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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.21 n.3 Brasília set. 2001

 

ARTIGOS

 

Avanços no estudo da conjugalidade: os casais de dupla carreira1

 

 

André Maurício Monteiro*

Universidade de Brasília
Universidade Católica de Brasília

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O estudo da família, como um todo, e dos casais, em particular, tem sofrido grandes mudanças. Os métodos de pesquisa vêm se adaptando melhor à complexidade do tema, como também os próprios casais têm experimentado vertiginosas transformações nas possibilidades de relacionamento. Neste artigo é detalhada a emergência de uma dessas possibilidades: os casais de dupla carreira. A carência de modelos sociais que prevejam essa forma de interação é superada pela criatividade com que essas díades administram seus dilemas relacionais. Psicólogos precisam estar preparados para acolher o sofrimento específico e a riqueza relacional vividos por essas pessoas.

Palavras-chave: Díades, Casais de dupla carreira, Psicoterapia de família, Psicoterapia de casal.


ABSTRACT

The study of families as a whole and of couples in particular has undergone significant changes. Not only do research methods suit the complexity of the theme better, but also couples themselves have experienced deep transformations regarding relationship possibilities. In this article the emergence of one of these possibilities is outlined: dual career couples. The lack of social models that foresee this form of interaction is surpassed by the creativity with which these dyads cope with relational dilemmas. Psychologists must be prepared to face the specific suffering and relational wealth of this population.

Keywords: Dyads, Dual career couples, Family psychotherapy, Marital psychotherapy.


 

 

A Psicologia destaca-se como um campo que sofreu grande impulso e ampliação no escopo das pesquisas no século XX. Nesse sentido, destacam-se contribuições relativas à elaboração de teorias ligadas ao funcionamento dos sistemas maritais e familiares. A evolução dos estudos nessa área, durante a primeira metade do século, pautou-se pela hegemonia psicanalítica e seus conceitos psicodinâmicos. As explicações para o sofrimento emocional restringiam-se à descrição individual e à explanação linear da origem dos problemas.

A partir da década de cinqüenta, no entanto, a tendência de estudo de interação familiar sob prisma intrapsíquico foi subvertida. O estudo sistematizado dos padrões de interação familiar (Watzlawick, 1981) desviou o foco de atenção das motivações inconscientes dos componentes da família para o campo das interações sociais. Os autores, inspirados pelas doutrinas que viam a família como um sistema, perceberam a limitação da abordagem psicodinâmica que considera o indivíduo como objeto de expressão da psicopatologia. Os terapeutas treinados em enfoques intrapsíquicos ignoravam as contribuições do contexto relacional onde se evidenciavam problemas de comportamento (Boscolo, Cecchin, Hoffman e Penn, 1993).

A conceituação interacional significou uma mudança de paradigma em relação ao psicodinamismo. Peggy Papp (1992) resume as principais contribuições do pensamento sistêmico para a compreensão dos fenômenos relacionais: a padronização, ou redundância de informações intercambiadas de modo repetitivo e mantenedor do equilíbrio do sistema, forma uma seqüência de comportamentos que pode ser modificada pelo terapeuta; a organização circular faz com que as partes do sistema mudem constantemente, calibrando-o; a totalidade retira o foco de atenção sobre o indivíduo, ao estipular que o todo é maior do que a soma das partes.

Em termos sistêmicos, um casal pode ser inicialmente compreendido como a menor unidade de interação social. A escolha de casais como objeto de pesquisa tem implicações teóricas e metodológicas, pois existem concepções divergentes entre estudiosos, terapeutas e pesquisadores sobre quais seriam as características fundamentais de um relacionamento conjugal. O conceito suscita divergências e imprecisões de caráter teórico. Outros temas semelhantes de estudo, como por exemplo, a “família”, trazem consigo uma definição vaga de casal. Ao invés de esclarecer o pesquisador, o termo conduz a um sentimento falso de segurança.

Com o intuito de sanar essa imprecisão, caberia propor uma definição clara a ser adotada e explicitar as principais características do casal a serem investigadas. Essa tarefa é complexa pois, segundo Caillé (1994), seria enganoso tentar encerrar o casal em uma definição exaustiva. Jamais seriam levados em conta todos os aspectos significativos.

Quando se pensa sobre o casal, ainda em termos genéricos, é comum evocar-se uma idéia associada à dimensão afetiva que preserva um homem e uma mulher unidos. O compromisso entre ambos é mais ou menos duradouro, freqüentemente com vistas à geração de filhos e à formação de nova família nuclear.

Apesar desse entendimento preliminar, o critério afetivo não garante uma apreensão unívoca do termo. Pode-se pesquisar uma população com amostras compostas por casais que tenham ou não filhos; que sejam compostas por parceiros hetero ou homossexuais; que estejam morando sob o mesmo teto ou com parceiros morando até mesmo em casas ou cidades distintas. Há ainda casais pertencentes a diversas etnias e classes sociais; enfim, constata-se diversidade significativa de manifestações. Caillé (1994) afirma ser impossível a caracterização do casal por meio de definições simples. Essa maneira de relacionar-se tem a propriedade de assumir formas as mais variadas, preservando-se, porém, sempre reconhecível aos observadores.

De acordo com a literatura nacional, a definição que representa o pensamento dominante sobre o conceito de família, no Brasil, é aquela que a descreve como um grupo composto por um casal e seus filhos, abrigados sob o mesmo teto, nos limites da unidade doméstica. A divisão de papéis é assimétrica e o homem é o provedor financeiro. À esposa compete os cuidados com a casa e com os filhos (Bruschini e Ridenti, 1994).

O casal tradicional, conforme a descrição de Bruschini e Ridenti (1994), é conceituado como uma verdade estática e perene. Gibbon (1995) relembra, contudo, que o papel do “bom-provedor” é historicamente determinado e relativamente recente. Idealizado e glorificado nos anos 50, enquanto um papel inerente ao homem, na verdade esse estereótipo não se desenvolveu até a chegada do capitalismo industrial, no século XIX.

Com a passagem do tempo, o conjunto de estereótipos associados à família tradicional composta por pai, mãe e filhos encontra cada vez menos sustentação estatística. Duxbury (1991) relata que a suposta “típica” família norte-americana, composta por um marido com trabalho, esposa do lar e dois filhos restringe-se hoje a sete por cento do total das famílias nos Estados Unidos. Na verdade, conforme estimativas apresentadas por Spiker-Miller (1995), entre 60 e 70% dos empregados norte-americanos são hoje pertencentes a casais de dupla renda, isto é, ambos os esposos com trabalho ou renda própria. Essa proporção deve chegar a 80% nesta década que se inicia.

A incidência de casais de dupla carreira (cada cônjuge do casal com carreira própria) cresceu a uma taxa de sete por cento ao ano na década de setenta, nos Estados Unidos. Esses totalizaram três milhões de casais em 79, sem contar aqueles não-oficialmente casados, nem os casais homossexuais, conforme informação de Parker, M., Peltier, S. e Wolleat, P. (1981). Dados mais recentes (Reed e Bruce, 1993) indicam a ocorrência de cinqüenta e três por cento das casas americanas administradas por casais de dupla renda. Relato de Crispell (1995) indica que, de um total estimado de 54 milhões de casais nos Estados Unidos, 55% compõem-se de casais de dupla renda na força de trabalho. Estima-se que entre quinze e vinte por cento desses, ou seja, sete milhões de casais, sejam de dupla carreira.

A persistência em delimitar o campo de definição do casal esbarra, portanto, no obstáculo da diversidade de tipos de inserção familiar e social. Encontram-se casais chefiando unidades familiares de várias estruturas, o que complica a adoção de uma conceituação unitária. A família por vezes centra-se em torno de um progenitor somente, seja por falecimento ou separação do outro. Pode acontecer de os progenitores serem do mesmo sexo. As separações têm promovido o aumento de recasamentos e a criação de famílias transitórias. Enfim, incontáveis arranjos de convivência a dois, com maior ou menor expressão social do que os casais de dupla carreira podem ser identificados.

Há, portanto, vários critérios a serem considerados quando do estudo de casais. Além das peculiaridades individuais que contribuem para caracterizar a díade em uma unidade sócio-afetiva, outro critério de fundamental importância diz respeito aos acordos estabelecidos entre os cônjuges em relação à sua subsistência financeira.

Nesse sentido, para certos casais, um bom acordo quanto à divisão de atividades para os dois pode significar que um deverá dedicar-se ao trabalho fora de casa, enquanto o outro permanece no lar. Em outra conjuntura, ambos concordam em trabalhar fora e em dedicarem-se a trabalhos que exijam graus mais ou menos intensos de comprometimento pessoal. Podem ainda ficar os dois em casa e não trabalharem, como no caso dos aposentados ou dos casais muito jovens que ainda moram com os pais de um dos cônjuges.

O estudo sistematizado de casais é portanto complexo, sobretudo pela estruturação tanto afetiva quanto financeira da díade. Segundo Gilbert (1994), a ênfase no comportamento de homens e mulheres, de forma individual, relega a um segundo plano o contexto diádico onde esse comportamento ocorre e precisa ser resgatado.

Uma das formas de se viabilizar esse resgate do contexto onde o casal trabalhador é encontrado, consiste em analisar historicamente o perfil da díade e sua transformação ao longo do tempo. Ao adotar-se essa perspectiva diacrônica, deve-se considerar, inicialmente, os passos geralmente assumidos na formação e manutenção da vinculação diádica (Fontaine, 1986).

O estabelecimento de um vínculo afetivo sofre influências das histórias de vida e das características psicológicas de cada um dos parceiros. Esse vínculo é enriquecido pela história conjunta do casal, a partir de sua formação. A estruturação do vínculo ocorre em um ou mais contextos familiares, de onde cada cônjuge provém e aonde o futuro casal inserir-se-á enquanto unidade social, depois de acertado o contrato de relacionamento e eventual casamento. A consecução desse processo demanda o cumprimento de exigências mínimas a serem negociadas pelos futuros parceiros.

Puget e Berenstein (1988) entendem que ao longo da existência do casal os parâmetros estruturadores do cotidiano são selecionados. Constrói-se um projeto vital compartilhado pelos dois cônjuges, negociam-se as relações sexuais e a tendência monogâmica. Uma vez determinados, os parâmetros permanecem imanentes e carecem de negociação constante. Os parâmetros designam a forma adotada pela díade de enquadrar a realidade, o sentido e os significados intercambiados pelo casal.

Carter e McGoldrick (1995) julgam que a negociação do vínculo conjugal marca uma mudança qualitativa no ciclo de vida das famílias de origem de cada parceiro. A existência do casal implica um nível maior de diferenciação e autonomia entre os parceiros e seus grupos familiares originários. Estabelece-se a possibilidade do início de uma nova geração.

Baseados principalmente em acompanhamento de casos clínicos, diversos autores no campo da terapia de família sistematizaram idéias convergentes quanto aos itens discutidos no processo de formação do casal. Ackerman (1986), por exemplo, relata a reciprocidade e interdependência da adaptação ao papel familiar de cada cônjuge. O casal deve desenvolver regras sobre proximidade, hierarquia no processo decisório, setores de especialização e perícia de cada um, bem como padrões de cooperação. O casal estabelece também padrões de expressão e resolução de conflitos inevitáveis à convivência.

De modo análogo, Minuchin e Fishman (1990) ressaltam a negociação de fronteiras em relação às famílias de origem, aos amigos, ao trabalho e à criação de novos padrões de relacionamento com atores sociais circundantes. Além da negociação das fronteiras, acrescentam a conciliação de expectativas divergentes de cada pessoa e o estabelecimento de estilos comuns aos parceiros no que diz respeito ao processamento de informação, ao relacionamento com parentes e amigos e às regras no intercâmbio de afeto.

Não são somente as negociações intradiádicas que são as fundamentais para a construção do relacionamento conjugal. Vários elementos alheios ao controle dos cônjuges desempenham um papel importante na determinação de sua estrutura. Aspectos histórico-culturais abrangentes interagem com essas perspectivas microssociológicas e contribuem para alterar a forma e o conteúdo do relacionamento. Ilustrações desses aspectos seriam os padrões sociais referentes às práticas de côrte, os padrões sexuais em diferentes contextos sociais e os níveis de satisfação alcançados no relacionamento (Maldonado, 1987).

Dentre os aspectos macrossociais que alteram o processo de estruturação do casal, ganha relevo o avanço tecnológico. O progresso científico interfere de maneira decisiva na forma de compreender-se o casal e seus valores. O desenvolvimento de tecnologias tem possibilitado a criação de um cenário impossível há alguns anos atrás. Aparte o controle da natalidade, um óvulo pode ser fertilizado in vitro e implantado no útero de outra mulher. Assim, é possível para uma mulher hoje em dia ter um filho sem sequer manter relações sexuais, nem engravidar. De acordo com Golombok e Fivush (1994), esse impacto tecnológico propicia o relaxamento entre os laços reprodutivos e sociais, transformando irreversivelmente a forma de conceituarmos homens e mulheres, não sendo mais possível discriminá-los com o apoio de pressupostos biológicos para justificar diferenças entre os dois nem seu relacionamento.

Se uma abordagem histórica ilumina as transformações pelas quais o casal se atualiza, outro meio de se entender melhor as evoluções do conceito de casal seria por intermédio de uma análise conjuntural. Ação e reação do casal a vários elementos estruturantes da realidade podem ser avaliados em um determinado momento. Esse enfoque é especialmente empregado, por exemplo, na pesquisa clínica, pelos adeptos da psicoterapia breve. Goulding (1990) exara que a intervenção terápica seria precedida por um diagnóstico situacional, passível de redefinição a qualquer momento, de acordo com a demanda do casal. A ênfase seria dada não aos fatos passados, mas aos conflitos atuais.

A intervenção psicoterápica não é exclusiva nas avaliações situacionais do conceito de casal, nem as estratégias adotadas para superação das dificuldades vivenciadas pelos casais. As pesquisas de cunho etnográfico, a abordagem pós-moderna do construcionismo social e as técnicas de pesquisa-ação encaixam-se nessa abordagem (Boss, Dahl e Kaplan, 1996).

Outra forma de pesquisar a díade, além da estruturação do relacionamento do casal ao longo dos tempos e de uma avaliação sincrônica da relação, estaria considerando a conjugação desses dois modos de investigação descritos anteriormente, o histórico e o conjuntural, de maneira integrada. Um exemplo seria o modelo de avaliação proposto por O’Neal, Fishman e Kinsella-Shaw (1987) para a avaliação de casais de dupla carreira. Esses autores norte-americanos relataram ter encontrado apenas alusões escassas ao funcionamento cotidiano de casais de dupla carreira ao iniciarem suas pesquisas. Em suas tentativas preliminares de acompanharem casais trabalhadores em aconselhamento psicológico, constataram que a tarefa era bastante complexa. Tinham que considerar simultaneamente a dinâmica de um relacionamento marital íntimo, o esforço para conciliar as exigências de duas carreiras de destaque na vida de cada um dos esposos e as demandas específicas da interação familiar.

Com a intenção de ampliar o entendimento da interação dinâmica dos casais de dupla carreira, O’Neal et al. (1987), propuseram um modelo pormenorizando os dilemas normativos vividos por esse grupo nos momentos de transição familiar e profissional ao longo do ciclo de vida da família. O modelo sugere a existência de uma interação contínua entre os mundos pessoal, profissional, familiar e marital das pessoas.

De acordo com O’Neal et al. (1987), o amadurecimento dos casais encontra obstáculos sociais externos à dupla e outros inerentes à própria estruturação do vínculo. A fim de melhor negociar tensões em áreas de interesses diversos, os cônjuges eventualmente deparamse com dilemas e dúvidas quanto à decisão mais adequada para lidar com situações de impasse. As saídas encontradas para a resolução desses dilemas nem sempre coincidem com as normas socialmente prescritas, isto é, com padrões socialmente aceitos para casais tradicionais. As díades vêem-se então forçadas a rever seus valores e a encontrar um estilo próprio, a fim de sentirem-se socialmente adaptadas. Essas e outras peculiaridades da realidade de dupla carreira precisam ser exploradas com objetivo de promover o entendimento tanto teórico quanto clínico dessa nova forma de estruturação de relacionamento conjugal.

 

Casal de Dupla Carreira

Os Rapoports (1969) empregaram o termo família de dupla carreira no final dos anos sessenta para descrever o que entendiam ser um tipo especial de família de dupla renda. Consideravam-na revolucionária porque emergia em resposta às mudanças sociais do pós-guerra. O caráter inovador proposto pelos cônjuges consistia na conciliação de carreiras independentes e o estabelecimento de uma vida familiar que incluísse ao menos uma criança.

Entende-se, portanto, o conceito de casal de dupla carreira por seu contraste em relação a outros tipos de casal para os quais a carreira não se constitui como um pólo estruturante do relacionamento.

Na tentativa de demarcar esse território específico, Gilbert e Rachlin (1987) definiram três modelos de estrutura da família nuclear, estipulados a partir da maneira como o casal assumia o relacionamento marital e o envolvimento profissional. As famílias foram então categorizadas da seguinte maneira: a família nuclear tradicional, a família de dupla renda e a família de dupla carreira.

A primeira família caracteriza-se pela divisão rígida de papéis sociais e de gênero. Um dos cônjuges, normalmente o marido, envolve-se com trabalho remunerado, enquanto a esposa cuida dos afazeres domésticos e dos filhos. No segundo modelo, denominado de dupla renda, ambos os esposos estão envolvidos com o trabalho remunerado. Normalmente a esposa apóia e facilita a carreira do marido. Promove-o e percebe seu próprio trabalho como uma forma de auxiliar na composição da renda familiar. As tarefas de casa são ainda incumbência da esposa.

O terceiro modelo familiar, composto pelo casal de dupla carreira, na verdade não deixa de ser uma família de dupla renda. O que o distingue do modelo anterior é o nível mais profundo de envolvimento com a carreira, preservado o desejo de manutenção de uma vida afetiva a dois. A distribuição das tarefas da casa, bem como o cuidado dispensado aos filhos, são mais compartilhados entre homens e mulheres do que nos modelos anteriores.

Para Rapoport e Rapoport (1969), a essência da família chefiada por casal de dupla carreira difere de outras famílias onde as tarefas também são partilhadas entre os cônjuges. Essa diferença reside no fato de a divisão de trabalho em relação às funções familiares ser distribuída entre os parceiros com base de igualdade de status e não baseada no sexo dos cônjuges. Assim, excetuando-se a gravidez e o parto, a divisão de funções pode ser efetuada de acordo com as habilidades e inclinações de cada um, e não atribuídas aos cônjuges conforme o sexo.

Nos casais de dupla carreira, nenhum dos esposos está disposto a subordinar as expectativas do trabalho às expectativas familiares. Ambos estão comprometidos tanto com o investimento pessoal na carreira quanto com a vida familiar. Essa dedicação de ambos os cônjuges à família e à profissão sinaliza uma mudança fundamental desse tipo de casal em comparação com o relacionamento conjugal tradicional. O desafio do casal consiste em coordenar as aspirações de cada um dos cônjuges, sem a subordinação ou sacrifício de um em nome das aspirações do outro.

Para os casais que viabilizam essa divisão de funções, a vida familiar e o trabalho não são vistos como mundos distintos, mas como um mundo integrado (Richardson, 1981). O que distingue essas pessoas dos indivíduos que devotam suas vidas exclusivamente à carreira é o empenho de cada cônjuge em desenvolver estratégias de conciliação da profissão com o relacionamento afetivo (Parker et al., 1981, Houseknecht, 1981).

Gilbert e Rachlin (1987) acreditam haver uma tendência inicial à igualdade nessas relações afetivas associadas à dupla carreira. Idealmente, homens e mulheres começam relacionamentos em bases igualitárias. As pressões sociais, contudo, os deixam psicologicamente despreparados para enfrentar as críticas que acompanham os casais que se atrevem a assumir mudanças em direção a distribuições de tarefas em bases mais equilibradas.

O conceito de igualdade tem sofrido algumas modificações. Segundo Gilbert (1987, 1994), um dos temas, ou melhor, meta-temas emergentes indiretos da pesquisa com casais de dupla carreira aponta para outro tipo de divisão, que não exatamente da igualdade. Trata-se da divisão de tarefas segundo o princípio da eqüidade. Segundo o dicionário Aurélio (1993), eqüidade seria a disposição de reconhecer igualmente o direito de cada um; sentimento de justiça avesso a um critério de julgamento ou tratamento rigoroso e estritamente legal, o que implica o respeito às diferenças individuais. Estudo de Cooper e Arkkelin (1994) indicou que casais de dupla carreira conferiram importância especial aos temas de eqüidade, status e realização, correlacionando-os às principais aspirações do casamento. As mulheres preocuparam-se mais com os temas relacionados à divisão de tarefas, por sentirem-se sobre-carregadas.

A vida do casal de dupla carreira significa, além das tarefas e responsabilidades, a administração de múltiplos papéis sociais. Esses papéis são diferenciados entre si e modificados pelas inovações produzidas pela própria interação entre os cônjuges. Esse processo de revisão dos papéis sociais afeta tanto as mulheres, ao contarem com maior participação do homem nas tarefas do lar, quanto os homens, por terem que se adaptar às múltiplas demandas dos papéis profissionais de suas mulheres (Zedeck e Mosier, 1990).

Apesar das dificuldades decorrentes da negociação eqüitativa e das modificações dos papéis sociais, os casais de dupla carreira encontram-se cada vez mais em evidência social e econômica. Essa expansão é reconhecida não somente na pesquisa social e no campo acadêmico, mas no próprio mercado de trabalho. Algumas corporações têm modificado sua política interna para atender às necessidades dos casais de dupla carreira. Chegam até mesmo a encorajar a composição de casais de trabalhadores em seus quadros. No Japão, por exemplo, a política de casamento entre parceiros dentro da mesma companhia é tradicional e largamente praticada. Dentre as empresas ocidentais, pode-se citar a Du Pont, que possui 3.500 casais de dupla carreira em sua força de trabalho, de um total de 100.000 empregados.

Além de companhias privadas, universidades estão também iniciando o emprego de estratégias para o recrutamento de casais qualificados para certas disciplinas. Esse empenho é traduzido pela criação de novas posições para acomodar ambos os cônjuges, oferecimento de postos de trabalho compartilhados e empregos temporários para esposos poderem estabelecer-se profissionalmente (Reed e Bruce, 1993).

No exército dos Estados Unidos, 36.000 soldados em serviço são casais de dupla carreira militar. Dada a natureza da atividade, os militares estão sujeitos a muitas transferências geográficas. O Programa de Casais Militares Casados (Married Army Couples Program) ocupa-se principalmente dessas transferências. Pesquisa interna no exército indicou que um terço da força pediria baixa das forças armadas, caso as transferências em dupla não ocorressem. Em nível governamental, o Departamento de Defesa americano procura conciliar a transferência de funcionários civis casados com militares, dando-lhes preferência em postos para os quais estejam qualificados (Teplitsky, 1988).

Nem todas as organizações incentivam o recrutamento de casais de dupla carreira, contudo. Na verdade, algumas até receiam que o relacionamento marital interfira com o desempenho profissional dos esposos. Alegam que a prática de contratar casais de dupla carreira abre espaço para acusações de nepotismo ou de situações onde um dos esposos é promovido e torna-se supervisor do outro. Desencorajam a prática de seleção de casais de dupla carreira para seus quadros. Esse conflito de interesses em potencial foi observado principalmente em empresas pequenas, com menos de 100 funcionários.

Em um ponto intermediário, encontram-se certas instituições de ensino. Pesquisa feita em universidades norte-americanas evidenciou que 42,9% de respondentes haviam tomado medidas de precaução contra situações de favorecimento direto de esposos, ao estabelecerem regras específicas contra um funcionário ser chefiado pelo cônjuge (Reed e Bruce, 1993).

O conhecimento sistematizado das qualidades e vicissitudes experienciadas pelos casais de dupla carreira tem contribuído para a implementação de políticas de emprego mais sintonizadas com a realidade dos casais e das organizações, em vez de reações preconceituosas. Esse processo tem sido composto por uma longa história e somente aos poucos os contextos sociais conseguem acompanhar essas mudanças provocadas pelos casais e suas famílias.

Os casais de dupla carreira caminham por um território emocional pouco mapeado. Aqueles bem sucedidos em seus relacionamentos comprometer-se-ão em desenvolver habilidades específicas para lidar melhor com essa nova realidade onde os casais que trabalham fora ocupam cada vez mais setores-chave da sociedade. O’Brien (1994) reconhece o desafio para o futuro dos casais. Consiste em descobrir formas criativas de permitir a mulheres e homens acesso igual à vida pública e privada. Espera-se que um dia a ocupação ou especialização em uma determinada área vivencial não implique a exclusão de um dos cônjuges para a preservação do virtuosismo do outro.

O fato de dados demográficos apontarem para a prevalência de casais de dupla renda e dupla carreira em relação aos ditos casais tradicionais, provoca uma revisão de parâmetros de adequação e normalidade de comportamentos não somente dos cônjuges ao casamento, mas também dos profissionais que oferecem ajuda a pacientes, sejam eles indivíduos ou casais.

Os valores e estereótipos associados aos casais tradicionais compostos por marido provedor e esposa dona de casa vêm perdendo expressão numérica. Relativizam-se e coexistem com outras propostas alternativas de convivência. Casais de dupla carreira, ou no mínimo de dupla renda, deverão ser socialmente aceitos enquanto modelos predominantes de relacionamento afetivo, em comparação com casais de renda única.

Diante desse processo de mutação, quais devem ser os parâmetros de normalidade que formam o quadro de referência do psicólogo clínico? O que deverá ser considerado funcional ou disfuncional em relação ao casamento, à convivência familiar? Como lidar com as queixas apresentadas? As informações preliminares sobre a semelhança entre homens e mulheres na avaliação de satisfação conjugal e profissional, além da maior flexibilização dos papéis de gênero oferecem novos pontos de vista e impõem a necessidade de posições coerentes do profissional. Thomas, Albrecht e White (1984) concluem que à medida que casais de dupla carreira tornam-se prevalentes em nossa sociedade e seus estresses específicos são experienciados por cada vez mais casais, o número de díades procurando auxílio psicoterápico com queixas decorrentes desse estilo de vida deve também aumentar. Os terapeutas precisam estar conscientes dos temas e desafios de relacionamento que esses casais enfrentam, a fim de oferecer uma intervenção mais efetiva.

Com o suporte de conhecimento cada vez mais sistematizado sobre casais de dupla carreira, pode-se depreender que, ao contrário do que Tolstoy afirma, os casais felizes não serão todos iguais em sua felicidade, pois suas particularidades serão reconhecidas. Cada casal feliz, será feliz a seu modo.

 

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Endereço para correspondência
André Maurício Monteiro
SQS 211 Bloco D ap. 504
70.274-040 Brasília-DF
Tel.: +55-61 345-6782
E-mail : andrefocus@hotmail

Recebido 27/04/00
Aprovado 22/09/00

 

 

* Psicólogo formado pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Psicologia Clínica (UnB). doutorando em Psicologia (UnB). Professor de Psicologia na Universidade Católica de Brasília (UCB).
1 Artigo proveniente da dissertação de mestrado do autor, com o título original de - CASAIS DE DUPLA CARREIRA NO CONTEXTO INSTITUCIONAL: UM ESTUDO EXPLORATÓRIO, defendida na Universidade de Brasília (UnB) sob a orientação da Profa. Dra. Gláucia R. S. Diniz.