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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.21 n.3 Brasília set. 2001

 

ARTIGOS

 

Notas sobre as concepções de clínica e ética na refoma psiquiátrica brasileira: impasses e perspectivas de uma prática em construção

 

 

Patty Fidelis de AlmeidaI, *; Núbia Schaper SantosII, **

I Escola Nacional de Saúde Pública - ENSP/ Fundação Oswaldo Cruz-RJ
II Universidade Federal de São Carlos

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O movimento pela Reforma Psiquiátrica no Brasil reacendeu antigas discussões sobre temas e dispositivos destinados a tratar ou simplesmente excluir sujeitos identificados sob o estigma da loucura. Após longo período de reclusão manicomial, questões referentes à clínica, ética e construção de novas possibilidades de atenção em saúde mental vêm à tona, trazendo consigo a exigência de reflexão e de análise sobre nossas práticas.

Palavras-chave: Reforma psiquiátrica, Clínica, Ética.


ABSTRACT

The movement for the Psychiatric Reform in Brazil relighted old discussions about themes and devices in order to treat or simply to exclude people identified under the stigma of the madness. After a long period of asylum reclusion, subjects referring to the clinic, ethics and construction of new possibilities of attention in Mental Health come to light, bringing the need of reflection and analysis about our practices.

Keywords: Psychiatric reform, Clinic, Ethics.


 

 

Ao final do século XVIII, o hospital consolidou-se como o locus privilegiado da formação médica, em detrimento da antiga forma de transmissão de saber por meio dos grandes tratados clássicos da medicina. De acordo com Foucault ,“(...) a clínica aparece como dimensão essencial do hospital. Clínica aqui significa a organização do hospital como lugar de formação e transmissão de saber” (1990:111).

A clínica, tal como a conhecemos hoje, constituiu-se a partir do momento em que a medicina tornou-se uma ciência empírica, a ciência do “olhar”. Esse novo arranjo não representou uma oposição entre teoria e prática, mas sem dúvida, instituíram-se novos modos de conhecer. Com o privilégio do olhar, a medicina não só tornou visível o pensado, como também tornou visível o que antes era invisível. Embora a estrutura de conhecimento da chamada clínica tivesse origem no século XVIII, a passagem da medicina classificatória para a anátomo-patologia tornou possível a geração de um modelo que caracterizou a clínica na modernidade. Nesse sentido, a doença deixou de ser uma entidade descrita metodicamente a partir de uma prática de analogia de proporção das superfícies - gerando uma medicina taxonômica e metafísica - para tornar-se uma realidade identificável, cuja a existência seria visível na profundidade do corpo doente - conformando uma medicina experimental e científica.

Muitas polêmicas têm sido suscitadas a partir do reavivamento em torno das discussões sobre o que poderíamos entender como clínica. Etimologicamente, a palavra originou-se do grego clinos e quer dizer cama ou leito. Portanto, clínica é arte de olhar, de observar e oferecer tratamento a um sujeito que está deitado, inclinado. Leal a define como “(...) um conjunto de práticas, princípios e preceitos que marcou de modo radical o discurso médico na modernidade” (1994: 100). Em “O Nascimento da Clínica”, novamente Foucault (1977) nos mostrou como esta noção foi construída em um tempo e espaço determinados. Já Saraceno (1996) faz uma crítica ao próprio fato de ainda utilizarmos o termo clínica. Para o autor, simbolicamente, esta idéia traz em seu cerne a imagem de um paciente inclinado, sem poder, doente, e de um médico que estaria acima dele, deliberando o tratamento.

De qualquer forma, o tema que nos ocupamos nesse artigo fala de questões que atravessam o campo da clínica, não somente suscitando novas reflexões como também, refletindo-se de forma significativa no campo da ética e da reformulação da assistência em saúde mental.

 

Reforma Psiquiátrica e Clínica: algo de novo?

Observou-se no Brasil, a partir do final da década de 80, um crescimento significativo no que referiu-se à discussão em torno da natureza da clínica na Reforma Psiquiátrica. Neste período, “clínica” e “política” colocaram-se, no campo da Reforma, em posições antagônicas, que reivindicavam para si o caráter verdadeiramente transformador da assistência psiquiátrica. Todavia, percebeu-se, nos anos seguintes, que essa discussão passou a fazer parte do interior do campo. Para Leal, o debate que impôs-se naquele momento buscava encontrar meios para responder “ (...) que tipo de aproximação se podia produzir entre a “clínica” e a “política” elementos do antigo par de oposições” ( 1997: 91). A partir daí, a reflexão sobre a natureza da clínica foi um ponto de referência para pensar possíveis articulações entre esses saberes.

Podemos afirmar que mesmo havendo uma cisão interna ao campo da psiquiatria, a necessidade de manter a dimensão política serviu como traço comum às propostas de reforma da assistência, muito embora tenham sido utilizados meios e instrumentos distintos. Na verdade, esse posicionamento ético-metodológico refletiu as diferentes formas de pensar a “natureza” da clínica. Essa discussão foi marcada sobretudo pelo interesse em reconhecer se a clínica da Reforma, também identificada como clínica “ampliada” havia produzido uma outra forma de pensar a loucura ou se preservava a essência da psiquiatria clássica, de tradição pineliana. Podemos ainda observar que a diversidade em torno das concepções de sujeito, que também refletiu-se na forma como a clínica veio sendo organizada, não eliminou o risco de reproduzir descrições únicas que, tomadas como verdade absoluta, incorreram no risco de reproduzir o mesmo modelo reducionista da descrição fisicalista. De acordo com Leal, o simples fato de considerar a questão política, tanto em um grupo quanto no outro, não garantiu que esse sujeito “(...) deixasse de ser reduzido a uma única descrição” (1997:197).

No que tange às transformações observadas no campo da clínica, que poderíamos relacionar às linhas de tensão que marcaram o movimento pela Reforma Psiquiátrica, Bezerra (1994) também aponta duas direções principais que nortearam esse movimento. Já para Russo (1997) o campo psiquiátrico atual estaria caracterizado por três pontos básicos de tensão, que segundo a autora, em linhas gerais, colocariam em evidência formas divergentes de lidar com o livre-arbítrio, questão crucial para a definição do sujeito moderno.

Refletindo sobre esse tema, a partir dos argumentos colocados pelos autores acima mencionados, de um lado poderíamos identificar uma abordagem, definida por Russo (1997) como psiquiatria “militante”, que prioriza a transformação radical das relações sociais pelo viés político. Assim, fala-se de loucura e sofrimento, uma experiência muito maior que a psicose e quadros clínicos. Inspirada pela Reforma Democrática Italiana e por literatura anti-psiquiátrica, seus objetivos mais gerais poderiam ser resumidos pelo ideal de resgate da cidadania e dos direitos do louco, bem como sua reinserção social.

Esse “sujeito cidadão”, marcado pela afirmação dos princípios de igualdade e liberdade, passou a ser considerado a partir daquilo que é comum a todos os homens e que os caracteriza como membros de uma mesma espécie natural. O indivíduo livre e igual faz parte da natureza, desencantada, livre das crenças religiosas. O livre-arbítrio para o “sujeito cidadão” da psiquiatria “militante” representaria um ideal a ser conquistado.

Essa tendência, que procurou superar a clínica em seu sentido clássico por percebê-la reducionista e normatizadora, acirrou a tensão entre clínica e política, questionando princípios básicos da psiquiatria tradicional como diagnóstico, cura e a idéia de tutela, que imputava ao sujeito objeto de intervenção, a aceitação de um modelo único e universal de subjetividade. Instrumentos e dispositivos que procuravam reconstituir um suposto estado de normalidade, legitimando espaços de exclusão social como os manicômios, passaram a ser alvo de discussões.

Nesse contexto, entra em cena a concepção de autonomia e de gestão cotidiana que, necessariamente, não representaria o fim da tutela, mas imprimiria-lhe um outro significado. A partir dessa discussão, a tutela começa a ser pensada de outra forma:

“Deixa de ter como condição para sua realização a adequação a um modelo universal de subjetividade, deixando conseqüentemente de exigir a exclusão social quando da falência deste propósito. Assim sendo, ela deixa de ser a figura central desta clínica, dando lugar à idéia de autonomia, mesmo que sob cuidados intensivos” (Leal, 1997: 193).

Por outro lado, podemos localizar as experiências que tiveram como foco central a chamada “clínica da psicose”, inspiradas nos modelos gerados pela Psicoterapia Institucional Francesa. Nesta perspectiva, a ênfase recai sobre a especificidade do fenômeno psicótico, que encontra na clínica um espaço privilegiado de transformação. A afirmação que se faz é a do sujeito singular, sustentado pelos pressupostos da alteridade e da diferença. A posição de “sujeito da singularidade” coloca em questão a própria noção de livre-arbítrio, pois suas motivações e desejos são determinados por forças inconscientes, que dão a esse sujeito a falsa convicção de ser senhor de seus atos.

Maior relevância é dada justamente no que distingue cada ser humano e não no que lhe é comum.

Há um interesse particular pelo trabalho terapêutico com o sujeito que sofre, o que implica um interesse por temas relacionados à metapsicologia e à clínica strictu senso. Para Bezerra, na clínica da psicose,“não se negligencia a importância das dimensões social e política envolvidas na questão, mas acentua-se a necessidade de reconhecer que a psicopatologia não pode ser referida de maneira simples a uma determinação qualquer, seja ela biológica ou social, pois é expressão da forma peculiar, própria a cada sujeito, de enfrentamento de um conflito vivido intrapsiquicamente” (Bezerra 1994, apud Leal, 1997:193).

Critica-se a diluição da especificidade do fenômeno da psicose, conformada como estrutura psíquica, no contexto mais abrangente do sofrimento produzido nas relações estabelecidas com o meio social.

Uma terceira linha de tensão a marcar o campo psiquiátrico e a noção de pessoa caracteriza-se pela psiquiatria biológica e pelo sujeito biológico, representante máximo do sujeito da razão, capaz de controlar e erradicar os transtornos mentais.

Pode-se dizer que o século XVIII foi marcado pelo nascimento da categoria de sujeito-cidadão, inspirada pelos princípios de igualdade e liberdade. A partir do século XIX, tem-se início um processo de diferenciação biológica desses iguais e de limite de seu livre-arbítrio. A sociedade do contrato social pressupunha sujeitos livres e iguais e, sobretudo, capazes de mantê-lo. O biológico/natural configurou-se como mais uma fonte fornecedora de elementos que iriam dizer ao sujeito se ele seria ou não capaz de manter o contrato e ainda se teria direito ao livre-arbítrio. Nesse sentido, a diferença é introduzida por elementos pré-sociais, ou seja, da ordem do biológico. Essa dupla posição traz conseqüências jurídico-políticas fundamentais, embora suas justificativas, agora, passassem a estar em um outro plano “ (...) mais fundamental, mais básico, lá onde o livre arbítrio, a vontade, encontram seu limite. Um plano que escapa ao social e não lhe diz respeito” (Russo, 1997:11).

A partir de então, foi possível articular a existência da figura do cidadão de direitos e deveres à existência de alguns indivíduos que não eram tão cidadãos assim. Possuíam menos direitos e deveres, e ao menor sinal de perturbação da ordem pública poderiam sofrer uma redução de sua autonomia em função de tratamentos ou por meio da tutela. Dessa forma, a medicina, em articulação com outros saberes que lhe davam suporte, passou a determinar quem são os “diferentes” e a partir daí, até que ponto teriam direito à igualdade jurídica e política.

Podemos observar que, mesmo tendo estruturado-se de formas distintas, as três experiências chamam a atenção para o fato de que a idéia de clínica é uma construção localizada em um momento histórico determinado e mantém com o corpo social relações complexas. Além disso, cabe ressaltar que as linhas apresentadas, assim como a idéia implícita de sujeito e de clínica que as atravessam, não se colocam no campo da assistência de forma estandardizada. Entre as três posições é possível estabelecer composições e alianças o que permite um certo trânsito entre elas. Assim, como bem define Russo (1997) é perfeitamente possível admitirmos a existência do inconsciente e a conseqüente ignorância acerca de nós mesmos e do mesmo modo não perdermos a crença em nossa responsabilidade jurídica e política enquanto cidadãos. Esse quadro, nada mais faz que refletir a imagem de um mundo fragmentado, atravessado por vários campos de saber e de vida, organizados em esferas e áreas autônomas, o que permite superar uma visão de mundo totalizante e coeso.

 

Ética, clínica e constituição do sujeito moderno

A partir da discussão sobre a “natureza da clínica” no Brasil, sobretudo sob o viés do movimento pela Reforma, podemos articular também algumas idéias referentes a concepções sobre ética, que, analisadas mais amiúde, correlacionam-se, cada uma a seu modo, às três linhas de tensão, sugeridas por Russo (1997). Todos esses movimentos marcaram o campo de organização da psiquiatria e dizem também sobre as construções acerca da concepção de sujeito moderno.

Brandão (1998) aponta que o reavivamento das discussões sobre ética está ligado diretamente à falência de valores da modernidade, a partir de um questionamento da Razão Iluminista e conseqüente valorização da heterogeneidade e da diferença como forças libertadoras da cultura. Nesse contexto, a loucura definitivamente não se enquadrou nos princípios de igualdade e liberdade que marcaram o período de constituição do sujeito moderno.

A razão, conditio sine qua non para o exercício da liberdade, em um movimento paradoxal, só poderia ser restituída a partir da retirada do sujeito do meio no qual estava inserido, e que, em última instância, era o causador da alienação mental. A idéia de cura e a busca de um substrato anátomo-fisiológico para a loucura, que deram a tônica às discussões sobre os rumos que deveriam tomar a recém-inaugurada disciplina psiquiátrica, tiveram como marca os preceitos da ética naturalista que procurava na natureza os fundamentos da vida moral. Para Brandão (1998), essa concepção implicou na crença de que os valores privados constituem-se a partir de determinantes biológicos e naturais, por isso, seriam válidos para todo e qualquer indivíduo e conseqüentemente, independeriam de fatos históricos e sociais.

Com o advento do chamado pensamento pós-moderno, observou-se uma certa falência do modelo ético naturalista, fato este que, acirrou o sentimento atual de crise ética, em que os indivíduos ora buscam novas utopias ora pretendem resgatar valores perdidos (Brandão,1998). Todavia, sinaliza o autor, o modelo da ética naturalista resiste até os dias atuais.

Já para Costa (1996), ética diz respeito a tudo aquilo que é “certo” ou “errado” e seus enunciados são absolutos naquilo que julgam, não possui um caráter relativista. A ética não admite “ (...) preferências conflitantes a respeito do mesmo objeto como sendo a posição moralmente justa” (Costa, 1996:28). Não há possibilidade de escolha, como no caso da estética. Em relação à ética, quem discorda do que é bom e justo está errado. Partindo dessa conceituação o autor propõe três tipos de exercício da ética, existentes no campo da assistência psiquiátrica e que relacionam-se às concepções de clínica.

Uma dessas possibilidades seria a ética da tutela, em que a relação estabelecida entre aquele que cuida e o sujeito assistido se dá a partir de uma definição prévia desse indivíduo como privado de razão e vontade, partindo de dois pontos de vista. O primeiro relaciona-se a descrição fisicalista, em que a conduta da pessoa, sua vontade e razão, são submetidas a causas fisiológicas. Pelo segundo ponto de vista, o sujeito é considerado como privado de razão e vontade pelas conseqüências jurídico-legais atribuídas àqueles que possuem o estatuto de doente mental. Ao modelo de ética da tutela podemos associar os dispositivos da chamada psiquiatria biológica em que o universo das intervenções se dão no campo das técnicas farmacológicas, biológicas e pelas instituições custodiais. Nessa perspectiva, o asilo pode ser citado como a produção mais expressiva dessa concepção ética em que o sujeito torna-se despossuído de razão, de vontade, de liberdade, de escolhas, mas sobretudo, perde sua condição de cidadão.Na ética da interlocução, por sua vez, o ponto a ser ressaltado recai sobre o “(...) sujeito às voltas com ações ou condutas intencionais conflitivas e/ou contraditórias” (Costa,1996: 30). Não que esse sujeito seja privado de vontade ou razão, mas é determinado por uma outra vontade ou razão. Esses princípios baseiam-se na ética da moral privada em que o indivíduo é definido como sujeito psicológico, havendo uma valorização das crenças privadas. A esse a priori ético, presente na chamada “clínica da psicose”, cujos dispositivos são sobretudo, consultórios e ambulatórios, objetiva-se a afirmação da singularidade da psicose e do psicótico por meio do trabalho com os afetos individuais.

O terceiro modelo de conduta ética que pode ser relacionado à assistência seria a ética da ação social, em que o sujeito e o agente da intervenção definem-se como pares, como cidadãos. As ações são guiadas pela vontade de renovar o instituído, abrindo espaços para as ações e atitudes não previstas pela ideologia dominante. Este ideário, que tem como modelo a ética pública, coaduna-se aos princípios da psiquiatria “militante” inspirados nos movimentos da antipsiquiatria e da reforma psiquiátrica italiana, que priorizam o estatuto de sujeito cidadão, pretendendo a equivalência entre virtudes políticas e terapêuticas. Geralmente, a operacionalização desse modelo ético se dá junto àqueles considerados casos graves ou minorias abandonadas pela psiquiatria.

Costa (1996) reconhece que nenhum dos modelos é bom ou mau por si e que, pragmaticamente, trata-se de fazer a melhor escolha conforme as circunstâncias apresentadas. Aponta que em relação à ética da tutela, pode ser legítimo em determinados momentos aceitar que outra pessoa saiba mais sobre meu corpo que eu mesmo e que o aparato jurídico-legal também possa ser respeitável. Entretanto, chama a atenção para aquilo que seria sua conseqüência mais grave: a definição de atributos psíquicos do indivíduo pela genética ou neuroquímica. Segundo o autor, não é por essa via que chegaremos a algum lugar moralmente desejável. Sobre a ética da interlocução ressalta que a ênfase no indivíduo ou no individualismo faz com que percamos de vista determinantes outros que não aqueles intrínsecos ao próprio psiquismo. Quanto à ética da ação social, o autor enfatiza que podemos correr o risco de exacerbar cada vez mais a existência de um mundo no qual se perde a referência ao “nós”, um mundo de tribos, marcado pela construção de uma moral das minorias.

Podemos, então, partir do princípio de que não existe somente uma ética e que de certa forma todas essas possibilidades coexistem dentro do campo da clínica. Todavia, considerar tal diversidade não implica em um mero somatório de disciplinas, pois torna-se necessário a existência de alguma convergência ética. Brandão (1998) não localiza essa “outra ética” em nenhuma disciplina específica, fato este que possibilita o trabalho interdisciplinar. Supõe-se que cada campo de saber crie seu objeto, havendo, contudo, espaços de interseções e confrontos que possam produzir transformações sociais e a criação de novos paradigmas.

Todas essas posições exigem ainda reflexão sobre alguns pontos paradoxais que marcaram o trajeto da assistência psiquiátrica. Relacionando, por exemplo, a discussão sobre o resgate da cidadania do doente mental, que tem ocupado um lugar de destaque no cenário da Reforma Psiquiátrica, e a questão da ética naturalista, ou ética da tutela, alguns autores afirmam que desde a constituição da disciplina psiquiátrica um de seus objetivos fora resgatar a cidadania do louco, bem como reinseri-lo no universo da contratualidade social. A ética naturalista justificava ações que objetivavam restituir ao louco uma “falta”, de origem natural e social, responsável pela perda do estatuto de cidadão. Em um movimento contraditório, ao mesmo tempo em que o estatuto de doente mental deu a esses sujeitos o direito à assistência autorizou também atitudes de violência e destituição de seus direitos ao exercício de uma cidadania plena.

Em contrapartida, o que propõe Brandão (1998) partindo da perspectiva da “outra ética” é a construção de uma nova cidadania, capaz de “(...) acolher pura e simplesmente a alteridade, legitimando-a e inscrevendo-a no campo sócio-econômico-político-cultural deste momento atual do homem” (1998:11). Ressalta ainda que o objetivo não é criar uma ética para cada minoria mas possibilitar a criação de novos encontros, novos dispositivos, novas cidadanias que consigam transformar o sofrimento daqueles que buscam intervenção no campo das práticas psis.

Desse modo, torna-se possível, por exemplo, pensar uma aproximação entre a perspectiva marcada pela psiquiatria “militante” e a “clínica da psicose”, estabelecendo a partir daí um movimento de crítica a uma psiquiatria caracterizada pelo determinismo biológico. Esse diálogo possibilitaria a articulação entre a noção de luta política propriamente dita, e a concepção de luta política “interior”, com objetivos comuns como a luta por liberdade de expressão, existência, escolhas, entre outras.

Ao mesmo tempo, também podemos verificar no campo da psiquiatria um retorno a um objetivismo médico e a uma certa expansão desse saber por outras disciplinas que, tradicionalmente, não faziam parte de seus domínios. Na área educacional, por exemplo, o aparato psicofarmacológico vem ganhando papel de destaque na resolução de questões relacionadas ao processo ensino-aprendizagem. Para Russo (1997), portanto, observa-se hoje, uma ascensão da psiquiatria biológica como força hegemônica no campo da assistência. Segundo a autora, esse fato “(...) aponta para rearranjos no que tange à concepção moderna de pessoa e das polaridades que a constituem: diferença/igualdade; livre-arbítrio (liberdade)/ determinismo” (1997:18). Pode-se ainda dizer que este não é um fato isolado e faz parte de um movimento muito mais amplo de “re-biologização” de discussões pertencentes à esfera do embate político. Marcando esse momento estão as experiências cada vez mais arrojadas, como aquelas que visam desvendar os segredos contidos no DNA humano e que trazem em seu cerne o velho objetivo de traduzir fisicamente atributos morais.

Apesar disso, Russo (1997) alerta que ainda é muito cedo para dizermos que o ideário de um “eu como enigma”, do “sujeito-cidadão”, da singularidade absoluta no plano individual e a igualdade no plano jurídico-político estejam com os dias contados. Nesse sentido, afirma que o aprimoramento do instrumental tecnológico e mais especificamente do aparato psiquiátrico não são capazes de esgotar as tensões e paradoxos que marcam a noção de pessoa. Mesmo porque, a psiquiatria é apenas um dos saberes eruditos para dizer do sujeito e convive lado a lado com outros saberes, eruditos ou populares, que neste mesmo momento vivenciam um processo de “reencantamento do mundo”. O desenvolvimento da indústria psicofarmacológica se faz no mesmo campo de relações que assiste e aprova um reavivamento de concepções místicas, esotéricas e religiosas acerca do que é o universo e sobre quem somos nós, totalmente distintas daquelas concebidas pela psiquiatria fisicalista. Também no campo da assistência, nota-se uma superação técnica do paradigma hospitalar, embora em relação ao gerenciamento de recursos, grande parte ainda seja destinada à manutenção dos manicômios.

É justamente dentro desse universo de poucas certezas e muitos paradoxos que se imprime o desafio de construção de um campo de práticas e saberes capazes de abarcar a pluralidade de determinações que incidem sobre o sujeito marcado pelo sofrimento psíquico.

 

Considerações Finais

Em termos históricos, a década de 80 foi um marco importante se considerarmos que a visão da psiquiatria brasileira teve que defrontar-se com os novos rumos da assistência à saúde mental no país, influenciada pelos movimentos dos EUA, França e, principalmente, pela psiquiatria democrática italiana, que encarava a loucura a partir de determinantes políticos e sociais. A partir daí, começou a ser questionado os pressupostos que sustentavam a noção de cidadania, clínica e ética, ancorados na razão do aufklarüng, incapazes de abarcar a singularidade própria ao mundo da loucura.

Neste contexto, “novas propostas” assistenciais surgiram tendo como desafio construir um lugar possível de existência para a diversidade. Ficou evidente que lidar com a realidade das novas modalidades terapêuticas, como CAPS, NAPS, Lares-Abrigados, entre outros, seria trabalhar com o “novo”, o “inusitado” no interior desses dispositivos. Além disso, surgiu também o ideal de uma clínica “dialética”, em “eterna transformação”, o desafio passou a ser o da “reconstrução da clínica”. Estas palavras caracterizam o movimento pela Reforma Psiquiátrica e refletem o ideal de construção de novas práticas. Ainda assim, as tentativas de produzir um modelo capaz de substituir o velho manicômio em seus aspectos mais amplos, não estiveram isentas de cometer os mesmos equívocos dos antigos dispositivos. Ainda que o que esteja em voga seja o modelo do “sujeito cidadão” ou o “sujeito singular” da “clínica da psicose” e mesmo que o viés político tenha marcado todos os projetos de reformulação da clínica, traduzido pelo ideal de construção de um outro lugar social para a loucura, ainda assim, o simples fato de considerar ou não essas questões não garantiu que esse sujeito deixasse de ser capturado por modelos tão essencialistas quanto aqueles que se pretendia superar.

Consideramos interessante ressaltar, que a despeito dos caminhos e descaminhos trilhados pela Reforma, muitas conquistas estão sendo asseguradas para que a transformação do atendimento em saúde mental se efetive.

Contudo, por tratar-se de um campo ainda em construção, se considerarmos a história recente dessas práticas no Brasil, muito temos a percorrer. Novas experiências, com todas as dificuldades e desafios que o “novo” suscita, especificamente na área com a qual estamos lidando, trazem consigo a necessidade de um constante repensar sobre o que está sendo produzido em nome do ideal de Reforma. Quase uma década após o início das propostas de reformulação da assistência, o campo da atenção psicossocial nos apresenta o desafio da construção de instrumentos que nos permitam acompanhar os resultados e auxiliar possíveis mudanças estratégicas.

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência
Patty Fidelis de Almeida
Avenida Maracanã, n. 617, bloco 1, apt. 203 - Bairro Tijuca
20511-000 Rio de Janeiro - RJ
E-mail: patty@ensp.fiocruz.br e nschaper@starmedia.com
Tel.: +55-21 2567-0830

Recebido 25/05/00
Aprovado 22/09/00

 

 

* Psicóloga. mestranda em Saúde Pública - Escola Nacional de Saúde Pública - ENSP/Fiocruz/RJ.
** Psicóloga. mestranda em Educação Especial-Universidade Federal de São Carlos/SP.