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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.21 n.3 Brasília set. 2001

 

ARTIGOS

 

Meu paciente não pára de repetir... isso é mau? A concernência da repetição

 

 

Roberto Henrique Amorim de Medeiros*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Durante a história do pensamento psicanalítico a repetição foi abordada através de vários enfoques. A forma impactante e constrangedora como o conceito apareceu na teoria freudiana, fez dela um dos pontos mais intrigantes dentre os conceitos psicanalíticos. Na prática clínica, da mesma forma, quando percebemos que um paciente está repetindo, a primeira impressão que se tem é de que isso estaria sendo prejudicial ao tratamento, um verdadeiro entrave e, com freqüência, lamenta-se essa situação. O presente texto procura resgatar o caráter ambíguo do conceito de repetição e ressaltar um possível aspecto produtivo no caminho da cura, o qual foi denominado de concernência. Propõe, ainda, que escutar a repetição tendo em mente a possibilidade desse caráter produtivo é o que pode permitir que o paciente crie algo de novo para si, interrompendo os processos repetitivos indesejáveis ao seu tratamento, embora tenha de abdicar temporariamente ao prazer.

Palavras-chave: Repetição, Concernência, Psicanálise, Tratamento.


ABSTRACT

During the history of psychoanalytic thought, repetition was approached through several points of view. The concept has appeared in Freud’s theory in a trembling and constraining way making repetition one most intriguing among the psychoanalytic concepts. In the clinic practice, when one perceives that a patient is repeating, the first impression one has it is that repetition is being harmful to the treatment. Frequently this situation is regretted. The present paper tries to redeem the ambiguous character of the concept of repetition. It also emphasizes a possible productive aspect in the way of cure, which was named concerning. It also proposes that listening to repetition, focusing the possibility of this productive character, is what can let the patient being able to create something new to him/herself, interrupting the undesirable repetitive processes to his/her treatment, although the patient has to resign pleasure temporarily.

Keywords: Repetition, Concerning, Psychoanalysis, Treatment.


 

 

Se forem analisados os mais variados aspectos que fazem parte, que permeiam e que influenciam de alguma maneira a vida de uma pessoa, sem esforço observar-se-á que a maioria deles recorre com grande freqüência. Muitos se dão por um contexto social, por uma questão física; alguns são ocasionados pela busca consciente da própria pessoa e ainda outros podem causar surpresa e estranhamento.

Foi a partir de aspectos do tipo desses últimos que o desenvolvimento teórico psicanalítico também não escapou da sensação de surpresa e incompletude que eventos como esses produzem.

Como se sabe, Freud teve de se haver com uma grande lacuna em sua teoria quando observou um fenômeno psíquico que dificilmente poderia ser adaptado ao Princípio do Prazer que, até então, segundo ele, deveria reger a mente humana. A Repetição (Wiederholung), como foi chamada, fazia com que as pessoas reeditassem em suas vidas situações das mais variadas ordens que haviam representado, no passado, coisas supostamente desagradáveis.

O exemplo mais representativo dessa incongruência é o do sonho dos neuróticos de guerra, analisados por Freud (1920/1976). O caráter de representante do desejo que possui o sonho (Freud, 1900/1987) não deveria permitir que um conteúdo traumático viesse aparecer e insistir na vida mental. No entanto, isso ocorria com tal intensidade que lhe foi dado o caráter de uma compulsão (Wiederholungszwang).

Uma primeira saída para o problema foi pensar segundo o modelo do recalque. Os representantes pulsionais recalcados no inconsciente procuram constantemente sua satisfação mediante uma pressão em direção ao consciente e, muitas vezes, conseguem tal intento de maneira indireta ou substitutiva, através de seus derivados já não tão comprometidos com o representante original (Freud, 1920/1976). Esse processo que gera a satisfação e prazer a esse representante é tomado como desprazeroso pelo ego. A conclusão que se afigura é que se encontram aí duas ordens de razão: a do ego consciente e a do recalcado inconsciente, responsável pela compulsão à repetição – a repetição é a do fracasso do recalcamento –, sendo que ambas, e cada qual a seu tempo, agem de acordo com o postulado do prazer.

Entretanto, isso não foi suficiente. Freud (1920/1976) observou que experiências que jamais podiam ser tomadas como agradáveis em nenhuma época da vida da pessoa, pois não traziam satisfação nem mesmo para moções pulsionais recalcadas há longo tempo, também eram alvos do processo repetitivo. Exemplos disso são as explorações sexuais infantis fadadas ao fracasso, devido à realidade de sua condição desenvolvimental, ou os laços de afeição da criança com o genitor do sexo oposto que sucumbe perante a frustração de suas expectativas de satisfação. Tudo isso, freqüentemente é revivido na transferência durante o tratamento analítico, em que as formas mais engenhosas são empregadas pelos pacientes na reedição daquele passado: sentem-se desprezados pelo analista, tentam interromper o tratamento etc.

Frente a isso é que Freud (1920/1976) desenvolve uma linha de pensamento que vai resultar numa outra lógica do funcionamento psíquico com a admissão da pulsão de morte, a qual também pode constituir uma força contrária ao tratamento. Afirma também que eles são determinados por influências infantis primitivas através da observação de que esses fenômenos de transferência dos neuróticos são igualmente encontrados na vida daquelas pessoas normais, a qual parece estar ligada a uma espécie de destino perturbador.

Durante a história do pensamento psicanalítico a repetição foi abordada através de vários enfoques. A questão é que, a forma como ela apareceu na teoria freudiana, impactante e constrangedora, fazendo o seu mestre qualificá-la como demoníaca um número significativo de vezes em obras como Além do Princípio do Prazer e O Estranho, fez dela um ponto ao qual passaram a convergir importantes conceitos psicanalíticos que se tornaram permeados pelo efeito da repetição. Não é sem motivo que Lacan a encare como a novidade freudiana.

Portanto, no campo da repetição, o próprio Freud (1920/1976) incluiu, além dos fenômenos transferenciais, o brincar infantil – no qual as crianças repetem situações traumáticas de uma maneira ativa – e atribuiu-lhe a noção de ordem em O Mal Estar na Civilização (Freud, 1930/1974) que impõe limites e dá um sentido a um conjunto de elementos e chegou ao fato de que a repetição não tem relação com a reprodução. Essas são algumas entre muitas outras tentativas de cercar a questão feitas por Freud e por seus sucessores, dentre eles, Lacan.

Lacan vai igualmente abordar o tema de muitas maneiras e em muitos momentos. Em um deles a questão do acaso é desenvolvida. O acaso parece ser o que mais confere o caráter desconcertante que os eventos repetidos possuem. Normalmente atribuímos a ele os fatos que nos pegam de surpresa ou que parecem escapar à lógica de nossa constituição psíquica.

Lacan irá tratar do conceito de causa. Só há causa daquilo que manca (Lacan, 1988b), diz ele, relacionando essa idéia à pulsação temporal do inconsciente; mais especificamente a hiância. A causa não é confundida aqui com uma simples sucessividade aparente, pois Lacan se refere, na verdade, a algo da rede de significantes que não anda e onde se cria a hiância. É nesse ponto que se entra em contato com o real e é aí que se pode falar de causa, pois esse é o lugar em que aparece o desejo e subverte o sujeito.

É a causa que fará as vezes de articulador entre o inconsciente e a repetição, que pode ser entendida nesse contexto como um encontro falho com o real. Encontro não previsível, um atropelamento do sujeito pelo significante que confere ao evento uma atmosfera desconcertante. Por exemplo, como nos casos em que se pergunta: por que isso acontece comigo? Falta-lhe o símbolo.

Partindo-se da causa, chega-se à Tiquê (deusa grega do destino), referida por Lacan (1985) como tendo um efeito de um acaso que atua como causa. O próprio Freud, no texto Dinâmica da Transferência (1912/1969), menciona duas séries de causações que vão se condicionando mutuamente na vida dos sujeitos: Daimon e Tiquê, o constitucional e o acidental, respectivamente.

Com essa linha de raciocínio, Lacan vai aproximar o acaso desconcertante, até aqui associado à repetição, da noção de trauma que, por sua vez, também golpeia o equilíbrio do sujeito. No trauma, é uma segunda cena que dá eficácia a uma primeira, conferindo-lhe o caráter traumático1. É um significante S2 que retroage sobre um S1 (S1 ¬ S2) e nisso podemos entrever também algo de uma repetição.

Lacan, então, vai tratar o problema, dizendo que a repetição deve ser pensada como uma insistência da cadeia significante. O significante seria o único suporte possível do que é, para o sujeito, a experiência de repetição. Admitamos, pois, essa assertiva para ver o que se pode concluir com ela.

Isso que Lacan diz, refere-se ao postulado de que o que se trata é de uma repetição do fracasso, ou seja, do fracasso do recalque. O significante que nos abate com requinte avassalador é aquele que, de alguma forma demonstrou mais força – ou perspicácia – do que o recalque. Aliás, isso pode nos conduzir a pensar a questão em termos de sintoma, do retorno do recalcado e entraríamos no campo da linguagem. Como assevera Freud, o sintoma tem algo a dizer. Guardemos, por ora, essa idéia.

Continuando sob a lógica da insistência do significante, observa-se que, como já havia sido assinalado, por efeito do recalque, o que vem a ser repetido é sempre distinto, diferenciado, o que deixa transparecer que algo se perde no processo.

Isso vai nos remeter à constante busca ao objeto primordial do desejo, igualmente perdido na época da divisão do sujeito. Portanto, poderíamos introduzir o pensamento de que a repetição viria representar o fracasso da tentativa de reencontrar aquele objeto perdido. O que emerge disso aparenta ser uma espécie de apego do sujeito a certos significantes (Lacan, 1988a) que tendem a utilizar sempre um mesmo caminho para se insurgirem na rede simbólica. Existe algo, pois, que se apresenta na vida psíquica do sujeito com uma magnitude considerável e que não permite simplesmente não ser notado ou ter seu efeito neutralizado. Parece se tratar de algo que concerne ao sujeito.

Tomando como instrumento de análise a dinâmica do recalcamento, há inicialmente um recalque originário, composto por representantes da pulsão constituídos, prova-velmente, por elementos de caráter imaginário e provenientes de uma base filogenética. É nesse complexo de representações que atuará o recalque propriamente dito, do qual o representante ideativo original tentará escapar constantemente produzindo derivados e novas conexões.

Tendo em mente todas as teorizações aqui apresentadas, é possível admitir um vínculo dessas formações originais com o processo de repetição. Freud (1920/1976; p.33) já afirmava que a compulsão à repetição deve ser atribuída ao recalcado inconsciente.

Entretanto, considerando que além do recalque originário ter-se-ía também os produtos de suas novas conexões no inconsciente, seria bem provável que a repetição possuísse mais de um aspecto na sua constituição.

A característica ambígua do fenômeno da repetição é admitida em muitos momentos na literatura psicanalítica. Pode-se encontrar, por exemplo, a repetição sendo mostrada como uma imagem do recalcado e, simultaneamente, como a defesa contra o mesmo em Atos Obsessivos e Práticas Religiosas (Freud, 1907/1976) ou como uma nova tentativa para obtenção de êxito e, ao mesmo tempo, como um retorno a uma posição confortável após o fracasso (Lacan, 1985, p.88). Porém, o que se quer colocar, em relação a essa peculiaridade da repetição, implica algo um pouco diferente. Quando, na clínica, dizemos que um paciente está repetindo, a primeira impressão que temos do fato é de que isso estaria sendo prejudicial ao tratamento, um verdadeiro entrave e assim seguimos lamentando a situação. Acredito ser raro o caso em que ocorra algo de positivo a ser dito sobre a situação proposta.

No entanto, o que repete pode representar algo de importante da estruturação psíquica de um paciente. Algo que insiste e, se insiste, deve constituir-se de elementos importantes, para tal dispêndio de energia.

Ao considerarmos a repetição de uma forma negativa como a que comentamos, deixamos de lado uma possibilidade de escuta valiosa de um fenômeno que parece ter algo a dizer. Mas parece que nem tudo que há na repetição tem esse valor. Retomemos a idéia do caráter ambíguo.

Para isso, evocaremos o conceito de Facilitação de Freud, contido no Projeto, de 1895. Esse conceito, tido como o primórdio das formulações que resultaram na teoria sobre a repetição (Kaufmann, 1996), traz uma questão econômica, levando à afirmação de que tudo na vida mental tende a percorrer sempre um caminho já trilhado anteriormente, evitando, assim, os caminhos novos que impõem uma resistência maior.

Pensamos que esse é o modelo do que ocorre com a maior quantidade de eventos que se caracterizam como repetição. Os significantes que conseguem uma ruptura com a grande represa do recalque acabam escolhendo as mesmas vias para seguir adiante, criando o que se pode chamar de hábito.

Entretanto, enquanto não ocorrer uma superação, isto é, uma elaboração simbólica destes significantes que, como vimos atropelam o sujeito, a repetição emerge, podendo traduzir-se num sintoma. As vias com as quais o sujeito habituou-se a funcionar devem ser transcendidas, pois elas estão destinadas ao fracasso do ponto de vista produtivo da vida mental do paciente, que parece andar em círculos.

Notemos que o processo descrito por Freud como facilitação respeita a lógica do Princípio do Prazer. Portanto, o que estamos descrevendo a partir dele é aquele processo inerente à repetição no qual há um apego do sujeito ao significante, o que invoca um prazer da repetição.

Nesse momento, podemos derivar que por trás de todo o processo haja, na verdade, uma necessidade da repetição. Isso traz a idéia de que algo ali está procurando uma resolução, embora, como percebemos com freqüência, pareça não ter forças para tal coisa. Com isso, aparece novamente a ambigüidade da Wiederholung.

A partir dessa ambigüidade pela qual subsistiria no mesmo processo a faceta da repetição, que simplesmente restitui uma posição anterior, e a que se dá com vistas a uma elaboração, podemos entrever uma primeira justificativa para se ressaltar o aspecto positivo do aparecimento desse fenômeno na clínica.

Dois caminhos são possíveis quando do surgimento de uma repetição e apenas um deles, o mais difícil, pode trazer algo de uma elaboração e, portanto, de produtivo. Dizemos que é o mais difícil, embora pudesse ser dito o mais dolorido, pois, para trilhá-lo, é necessário que se abdique do conforto da via antiga. Conforto que se paga caro, é bem verdade.

Escutar a repetição tendo em mente a possibilidade desse caráter produtivo é o que pode permitir que o paciente crie algo de novo para si, como alternativa para dar conta de formações ainda tão primárias. Nesse sentido é que podem ser interrompidos alguns dos processos repetitivos, embora exista o agravante da dor trazida pela superação ao sujeito.

Usamos o termo dor porque é disso mesmo de que se trata, isto é, de uma suposta renúncia àquilo que trazia um prazer. É nesse aspecto que gostaríamos de deter-nos um pouco mais para chegar, neste ponto, a uma última conclusão.

Lembremos as duas ordens nas quais, segundo Freud (1920/1976), o prazer no aparelho psíquico pode ser dissociado: no inconsciente e no consciente.

No caso em que articulamos como repetição improdutiva, embora haja um suposto sofrimento consciente do sujeito, que se vê atropelado pelo significante, supõe-se que, para o outro sistema, aquelas atividades recalcadas trazidas à superfície possibilitam a satisfação. Por outro lado, no caso de um movimento terapêutico em que a repetição, escutada devidamente em seu caráter de elaboração, fosse transcendida, surgiria necessariamente uma produção de desprazer, dessa vez, no sistema inconsciente.

Não precisamos de muita perspicácia para notar que essa última situação guarda uma semelhança com aquela que tanto mobilizou Freud e que o levou à necessidade de admitir a chamada Pulsão de Morte, quando concluiu que a repetição pode utilizar material do passado que não inclui possibilidade alguma de prazer.

É claro que essa semelhança não se dá de modo estrito, visto que o desprazer de que tratamos, resultante do processo de elaboração, não estaria mais supostamente ligado aos eventos repetitivos. Mas o que se afigura nessa aproximação é a possibilidade de existência de uma concernência que se remete ao sujeito e que se apresenta nos dois casos. Referimo-nos a algo de força maior que se impõe - e faz surgir aspectos desprazerosos em detrimento de toda uma organização mental em relação ao princípio do prazer - exatamente por sua concernência ao sujeito, fazendo com que a cadeia significante insista de maneira peculiar e ele tenha que repetir; ou repita porque ainda não houve elaboração.

Essa maneira de pensar a questão parece razoável dentro dos desenvolvimentos de que se tem notícia sobre o tema e que foram, na medida do possível, confrontados aqui. A admissão de uma concernência ao sujeito, presente no fenômeno repetitivo, vai possibilitar outras implicações e questionamentos a esses desenvolvimentos que se ligam ao tema repetição.

Podemos, por exemplo, presumir que o núcleo dessa força teria sua origem mais próxima ao material do recalque originário; procurar observar como essa concernência influi nas questões chamadas de destino ou, ainda, verificar se possui alguma influência na ordem daquelas repetições em que o sujeito desempenha um papel supostamente passivo.

De qualquer forma, sempre há por trás de uma repetição um envolvimento, tendo em vista que o sujeito aferra-se a ela e só pode desligar-se mediante um processo doloroso. Para definir melhor, concernência seria a instância da repetição diferenciada de uma outra que tende a reproduzir os mesmos caminhos, como na facilitação. A força concernente parece poder ser a responsável pelo início da retirada do material psíquico desse processo improducente, embora confortável. Ela surge na mente com função instigante e instigadora para que um novo caminho seja trilhado, mas mostra-se insuficiente por si só para levar à elaboração, cujo preço é a renúncia, ainda que temporária, ao prazer.

Essas duas facetas por nós consideradas relacionam-se ao que Lacan (1985, p.88) chamou de tendências restitutiva e repetitiva, como sendo os dois termos que se mesclam no âmbito da repetição. Além da tendência simplesmente restitutiva a uma posição anterior mais confortável que, nesse caso, estaria de acordo com o aspecto improdutivo da repetição, há a tendência de continuar repetindo indefinidamente, pelo menos até que algo ocorra. Esse último termo é o que se relaciona ao que queremos dizer em relação à concernência.

Um exemplo a título de ilustração seria útil para esboçarmos no nosso entendimento o que estamos desenvolvendo acerca da concernência e do caráter dito improdutivo da repetição.

Imaginemos a situação hipotética na qual uma pessoa se encontra envolvida numa discussão acalorada sobre um assunto que lhe diz respeito. A discussão se dá num grupo de psicólogos ao qual pertence e se faz necessário tomar uma decisão sobre um assunto polêmico, por exemplo, parar ou não todos os atendimentos de pacientes para aderir a uma greve em busca de melhorias para a profissão. Digamos que a pessoa em questão tenha opinião favorável à greve e posiciona-se firmemente no sentido de interromper os atendimentos, pois só assim o movimento daria resultados, segundo sua maneira de pensar. A questão ética passa a ser abordada freqüentemente durante as argumentações contra a greve e, ao final de algumas horas, a maioria parece convencida ou conformada com a postura de não deixar os pacientes sem atendimento e buscar formas alternativas de participar da greve. Vencida pela argumentação nossa personagem acaba admitindo a posição que parecia ser de bom senso e votando contra a greve. Tão logo sai da sala de reuniões, comenta com um dos colegas: mas eu ainda acho que deveríamos ter parado!

Embora seja necessário guardar algumas reservas quanto ao exemplo, pelo fato de ele ocorrer, em sua essência, no consciente, ilustrase com clareza o que quis colocar sobre os dois termos da repetição. A recorrência das argumentações sobre a questão ética, que justificavam o melhor motivo para não se tomar uma atitude precipitada, representaria um fenômeno na dinâmica do grupo decorrente de uma insistência por parte de argumentos contrários, provavelmente vindos de opiniões como a da personagem e que refletiam seu jeito de pensar. Essa parte caracteriza a instância da repetição improdutiva: a maneira de pensar relaciona-se com as vias que as nossas representações inconscientes se habituaram a percorrer e repetem por ser mais econômico e, por isso, mais prazeroso. Porém, mesmo depois da mudança de opinião, que poderia ser pensada como o momento em que o significante sai de seu ciclo acomodado - e como é doloroso ter de admitir estarmos errados - ainda assim sobra algo de elementar que insiste e faz a personagem mostrar que algo dentro dela ainda dizia que ela tinha razão. Eis a concernência.

Através desse desenvolvimento dos termos da repetição, procuramos evidenciar o fato de esse fenômeno psíquico estar conectado com algo de valioso para o próprio processo terapêutico, podendo desvelar organizações importantes e não apenas representar um entrave, um obstáculo. Porém, é preciso que se certifique uma coisa. Jamais chegaríamos a lugar algum, partindo daquela idéia, se nos contentássemos em manter a repetição de nossos pacientes, porque, afinal, ela estaria nos mostrando onde se encontra o problema. Nesse caso, apenas estaríamos assistindo, acomodadamente, o desfile de significantes igualmente acomodados que, no máximo, estão se referindo a derivados de - sabe-se lá quantas - novas conexões deformadas de um representante ideacional fundamental.

Mas, se pudermos distinguir a carga genética que cada significante que insiste traz de seu representante de origem, cuja natureza não podemos afirmar (aqui poderíamos pensar em recalcado originário ou em um representante ideacional pulsional), teríamos um novo elemento que muito nos auxiliaria e que costumamos desprezar. O que estaríamos fazendo seria voltar o olhar (e o ouvido de ouvir) para aquilo que parece se agarrar ao paciente, que lhe concerne como o que não desiste enquanto ainda seja necessário um último passo.

É isso que talvez ajude a nos mover pelo mundo. É isso que nos mostra mais um indício de que não se trata de buscar o objeto primordial do desejo como se tem a tendência de pensar, mas sim, trata-se de buscar os próprios caminhos. É o que propõe a concernência na repetição.

Como dizíamos no início desse texto, encontramos por toda parte, a todo momento de nossas vidas, exemplos e manifestações de algo que retorna. Nossa própria existência está na dependência disso. A Natureza externa na qual estamos inseridos nos indica a necessidade de que isso ocorra dessa forma e, quando alguém como Freud se interessou para ver o que havia no interior do homem, em algo distinto dessa exterioridade, deparou-se novamente com a repetição. Essas são algumas das coisas que nos levam a crer que aquilo que se repete é a própria vida.

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência
Roberto Henrique Amorim de Medeiros
R. Engº Vespúcio de Abreu, 36/32 - Santana
90040-330 Porto Alegre-RS
E-mail: robertoamorim80@hotmail.com

Recebido 12/06/00
Aprovado 22/09/00

 

 

* Psicólogo. Mestre em Psicologia Clínica pela PUCRS. Especialista em Atendimento Clínico Individual com ênfase em Psicanálise pela Clínica de Atendimento Psicológico da UFRGS.
1 Vide O Homem dos Lobos e a cena primária.