up of 0-12 months old children through home visits, a scheme of analysis is proposed in which the concepts of attachment and autonomy, relative to the mother-child relationship, are linked to the concepts of “place” and “space”, relative to the organization of the home environment; both understood as the expression of a “developmental system” including the basic psychobiological organization of the mother-child dyad and the belief systems and the concrete living conditions within which development takes place. A typology is proposed - rigid; flexible; instable; symbiotic - associating the way of living to the way of caring.

Keywords: Developmental system, Context, Dwelling, Typology.


 

 

Este trabalho objetiva apresentar o esboço de uma tipologia de relação mãe-bebê associando modo de cuidar e modo de morar, e justificar a construção dessa tipologia.

A tipologia emergiu como uma consequência dos conceitos de espaço potencial (Winnicott, 1982) em suas relações com os conceitos de “lugar” e de “espaciosidade” (Tuan, 1983) em conjunto com os de apego e exploração (Bowlby, 1984).

Para Winnicott (1982), o espaço potencial seria o espaço cultural e os objetos transicionais seriam os intermediários entre os objetos da fantasia e os da realidade. Tais objetos tanto ajudam a fazer a ponte entre a realidade subjetiva e a realidade objetiva quanto ao fazê-lo, permitem a criação da própria cultura através da criatividade que decorre do aspecto potencial. O espaço potencial é o espaço possível, não do evento certo, mas o que decorre e onde ocorre o encontro, o início e o prosseguimento da vida subjetiva.

Duas vertentes, “lugar” e “espaço” (Tuan, 1983) podem ser vistas como representadas no espaço potencial: “lugar” como um centro de afeto, de pertencimento, de apego, de encontro consigo no outro, do lugar de “si”; e “espaciosidade”, como possibilidade de sair, de viajar, de encontrar o mundo, de ter a capacidade real e mental de locomoção. Corresponderiam a conceitos básicos em psicologia: apego e exploração; dependência e independência; pertencimento e autonomia; ou aos “dois sistemas motivacionais que a evolução moldou em primatas incluindo os seres humanos: a necessidade de se relacionar com os outros e o impulso para a exploração” (Zach & Keller, 1999).

Para Winnicott (1982), a “mãe suficientemente boa” tanto oferece continência ao bebê quanto o frusta na medida das capacidades da criança de suportar o sofrimento, ou seja, tanto se dá como “lugar”, quanto se retira e oferece o mundo, como “espaciosidade”. Por sua vez, Dalley (citado em Kitzinger, 1978) acredita haver um conflito entre o fato de a criança ter constituído parte da mãe e uma espécie de prolongamento físico desta e a independência posterior. As sociedades tanto podem valorizar a fase do fechamento, quanto a da separação. Deste modo, haveria um conflito entre estas duas forças, depender e independer, pertencer e autonomia, tanto na mãe quanto na criança (Kitzinger, 1978). Do ponto de vista evolutivo, o desmame seria um conflito inevitável por ser interesse da mãe conservar suas fontes para um futuro rebento e ser interesse da criança explorar a mãe (Hinde, 1987).

Propomos que espaços potenciais resultantes e formadores de culturas podem ser identificados no modo de cuidar pelos indicadores sistema de aleitamento, sistema de locomoção e sistemas de organização temporal conforme vistos na rotina e no esquema de aleitamento; e, concomitantemente, são visíveis no modo de morar pelos indicadores: tipo de ornamentação; tipo de ordenação (organização poli ou mono-funcional) e tipo de arrumação.

 

O Estudo

60 crianças de 0-1 ano e de suas famílias moradoras no subdistrito paulistano de Vila Madalena foram acompanhadas durante um ano através de visitas domiciliares. Este acompanhamento se deu através de vários recursos metodológicos: anamnese da família e da criança; roteiro para observação da moradia; Ficha de Acompanhamento do Desenvolvimento do Ministério da Saúde e outros.2

Os dados foram analisados quanto às seguintes variáveis do modo de cuidar:

• esquema de aleitamento (a pedido ou com horário);

• presença ou ausência de rotinas;

• início do sentar sem apoio e da marcha independente, correlacionados com o conceito de autonomia;

• relações entre o sistema de amamentação e o início da marcha.

O modo de morar foi visto segundo os seguintes descritores:

• o quarto de dormir, o berço e suas circunstâncias;

• a arrumação da casa;

• a organização espaço-temporal (polifuncionalidade e monofuncionalidade);

• a organização sócio-familiar (coletivização e privatização).

Foram investigados paralelos entre o modo de morar, o sistema de cuidados e o desenvolvimento infantil.

 

O Modo de Cuidar

O Modo do Bebê Dormir em Vila Madalena: a cultura e o berço.

Das 60 crianças visitadas, 14 (23,3%) não tinham berço e 46 (76,7%) tinham; 65% (39/60) tinham o que denominamos “cantinho do bebê”, isto é, um espaço criado por enfeites e brinquedos em torno e dentro do berço.

Das crianças que desmamaram até 9 meses, 16 (72,7%) possuíam berço e 6 (27,2%) não, enquanto que 8 (72,7%) das que desmamaram após 9 meses não possuíam berço, dormindo com os pais ou irmãos (diferença estatísticamente significativa: Fisher, p = 0,01).

Observou-se também uma tendência a uma relação inversa entre a idade do desmame e a presença de um “cantinho do bebê: quanto mais cedo o desmame, mais os berços tenderam a estar enfeitados, caracterizando um “cantinho”, enquanto a ausência de berço apareceu associada a desmame tardio. Agrupando-se a idade de desmame de 0 a 9 meses e correlacionando-a com a presença/ausência de berço, obteve-se x2 = 3.37, p < 0.10.

Em sociedades individualistas o berço com enfeites pode ser considerado um índice de espaço potencial materno: o espaço representacional do desenvolvimento gerado pela e na mãe. O berço e o cantinho do bebê são projetos espaciais dos pais quanto ao modo como a criança vai ocupar o seu lugar no mundo.

Em sociedades coletivizadas, por outro lado, o social é o locus da pessoa, o self sendo definido em termos do ingroup (Triandis, 1991); enquanto em sociedades individualizadas, o locus da pessoa é o seu corpo (Prost, 1992), o self definido em termos de atributos pessoais (Triandis, 1991). Donde, em sociedades coletivizadas, a criança dorme junto aos pais.

Para Eibl-Eibesfeldt (1974), o homem é uma criatura de vinculação tanto quanto de espaçamento, sendo a territorialidade a intolerância ligada ao espaço, à defesa do espaço contra os de fora, ao domínio de um grupo ou animal sobre outro naquele lugar. Muitos padrões agressivos seriam adaptações filogenéticas ritualizadas a serviço do espaçamento e do controle de agressão. Neste sentido, o berço pode ser considerado o “território” do bebê e os enfeites, a sua demarcação, o seu “espaçamento”. A demarcação territorial de povos coletivizados se dá na rede de bandos pela ocupação, enquanto à medida que aumenta o índice de privatização, esta vai se dando cada vez mais próxima ao indivíduo pela marcação de um território individual.

Whiting (1981), num extenso estudo sobre os modos de dormir, descreveu que, em climas tropicais, os povos tendem a carregar as crianças em tipóias, as crianças usando poucas roupas e dormindo próximas à mãe. O oposto ocorre nos climas frios: muitas roupas e o uso do berço. Como conseqüências do uso do berço, as crianças são separadas de suas mães ao nascer. Se precisam de algo têm de chorar. Com as crianças da tipóia é como se a criança não tivesse nascido, fosse ainda parte de sua mãe. Para esse autor, as crianças de berço são separadas ao nascer, enquanto as outras apenas o são quando ocorrer o desmame de carregar e dormir, o que ocorre geralmente aos 2 anos. Assim, as crianças de berço são separadas muito mais “desamparadas” que as outras, ou seja, menos maduras e com menor autonomia. Sua comunicação é distal antes do que proximal, verbal antes do que cinestésica. Estão em um esquema de reforço retardado e aperiódico, precisando chorar e esperar até serem acudidas no berço. Este conflito contrasta com a cultura da tipóia, em que as crianças são ativas no sentido de perceberem precocemente a sua habilidade para se satisfazerem, por exemplo, mamando sempre que sentem necessidade.

A utilização do berço determina, entre outros fatores, um sistema de cuidados à distância. Conforme foi visto na nossa amostra, o aleitamento contínuo se complementa com o dormir junto à mãe, havendo duas ou três fases de desmame: do seio, do carregar e do dormir. Este modelo de cuidar determina um contato contínuo e permanente mãe-criança, com um tipo de contato corporal muito diverso das crianças educadas no berço.

Pode-se pensar que, devido à coerência dos sistemas de valores e dos modos de vida, o modo de cuidar se reflete nos vários estágios da vida do indivíduo, organizando os diversos tipos de comportamentos em sistemas. Conforme sugere Whiting (1981), “os deuses poderosos da religião judaico-cristã e a crença nos guardiães dos espíritos que caracteriza muitos dos índios norte-americanos, ambos florescem em culturas do berço e representam o tipo de relação dependente entre homens e o sobrenatural que poderia ser teoricamente esperado” (p.175).

O berço pode, pois, ser pensado como um indício de separação da mãe. A existência e uso do berço implicaria em que a criança estaria separada da mãe em alguma instância, com isso instalando-se o predomínio da comunicação distal.

A presença do berço indicaria também a representação da noção de si próprio através da demarcação de espaços próprios, por exemplo: um si próprio “mais ou menos coletivizado” ou “mais ou menos definido em termos do grupo ou em termos de atributos pessoais”.

Os enfeites podem ser pensados como um modo de possuir os espaços e de defendê-los contra invasores. Diz Tuan (1983) que a mãe é o primeiro lugar da criança, se lugar for definido de um modo amplo como um centro de valor, de alimento e apoio. As crianças tornar-se-iam possessivas devido à necessidade de garantir o próprio valor e status entre companheiros. A necessidade de segurança levaria a apoiar a personalidade em objetos e lugares, o que acabaria por fornecer padrões de identificação.

Para Prost (1992), após o período de vida privada familiar ocorreu e está ocorrendo a vida privada individual onde “o corpo se tornou o lugar de identidade pessoal” (p.105). Esse corpo, que pode ser considerado um corpo “pós-moderno”, não tem vergonha de si próprio, “se possui”, “se cuida” através do asseio, da dietética e da cultura física. Ao mesmo tempo, há uma “democratização” na vida política e, principalmente, na relação do casal parental entre si e com os filhos. Para este autor, a vida privada individual passou a ser um direito contra a instituição familiar.

O Sistema de Aleitamento em Vila Madalena

Quando a mãe não amamentou a criança ao nascer foi porque o recém-nascido não quis ou não pôde ser amamentado, dado que nenhuma mãe declarou não ter desejado amamentar seu bebê. As mães que desmamaram até 3 meses o fizeram geralmente porque decidiram fazê-lo (em geral porque precisavam trabalhar), enquanto entre 3-6 meses foi a própria criança que determinou o Houve uma relação inversa entre a idade em que se deu o desmame e o tipo de esquema de aleitamento: quanto mais cedo foi o desmame, maior a probabilidade de ter sido o horário colocado pela mãe; quanto mais tardio foi o desmame, maior a probabilidade de o esquema ter sido determinado pela criança.

Agrupando-se as crianças aleitadas até 3 meses, e as aleitadas de 3 a mais de 12 meses, obteve-se uma alta correlação (x2 = 10,46, p < 0,01) entre a idade do desmame e o esquema de aleitamento com ou sem horário. Pode-se pensar que a mãe que pôs horário desmamou cedo e a mãe que não pôs horário ou desmamou mais tarde ou não desmamou até os 2 anos de idade.

As mães que não tinham rotina foram as que aleitaram até mais tardiamente (Fischer, p=0.001)

Podemos traçar, a partir dessas relações, três tipos de aleitamento (Quadro 1):

desmame precoce, onde o bebê é em geral aleitado com horário e tem rotina;

desmame médio onde o aleitamento se dá com horário flexível e é o bebê quem determina o desmame;

desmame tardio, onde o bebê é aleitado sem horário, sem rotina e com possíveis distúrbios da relação mãe-criança (“simbiose”).

O Sistema de Locomoção em Vila Madalena

O sistema de locomoção foi analisado através de dois marcos comportamentais: o sentar sem apoio e o início da marcha.

As crianças cujas mães impediam ou não facilitavam a ação exploratória, assim como a ausência de espaço real foram registrados como “sem autonomia”.

As crianças cujas mães permitiam a exploração e propiciavam a base concreta para que tal ocorresse foram classificadas “com autonomia”.

Os critérios para definir autonomia passam portanto por dois níveis:

• se a mãe permite ou não a exploração;

• se a mãe possibilita ou não condições para que a exploração ocorra.

Por exemplo: a mãe que deixa sua criança permanecer no berço por longos períodos, sendo este desprovido de móbiles ou brinquedos; a mãe que obriga seu filho a andar calçado com meias no assoalho liso, escorregadio; a ausência de espaço material para a criança brincar e se locomover etc. indicam ausência de autonomia.

As crianças de V.Madalena podem ser subdivididas em dois grupos quanto ao sentar: 53,3% sentaram entre 5-6 meses inclusive, e outros 46,7% entre 7-9 meses. Pode-se dizer que as que sentaram após os 6 meses o fizeram devido à falta de oportunidade de treino, excetuado um caso de atraso motor por doença grave (leucemia).

A maioria das crianças a quem a mãe conferia autonomia andaram até 13 meses, enquanto a maioria daquelas a quem as mães não deram autonomia andaram após os 14 meses (Fisher, p= 0,004). Pode-se, pois, aventar a hipótese de uma relação entre autonomia e início da marcha (tabela1).

Não se encontrou relação direta entre a idade do desmame e o início da marcha, mas a mãe que põe horário tende a desmamar cedo e a dar autonomia, enquanto a mãe que não põe horário e desmama tarde tende a não dar autonomia (tabela2).

Pode-se pensar que as mães que desejam a própria autonomia desmamam cedo e dão autonomia. Corresponderiam ao sistema educacional americano, conforme descrito por Brazelton (1977), com ênfase na realização individual e na independência. Já mães que se acham no extremo oposto estão “simbiotizadas”. Desmamam tarde e não dão autonomia. Mães e crianças mais “saudáveis” estariam num ponto intermediário, onde a mãe tanto propicia o “lugar”, quanto a “espaciosidade” da criança, mas mantendo a própria autonomia.

O Modo de Morar em Vila Madalena

Foram as seguintes as categorias para análise da moradia: ordenação; arrumação; coletivização; enfeites. Elas foram dispostas em dois eixos: a) ordenação, representando a organização temporal-espacial da moradia e b) coletivização, representando a organização sócio-familiar.

A ordenação é a disposição por funções, ou seja, a separação e classificação das diversas funções a que serve a moradia: alimentação, repouso, socialização, higiene, procriação etc., de tal forma que os espaços podem ser polifuncionais, servindo a diversas funções, ou mono-funcionais. A separação entre os espaços pode ser feita quer por marcos “fixos”, (geralmente paredes), quer por marcos “móveis” (cortinas), quer por marcos “invisíveis”, que resultam da própria disposição dos objetos no espaço, delimitando ou não áreas funcionais. As casas foram classificadas em:

• ordenadas: locais específicos para funções específicas (53.3.%);

• não-ordenadas: ausência de locais específicos para funções específicas (21.7%);

• semi-ordenadas: sinalização das funções na ausência de paredes (20.0%).

A arrumação é a classificação e disposição das atividades e dos artefatos, de acordo com um plano espacial uniforme, consistente ou previsível. Refere-se a aspectos mais “superficiais” do que a ordenação, geralmente ao que se denomina “ordem” e “limpeza”. Encontraram-se 80% de casas arrumadas e 20% não arrumadas.

• Das 12 casas “não arrumadas”, 7 eram “não ordenadas”; das 48 “arrumadas”, 28 eram ordenadas, e das 12 com indício de ordenação, 11 eram arrumadas. Agrupando-se casas ordenadas e semi-ordenadas obteve-se uma associação altamente significante entre arrumação e ordenação (Fisher, p=0,003).

O eixo coletivização - privatização implica no tipo de organização sócio-familiar e propomos que seja aferido a partir dos seguintes índices, dado a coletivização poder ocorrer tanto em função do índice de aglomeração quanto de famílias ampliadas:

• relação moradores/cômodo: igual ou acima de 2.5 é considerado um indicador de coletivização;

• relação famílias/casa: mais do que uma família por casa é um indicador de coletivização;

• relação casa/casa: a vizinhança intra-muros com familiares é indicador de coletivização

As casas foram classificadas quanto à coletivização em:

coletivizadas (21 = 38.19%): moradia com índice morador/cômodo igual ou acima de 2.5; moradia com vizinhos familiares intra-muros; mais do que uma família morando na mesma casa; empregada doméstica morando na casa da patroa;

semi-coletivizadas (9 = 16.36%): casas onde moram membros de mais de  uma família ou casa de frente ou de fundos familiares desde que não atinjam o  índice morador/cômodo igual ou acima de 2,5;

privatizadas (25 = 45.45%): habitadas pela família nuclear.

Agrupando-se as casas privatizadas e semi-privatizadas, e não ordenadas e semi-ordenadas, obtem-se uma associação inversa entre coletivização e ordenação (x2 = 12.43, p= 0.01).

Além destes dois eixos semânticos, propomos outra categoria de análise: os enfeites. Os enfeites foram definidos como os objetos não-utilitários presentes nas casas, quer dispostos nos móveis, quer dispostos nas paredes.

Os enfeites foram categorizados por quanti-dade: ausentes - poucos - alguns - muitos. Essa categorização foi relativa ao tamanho da casa, ou seja, foi proporcional e não absoluta. Referiu-se, portanto, à relação número de enfeites/tamanho do cômodo e não ao número total de enfeites. Havia 15 casas (27,2%) com muitos, 8 (14,5%) com alguns, 20 (36,3%) com poucos e 12 (21,8%) com ausentes.

Os enfeites foram multi-classificados quanto à qualidade: arte (24): ex. reproduções artísticas; família (20): ex. retratos; religião (20): ex. imagens de santos; infantil (19): ex. bichinhos e enfeites próprios a crianças; cultura (17): ex. discos, livros; vivos (12): ex. plantas; valor (8): ex. objetos de prata; tecido (8); toalhinhas, almofadas; origem (3): ex. escultura de barro do nordeste; esportivo (2): ex.: fotos de jogadores.

Foi observada uma forte relação (x2 = 14,95, p < 0,01) entre a casa ter enfeites e o berço ter enfeites, ou seja, quem enfeita a casa tende a enfeitar também o berço.

Casas coletivizadas tenderam a apresentar poucos enfeites (72.2% em ausente/pouco).

Considerando-se apenas as categorias coletivizado e privatizado, e agrupando-se os enfeites em duas categorias (ausentes + poucos, alguns + muitos) obteve-se um resultado estatisticamente significante (x2 = 3,94, p < 0,05) associando privatização com enfeites e coletivização com poucos enfeites.

Não foi observada associação entre ordenação e enfeites a não ser que as casas semi-ordenadas tendiam a ter muitos enfeites em contra-posição às casas não ordenadas.

Em conseqüência desses achados, pode-se pensar em uma associação entre ausência de berço/ coletivização/ ausência de enfeites/ não ordenação/ desmame tardio e cantinho do bebê/ privatização/ enfeites/ ordenação/ desmame precoce.

 

Tipologia: Modo de Morar e Modo de Cuidar

Comparando-se os vários indicadores utilizados, pode-se propor uma tipologia de relação mãe-bebê que consiste em um conjunto de aspectos representados, de um lado, por indicadores do modo de morar – ordenação, berço, enfeites – , e de outro por indicadores do modo de cuidar – aleitamento (esquema e rotina) e autonomia. A combinação desses indicadores em cada caso estudado permite a proposição de três tipos de relação estáveis (Figura 1) e um tipo instável ou de transição.

O tipo rígido é sem autonomia, desmame precoce, com enfeites, arrumação boa, com tendência à ordenação, tem horário de mamada e rotina. O tipo simbiótico é não ordenado, não arrumado e não tem rotina, nem horário de mamada. A criança não tem autonomia, o desmame é tardio e a casa não tem enfeites. O tipo flexível apresenta tendência à ordenação, tem enfeites e a casa é arrumada. A criança tem autonomia, há rotina, mas o aleitamento é a pedido e o desmame médio.

O tipo instável é flexível porém não há arrumação nem enfeites. Há horário de mamada. Ele é chamado de “instável” porque tende a se transformar em outro tipo, pois há elementos incongruentes interiormente à sua constituição. Por exemplo: ser semi-organizado e não ter enfeites ou ter rotina e não ter arrumação; com horário para mamada e desmame médio etc. Desse modo ele deve evoluir para um outro tipo, o flexível ou rígido. Por outro lado, ele pode indicar uma instabilidade na organização da casa no sentido de alternância de padrões.

Pode-se dizer portanto que o modo como a mãe organiza e cuida da casa se relaciona com o modo como a mãe organiza a vida e cuida da criança.

Os tipos rígido e simbiótico estão em pólos opostos, enquanto os tipos flexível e instável são intermediários entre eles. O tipo rígido pretende controlar/organizar os acontecimentos muitas vezes incontroláveis, enquanto o tipo simbiótico desistiu de controle. Esse controle ou ausência de controle se manifesta no modo como a casa é cuidada e como criança é cuidada. No tipo rígido, a casa é muito limpa, muito arrumada, há muitos enfeites, horários e rotinas. Em compensação, não há autonomia e no espaço potencial há dificuldade em permitir o acesso da criança às coisas.

No polo oposto, o tipo simbiótico encontra-se possuído pelo caos, pela desorganização interior. Tanto a casa quanto a criança estão sem limites e há um empobrecimento geral decorrente da desorganização. A mãe, a família, a casa estão sem uma base de suporte. As conseqüências emocionais potenciais para a criança são um quadro de ambivalência afetiva, com dificuldade em se separar da mãe.

A exclusão da dimensão privatização/ coletivação se deve a que, de um lado, ela está incluída no eixo ordenação; de outro, ela repre-senta um diferencial único em relação ao modo de cuidar, como veremos a seguir.

 

Cultura, Modo de Vida e Desenvolvimento

Em Vila Madalena, observaram-se vários modos de cuidar e de morar resultando em vários modelos a serem internalizados pelas crianças, que podem ser representados no Quadro 2, no qual se tenta integrar alguns aspectos do ambiente de habitação com a relação mãe-criança e com a vida da criança na sociedade.

Em sociedades coletivizadas as crianças crescem em íntimo contato corporal com os adultos participando de suas atividades. A própria organização grupal, mais a ausência de posses, favorece o altruísmo primário: as crianças “aprendem” a dividir e a se importar com o outro desde os primeiros momentos de vida. Esse modo de proceder resulta das próprias contingências da vida comunitária, onde da ação afiliativa depende a sobrevivência do grupo. O modo de morar é coerente com esse modo de vida: sem portas, sem paredes, sem divisões de espaços, sem hierarquias (a não ser, cremos, o espaço profano e o sagrado).

No polo oposto, as sociedades privatizadas dependem de portas, paredes, trancas, grades, guardas para proteger as propriedades e as vidas. Em caso de escassez, há um reforço de agressão individual através da competição entre indivíduos. É a livre iniciativa, a ênfase na autonomia no poder auferido pelas posses. Esse sistema de valores privilegia o egoísmo como melhor modo de sobreviver. A educação é feita por estimulação distal e as pessoas são substituídas por objetos e esses passam a receber forte carga afetiva. A escassez é sentida como frustração individual, com perda de identidade, sentimentos de desvalia e perda de autonomia. Consequentemente, há uma sensação de perda do espaço.

Lugar e Espaço, como observado no sistema de aleitamento e autonomia, compõem o “Espaço Potencial”. Neste espaço, estariam representados os valores sócio-culturais responsáveis pelo contexto onde ocorre o desenvolvimento da criança, tanto em função dos tipos de interações que dele decorrem quanto da internalização dos padrões que a ele presidem.

Este quadro aproxima-se do proposto por Heidi Keller (1998), que separa sistemas de “parenting” de culturas ocidentais e não-ocidentais como basicamente diádicas ou de multicuidadores, com atenção exclusiva na criança ou co-ocorrente; contato corporal ou contato distal, ensino ou imitação. Para esta autora, haveria um modo de relacionamento específico para estes dois tipos, um que privilegiaria a resposta contingente, outro, a calorosidade, o contato empático, o pertencimento. Estas diferenças no modo de reagir às necessidades básicas ocasionariam trajetórias de desenvolvimento diversas.

 

Conclusões

Modo de morar e modo de cuidar puderam ser correlacionados porque o modo como a mãe está disponível para a criança e como coloca o mundo à disposição dela estão relacionados a modos mais ou menos coletivizados de vida e de morar.

Uma tipologia emergiu da confluência dos sistemas de aleitamento e de locomoção, indicadores do espaço potencial e, concomitantemente, através de aspectos do modo de morar.

O espaço potencial é um espaço dentro/fora, de transição. Os cuidados estão neste espaço potencial sendo gestados e gestando transicional e transacionalmente. Através disto, podemos entender como o ambiente faz parte do aparelho psíquico materno e do bebê, mesmo antes do nascimento.

O espaço potencial, dentro de suas duas vertentes – de um lado, lugar e espaciosidade, e de outro, apego e exploração – existiria desde os primeiros momentos da gestação. Quanto à espaciosidade, o conceito de autonomia que decorre de um tipo de pensamento que privilegia a separação do indivíduo de seu grupo deve ser cotejado face à dinâmica de interdependência que parece caracterizar culturas coletivizadas. Na amostra do presente estudo esses dois modelos coexistem relacionando-se de formas diferentes com o modelo culturalmente prevalente de individualismo e possivelmente decorrendo dessas relações diferentes graus de ajustamento ou desajuste no desenvolvimento individual.

O tipo de análise proposto permite uma articulação concreta entre modelos culturais a nível do macro-social e o cotidiano micro-social no qual se dá o desenvolvimento individual. Dependendo de validação por trabalhos com outras populações, a tipologia proposta e os indicadores em que se baseia podem tornar-se instrumentos úteis para a sensibilização de agentes de saúde pública em relação a aspectos físicos e psico-sociais observáveis nos ambientes de desenvolvimento e em relação às diferentes normatizações decorrentes de diferenças nesses ambientes.

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência
Elaine Pedreira Rabinovich e Ana Almeida Carvalho
Rua Maranhão 101 ap. 101
01240-001 São Paulo-SP
Tel.: +55-11 255-4509
E-mail: elainepr@clas.com.br

Recebido 06/04/00
Aprovado 22/09/00

 

 

* Pesquisador/bolsista CNPq.
1 Este estudo é parte da dissertação de mestrado: RABINOVICH, E.P. Modo de vida e relação mãe-criança: o mamar e o andar, o modo de morar e o modo de dormir. São Paulo, 1992. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. Orientador: Ana Maria Almeida Carvalho. Bolsa CAPES.
2 Para uma descrição completa deste estudo, ver: Siqueira, A.A.F.; Oliveira, D.C.; rabinovich, e.p.; & santos, n.g. Auxílio Financeiro: CNPq.