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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.21 n.3 Brasília set. 2001

 

ARTIGOS

 

Museu de Imagens do Inconsciente: considerações sobre sua história

 

 

Gustavo Henrique Dionísio*

Universidade Estadual Paulista J.M. Filho – Assis

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esse trabalho se propõe a recuperar, em parte, fatos importantes na história do Museu de Imagens do Inconsciente, além de fazer alguns apontamentos sobre a repercussão que obtiveram na imprensa da época as exposições realizadas pelo museu dentro do período da década de 40, mais especificamente em relação aos anos de 1947 e 1949, que foram significativos no que diz respeito ao seu processo de gênese, além de relacionar outros dois acontecimentos que, ao nosso ver, são também de suma importância.

Palavras-chave: Exposições de arte, Inconsciente, Arte virgem.


ABSTRACT

This article proposes to recover, partly, important facts in the history of the Museum of Images of the Unconscious, besides doing some notes about the repercussion of expositions organized by the Museum at the forty decade, more specifically in relation to the years of 1947 and 1949, that were significant in the Museum genesis process, besides relating two another events, that, as we think, are also of the highest importance at this matter.

Keywords: Art expositions, Unconscious, Virgin art.


 

 

O Museu de Imagens do Inconsciente tem origem exatamente a 20 de maio de 1952, sendo inaugurado nas instalações do então Centro Psiquiátrico Nacional (que mais tarde nomeara-se Centro Psiquiátrico Pedro II), no Rio de Janeiro, situando-se na ala administrativa do Centro. É evidente que o processo de gênese não se limita: anteriormente a essa inauguração oficial, já houvera algumas exposições, de caráter fundamental, como as quais damos ênfase aqui (as de 1947 e de 1949), no decorrer de sua fundação.

É impossível situarmos uma história do Museu de Imagens do Inconsciente sem mencionarmos o nome da doutora Nise da Silveira. A presença da psiquiatra alagoana é de importância essencial na origem dos estudos acerca da “arte psicopatológica”, tanto no Brasil quanto no exterior. Nise da Silveira exerceu papel principal na militância em defesa dos doentes mentais ao longo de toda sua vida. além disso, foi a idealizadora e fundadora do Museu de Imagens do Inconsciente.

As exposições realizadas em 1947 e 1949 são, ao nosso ver, de importância central na origem dessa instituição. Elas colaboraram de diversas maneiras, como na divulgação pública do trabalho, por meio da imprensa, além de arrecadação de fundos e contribuição de outros setores da sociedade.

Com efeito, o Museu de Imagens do Inconsciente surgiu em conseqüência, em primeiro lugar, da Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação (STOR) instalada no Centro Psiquiátrico Nacional, onde se realizavam trabalhos como pintura, tecelagem, trabalhos manuais etc. Em meio de todo o aparato farmacológico e científico da medicina (como o choque de eletrocardiazol e coma insulínico, limitando-nos nesses exemplos), esse setor era deixado em segundo plano, visto como técnica subalterna de tratamento terapêutico.

Nise de Silveira assume a direção da Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação em meados de 1946. Desde sua chegada ao centro, negou-se a utilizar os métodos psiquiátricos vigentes. Optando por um método mais psicológico de tratamento, Nise da Silveira resolve criar um setor de ateliê de pintura e escultura, inaugurado ainda em 1946, no dia 09 de setembro, dando assim maior visibilidade ao processo de cura que pretendia encontrar com a utilização de atividades expressivas.

Após três meses de funcionamento, já havia material suficiente para que se realizasse uma primeira exposição. No dia 22 de dezembro do mesmo ano foi inaugurada então a primeira mostra de imagens do Centro Psiquiátrico Nacional, contando com a participação de pinturas de vinte adultos e quinze crianças que participavam das atividades da seção.

Devido ao interesse despertado pela mostra, as imagens foram transferidas ao edifício sede do Ministério da Educação, no Rio de Janeiro, facilitando a visitação de todos aqueles que se interessavam pelo tema.

Dados os acontecimentos, em 04 de fevereiro de 1947 foi aberta a segunda (e ao mesmo tempo primeira grande) exposição das pinturas realizadas pelos freqüentadores da STOR; instalada no salão do primeiro andar do Ministério da Educação, cidade do Rio de Janeiro. a mostra possuía aqueles mesmos trabalhos já expostos em 1946 no centro, somados a outras telas recentes, num total de 245 pinturas de adultos e crianças. Essa exposição gerou grande interesse nos meios científicos, culturais e artísticos. vários autores publicaram artigos sobre a mostra, dentre os quais destaco sobretudo Mário Pedrosa no Correio da Manhã, e Quirino Campofiorito em O Jornal. Outros autores como Rubem Navarra, no Diário de Notícias, Marc Berkovitz, no Brazil-Herald e Antônio Bento, no Diário Carioca, também contribuíram com crônicas a respeito dessa exposição.

O crítico de arte Mário Pedrosa teve seu primeiro contato com as pinturas dos pacientes de Engenho de Dentro em conseqüência dessa mostra de 1947. Segundo as palavras do poeta e amigo Ferreira Gullar, desde o início o crítico “deslumbrou-se” (Gullar, 1996, p. 20) com as obras ali encontradas. Em 31 de março desse mesmo ano, Mário Pedrosa pronuncia uma conferência de título “Arte, necessidade vital” (Pedrosa, 1996, pp. 41-48), sob patrocínio da Associação dos Artistas Brasileiros, dando encerramento à exposição. À grosso modo, na conferência Pedrosa nos traz suas primeiras apreciações favoráveis ao componente artístico, ao seu dizer, encontrado nas pinturas daqueles pacientes. As telas e esculturas que ali se encontravam foram transferidas para Museu Nacional de Belas Artes posteriormente.

Já agora em 1949, com a visita de Leon Degand (trazido à STOR por Mário Pedrosa), crítico de arte e então diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo, foi organizada a segunda grande mostra de pinturas dos artistas de Engenho de Dentro. Após essa visita ao setor de Terapêutica Ocupacional do Centro, Leon Degand, ficou “impressionado pela qualidade artística de muitos trabalhos aí realizados” (Silveira, 1966, p. 108), segundo Nise da Silveira, e propôs ao Centro Psiquiátrico que se expusesse os trabalhos produzidos em São Paulo no Museu de Arte Moderna.

A exposição teve seleção de trabalhos feita pelo próprio Degand, com a colaboração de Mário Pedrosa. Regressando à Paris em 12 de julho de 1949, o primeiro fora substituído em seu cargo pelo também crítico de arte Lourival Gomes Machado, que não deixou de encontrar propriedades artísticas nas pinturas em questão. Assim, inaugura-se em 12 de outubro de 1949 a exposição “9 artistas de Engenho de Dentro”1, no grande salão do Museu de Arte Moderna de São Paulo.

Os artistas que participaram da exposição foram Adelina, Carlos, Emydgio, José, Kleber, Lúcio, Raphael, Vicente e Wilson. Pode-se dizer que esses nomes foram os mais consagrados em meio aos pacientes pintores, sobretudo os de Emydgio de Barros e Raphael Domingues. O número de trabalhos expostos somava 179, dentre desenhos, pinturas e esculturas2.

A exposição de 1949, assim como a de 1947, foi motivo de grande repercussão na imprensa da época. Destacam-se as crônicas de Sérgio Milliet no Estado de São Paulo e Quirino da Silva no Diário de São Paulo. Um verdadeiro debate foi travado entre os críticos Mário Pedrosa (Correio da Manhã) e Quirino Campofiorito (Diário da Noite e O Jornal), em específico nessa exposição de 1949. Não poderíamos caracterizar um debate propriamente dito como esse em 1947.

Pedrosa encontrou nas pinturas dos internos de Engenho de Dentro verdadeiras qualidades artísticas, como já dissemos; Campofiorito negou-as. É nesse momento em que Mário Pedrosa introduz o conceito de “arte virgem” (Dionisio, 1999, pp. 60-76), que designaria de maneira inédita a produção artística dos enfermos. Contrária era a opinião de Quirino Campofiorito, que defendia somente a prioridade científica na leitura das obras ali expostas. Negava qualquer tipo de propriedade estética naqueles quadros. Fato importante deve ser lembrado: é também no ano de 1949 que Mário Pedrosa escreve a tese “Da natureza afetiva da forma na obra de arte” (Pedrosa, 1996, pp. 105-177), contribuindo novamente nas discussões acerca dos temas ligados à arte e à psicologia.

Ainda no mesmo ano, essa exposição é transferida para o Salão Nobre da Câmara Municipal do Rio de Janeiro (devido a esforços do poeta e então presidente da Câmara Jorge de Lima) sendo inaugurada a 25 de novembro de 1949, estendendo-se até o dia 10 de janeiro de 1950. Segundo Nise da Silveira, essa mostra foi a que gerou maior repercussão, tanto na imprensa quanto na sua visitação. É notável o número de artigos escritos a respeito do evento na Câmara dos Deputados: Osório Borba e Flávio de Aquino no Diário de Notícias, Yvonne Jean no Correio da Manhã, Antônio Bento no Diário Carioca, além dos outros já citados. É considerável também o número de autores em defesa da capacidade artística dos internos.

À medida que aumenta o número de divulgações dos trabalhos da seção, a idéia de museu vai cada vez mais se concretizando. Assim como as exposições de 1947 e 1949, ainda não se havia cogitado na organização de um museu.

Finalmente, é inaugurado em 20 de maio do ano de 1952 o Museu de Imagens do Inconsciente, apresentando na ocasião uma pequena mostra de obras de diversos internos. O salão onde se situou primeiramente o museu fazia parte da ala administrativa do hospital, numa sala do primeiro andar do Bloco Médico Cirúrgico, ainda em condições muito precárias. A inauguração foi feita pelo doutor Paulo Elejalde, diretor do centro na época.

Já nesse momento sob denominação de Museu de Imagens do Inconsciente, encontramos ainda mais dois episódios de relevância na concretização dessa gênese. Em primeiro lugar, o ateliê participa, em 1957, do II Congresso Nacional de Psiquiatria, em Zurique. A contribuição enviada intitulava-se “A esquizofrenia em imagens”; o tema principal do congresso era o estado atual de nossos conhecimentos sobre o grupo das esquizofrenias. As peças enviadas dividiram-se em cinco salas (do pavimento térreo do Eidgenössische Technische Hoschule, local do evento). A exposição brasileira foi inaugurada pelo professor Carl Gustav Jung, na manhã do dia 2 de setembro de 1957. Segundo Nise, Jung “(...) examinou com vivo interesse essas imagens pintadas livremente num hospital de terra tão distante, documentação crua, sem qualquer retoque, e que por isso mesmo confirmava suas descobertas referentes à estrutura básica da psique.” (Silveira, 1980, p. 18)

Nise da Silveira já se encontrava em Zurique desde abril de 1957, fazendo estudos no instituto C. G. Jung, financiada pelo Conselho Nacional de Pesquisas. Dessa maneira, Nise pôde organizar pessoalmente as exposições do museu, recebendo colaboração da doutora Alice Marques dos Santos3, do doutor Pierre Le Gallais que entre 1954 e 1958 foi assistente da STOR4, e do então pintor brasileiro Almir Mavignier que já fora seu auxiliar no ateliê, de 46 a 51.

Nesse processo de configuração do museu, menciono finalmente outro fato de relevância: trata-se da fundação, em 05 de dezembro de 1974, da Sociedade dos Amigos do Museu de Imagens do Inconsciente (SAMII). A SAMII é uma entidade civil sem fins lucrativos, cujo objetivo é apoiar e difundir os trabalhos do Museu de Imagens do Inconsciente. Na atualidade, a Sociedade dos Amigos do Museu de Imagens do Inconsciente vem sendo presidida pelo fotógrafo Humberto Franceschi. A sociedade já promoveu, dentre vários eventos, palestras, encontros, além da produção de vídeos sobre as questões que permeiam o Museu.

O museu vem hoje contando com a direção de Luiz Carlos Mello, (que fez a curadoria para a mostra do Redescobrimento - “Brasil, 500 anos”), além da presença importante de Gladys Schincariol, Eurípedes Júnior, Vicente Mourthé e Gustavo Galvão.

O acervo de pinturas do Museu de Imagens do Inconsciente é de caráter singular. Ao encontrarmos-no situado num pequeno prédio aos fundos do Centro Psiquiátrico Pedro II, no bairro de Engenho de Dentro, Rio de Janeiro, não podemos fazer face à riqueza de imagens ali expostas. Dentre telas, pinturas e desenhos em cartolina, trabalhos em giz-de-cera e bico-de-pena, notamos uma quantidade surpreendente de atividades expressivas. É estimado em média de trezentos e sessenta mil o número de produções.

Entretanto, é contraditória a situação apresentada, sobretudo no que diz respeito ao material disponível a pesquisa; as autoridades parecem não ter consciência de tamanha capacidade convivendo com tamanha precariedade. Não há tecnologia considerável no museu. Os artigos que contém os relatos acerca das exposições realizadas, para limitar-me nesse exemplo, encontram-se em precárias condições. O arquivo fica disposto em simples pastas plásticas subdivididas. Os originais de certos jornais estão praticamente ilegíveis, sem falar nas cópias disponíveis para consulta. O pesquisador encontra aí séria dificuldade. Não há microfilmagem de documentos quaisquer. Em grande parte dos casos, perdem-se datas de artigos, além dos nomes dos respectivos jornais e autores.

Outro obstáculo diz respeito à conservação das telas e esculturas. Elas se encontram atualmente em uma pequena sala, muito longe de atingir adequado espaço e luminosidade, sem falarmos no método de conservação. É lamentável presenciar o estado de dificuldade de uma instituição com tamanha quantidade e qualidade de material proveitoso para pesquisas diversas5.

Fica aqui portanto a denúncia:

A enfermidade psíquica torna a vivenciar, num outro patamar, uma nova discriminação da sociedade que, desde os primórdios do encarceramento da loucura, se reflete agora nas suas possibilidades de liberdade, por menor que ela seja, ou mesmo como no nosso caso, expressada por meios de uma produção, e por que não dizermos, verdadeiramente artística.

 

Referências bibliográficas

Gullar, F., Silveira,N. (1996). Uma psiquiatra rebelde. Rio de Janeiro: Relume-Dumará        [ Links ]

Dionisio, G. H.(1999). A psicologia da forma e as imagens do inconsciente: de Mário Pedrosa a Nise da Silveira (p. 60-76). Em C. E. Machado (org.). Memória e vida social: Tentativas sobre a experiência intelectual brasileira. Assis-SP: UNESP.        [ Links ]

Mavignier, A. Brasil(1994). Museu de Imagens do Inconsciente. São Paulo: Câmara Brasileira do Livro.        [ Links ]

Pedrosa M. (1996). Obras escolhidas, Vol. II: Forma e percepção estética. Em Arantes, O. (org.) São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo.

Silveira, N.(1966). Vinte anos de terapêutica ocupacional em Engenho de Dentro (1946-1966). Revista Brasileira de Saúde Mental. Rio de Janeiro, Vol. 5, XII no editado, p. 18-159.        [ Links ]

_________. (1980) Museu de Imagens do Inconsciente. Rio de Janeiro: Funarte.        [ Links ]

_________. (1981) Imagens do Inconsciente. Rio de Janeiro: Alhambra.        [ Links ]

_________. (1987) Catálogo da exposição “Os inumeráveis estados do ser”: Quarenta anos de experiência em terapêutica ocupacional. Rio de Janeiro: Paço Imperial.        [ Links ]

_________. (1992).O mundo das imagens. Rio de Janeiro: Ática.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Gustavo Henrique Dionisio
Rua Alípio Correia Neto, 501 ap. 203
19800-000 Assis-SP
E- mail: dionisio@femanet.com.br

Recebido 15/06/00
Aprovado 22/09/00

 

 

* Aluno do curso de graduação em Psicologia da UNESP – Assis. Vem desenvolvendo projeto de pesquisa de iniciação científica como bolsista da FAPESP, sob orientação do prof. Carlos Eduardo Jordão Machado.título: “A Psicologia da Forma e as Imagens do Inconsciente: de Mário Pedrosa a Nise da Silveira”.
1 O prefácio do catálogo da exposição “9 artistas de Engenho de Dentro” pode ser encontrado, além do original, em Silveira, 1966, p. 108-114, e também em Gullar, 1996, p. 91-98. O catálogo foi redigido por Nise da Silveira e publicado naquele ano, em versão íntegra, pelo Jornal de São Paulo, no dia 13 de novembro. Fato importante deve ser lembrado: é também no ano de 1949 em que Mário Pedrosa escreve a tese “Da natureza afetiva da forma na obra de arte”.
2 Ao lado da exposição dos pacientes de Engenho de Dentro, encontrava-se uma pequena mostra de pinturas do italiano Mário Sironi.
3 No texto “Museu de Imagens do Inconsciente – Histórico”, que Nise da Silveira escreve em livro publicado pela Fundação Nacional de Arte, em 1979, a psiquiatra não cita Alice Marques dos Santos como colaboradora, e sim, Maria Stela Braga, que a auxiliou a STOR entre 1956 e 59. (Silveira, 1980)
4 O francês Pierre Le Gallais fez parte de um projeto de intercâmbio de estudantes que poderiam estudar em outros países. Logo quando entrou em contato com o trabalho da STOR, pediu ao diretor do Centro, Maurício de Medeiros, que o transferisse para a seção. Trabalhou junto com Nise inclusive na construção de uma quadra de esportes para os internos, que, segundo Nise, atualmente funciona como estacionamento para carros.
5 Esta observação foi feita no ano de 1999. No momento, o museo encontra-se em processo de reforma de espaço físico.