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Psicologia: ciência e profissão

versión impresa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.21 n.4 Brasília dic. 2001

 

ARTIGOS

 

Ética, loucura e normalização: um diálogo entre a psicanálise e Michel Foucault

 

 

Eduardo Pinto e Silva*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Michel Foucault aborda os temas da loucura, saber, poder e ética, tendo como pano de fundo uma crítica à sociedade disciplinar e à normalização operada pela Psiquiatria e Psicanálise. Partindo sobretudo de Joel Birman, o presente artigo argumenta que resgatar o caráter crítico de Foucault em relação à Psicanálise é possibilitar uma prática clínica renovada em relação à psicose e à questão da cidadania. A absorção pela Psicanálise das críticas foucaultianas possibilita uma ação voltada ao cuidado efetivo da loucura, em detrimento de sua ação enquanto saber e exercício de poder sobre a mesma.

Palavras-chave: Foucault, Psicanálise, Normalização (disciplina), Poder, Ética.


ABSTRACT

Michel Foucault approach the subjects of madness, knowledge, power and ethics from critical perspective about disciplinary society and the normalization produced by Psychiatric and the Psychoanaliysis. This article argues, mainly through Joel Birman’s contribuition, that the recover of critical point of view of Foucault in relation of Pychoanalysis could make possible a renovated clinical practice in relation of psycotic disorders and the question of citizenship. The absorption by Psychoanalysis of the foucault’s criticism turn easier the adoption of a new attitude towards an effective action to the care of madness, in detriment of yours action while knowledge and exercise of power over these practice.

Keywords: Foucault, Psychoanalysis, Normalization (discipline), Power, Ethics.


 

 

A consideração às dimensões éticas e políticas das práticas clínicas, sobretudo daquelas voltadas à questão da loucura, não deve prescindir das contribuições de Sigmund Freud e de Michel Foucault.

À primeira vista, haveria uma antinomia entre Freud e Foucault, ou ainda, entre os pilares da Psicanálise e os da filosofia crítica do autor francês. As críticas de Foucault à Psicanálise, bastante explícitas e vigorosas em muitas passagens de sua obra, podem levar o leitor mais equivocado a concluir acerca de uma relação inconciliável entre estes distintos campos do saber. No entanto, não obstante esta “inconciliação” manifesta é possível encontrar possibilidades de uma fecunda articulação entre os projetos freudianos e foucaultianos. Ademais, como nos aponta Birman (2000, p99), a obra de Foucault pode servir como ponto de partida para uma reformulação da Psicanálise e de suas práticas, de modo que estas não somente absorvam, mais intensamente, aspectos éticos e políticos fundamentais à construção de uma Psicologia Clínica afinada à questão da cidadania, mas que também respondam, de forma mais efetiva, aos desafios da atualidade subjetiva e do “mal estar psíquico” que a acompanha.

No presente artigo, a possibilidade de um diálogo atualizado e positivo entre Freud e Foucault será abordado sobretudo a partir da temática da loucura e de sua normalização. O intuito desta empreitada, fundamental à consolidação, cada vez mais necessária, de uma dimensão ética e política às práticas psicológicas privadas e institucionais dirigidas ao tratamento da psicose, torna-se viável quando nos debruçamos sobre aspectos da trajetória intelectual de Foucault e, por consegüinte, às suas considerações acerca da loucura em relação à ética, norma, sexualidade, instituições etc.

 

O Sujeito, a Norma e a Ética na Trajetória de Foucault

O pensamento de Michel Foucault é extremamente rico e diverso para ser reduzido a qualquer rótulo. Não obstante, ele é passível de ser analisado em suas etapas cronológicas, em seus temas-chave, ou ainda, em suas grandes problemáticas.

Segundo Muchail (1992, p.7-14), as distintas etapas do pensamento de Foucault apresentam diferenciações cujas explicitações não implicam em perda de suas conjunções. Tais etapas, comumente denominadas como Arqueologia do Saber, Genealogia do Poder e Genealogia da Ética, podem ser compreendidas como “três campos ou continentes de reflexão”, a saber: epistemológico, político e ético. Estes campos de reflexão se expressam, respectiva e predominantemente, nas seguintes “ordens de problemas”: o da verdade, o do poder e o da conduta individual. Tais ordens de problemas são constantemente perpassadas pelas temáticas das relações entre loucura, sociedade e instituições, assim como por uma reiterada preocupação de Foucault sobre a questão do sujeito.

Para Birman (2000, p.20), que segue trilha semelhante à de Muchail (1992) em relação às considerações das etapas do pensamento de Foucault, este possui uma “tripla modulação metodológica de investigação”. Birman as denomina como Arqueologia do Saber, Genealogia do Poder e Estética da Existência. A loucura, a medicina, a criminalidade, a sexualidade, a linguagem e as formas de discursividade são, para Birman, “as grandes problemáticas que acompanharam Foucault na construção de seu pensamento”.

A sistematização do pensamento de Foucault, no entanto, não é imune a equívocos. A fidelidade às suas complexidades, contradições, diversidades e ambigüidades nos recomenda cautela. Qualquer esforço de sistematização, nesse sentido, pode se transfigurar em categorização indevida.

Assim é importante ressaltar que podem e devem existir outras formas de se referir ao trabalho de Foucault. Além do tripé saber-poder-ética e dos temas-problemas loucura, linguagem, discursividade, sexualidade e criminalidade, a obra foucaultiana também pode ser vista como uma incessante discussão crítica sobre o sujeito, ética e verdade. Ou ainda, como uma incessante discussão crítica sobre o Mesmo (o instituído ou normalizado, inteligível pela episteme e “estratégia dominante”) e o Outro (o potencialmente instituinte, ainda que enigmático e ininteligível pelos jogos de “verdade” cristalizados pelo Mesmo). Ademais, vale ressaltar que o estudo das instituições, locus privilegiado das ações clínicas voltadas à psicose, é algo imbricado à totalidade dos temas, problemas ou demais referências e categorizações supracitadas (Muchail, 1985, p. 196-206).

Foucault, como bem sintetiza Muchail (1992, p.12-13), independentemente da sistematização que possamos fazer de seu pensamento, acreditava que, dentre as exigências cabíveis ao intelectual destacava-se: “conseguir pensar algo que não seja o que se pensava antes” (Foucault, 1984. In: Ewald, 1984, p.74), “ser capaz permanentemente de se desprender de si mesmo” (Foucault, 1984. In: Ewald, 1984, p.81) e “pensar diferentemente do que se pensa e perceber diferentemente do que se vê” (Foucault, 1984, p.13). Assim, toda renovação e novas formas de se “ler” e “sistematizar” Foucault serão sempre bem vindas. O mesmo poderíamos dizer sobre a Psicanálise e suas concepções sobre a esquizofrenia, sobretudo quando temos em vista o referido objetivo de reformulação das práticas clínicas a partir de preocupações éticas e políticas atreladas à questão da cidadania e do mal estar na atualidade.

Muchail (1992, p.10) não se limita a considerar o tripé saber-poder-ética ao referir-se à trajetória de Foucault. A autora, ao destacar uma entrevista do autor francês (In: Ewald, F., 1984, p.74-81), aponta para a importância que este dava aos aspectos intimamente relacionados à questão do sujeito. Dizia Foucault: “tento responder a um problema preciso: nascimento de uma moral, de uma moral enquanto reflexão sobre a sexualidade, sobre o desejo, o prazer”.

Ainda segundo Muchail (1992, p.10), a preocupação com o sujeito se fez presente de distintas formas na trajetória de Foucault. Inicialmente, na Arqueologia do Saber, tratava-se de abordar o sujeito enquanto “curioso objeto” de um domínio do saber. Na Genealogia do Poder o sujeito foi abordado como objeto das estratégias e dispositivos de poder. Posteriormente, na Genealogia da Ética, o foco no sujeito expressou-se de forma ainda mais explícita, desta feita não mais enquanto domínio de um saber ou como objeto do poder, mas sim como elemento ou fio condutor da discussão do “sujeito ético”. Dessa forma, é possível indicarmos uma “centralidade” da discussão do sujeito na obra de Foucault (ainda que seja bizarro falarmos de uma “centralidade” em um pensamento tão rico e multifacetado).

Estes “recortes” de Muchail (1992), instigadores de leituras diversas que se somam às já consagradas sistematizações denominadas como Arqueologia do Saber, Genealogia do Poder e Genealogia da Ética (ou Estética da Existência) também ecoam, vale dizer, nas considerações de Birman (2000, p.54). Segundo este autor, a questão do sujeito e da desconstrução do sujeito cartesiano seriam autênticos pilares do pensamento de Foucault.

Desse modo, enfatizamos que, além das sistematizações de praxe, que vão se consagrando entre notáveis estudiosos de Foucault, vale mencionar a importância da questão do sujeito (acima referida tanto no próprio discurso de Foucault como também no de seus estudiosos). Tal questão esteve sempre atrelada às críticas e às limitadas noções de normal e patológico (noções estas presentes nos saberes médico, jurídico e psicológico, ou mesmo nas Ciências Humanas como um todo) assim como as críticas e às práticas institucionais direta ou indiretamente correspondentes às primeiras (Canguilheim, 1971, p.91-111).

Assim, iremos aqui enfatizar a questão do sujeito e da loucura, ou seja, a deste Outro (que pode ser não só o louco, mas também o errante, o homossexual, o criminoso, o doente, o pobre, o vagabundo, o desempregado, o jovem “perturbador”, o devasso, o pródigo, o libertino, o filho ingrato, a prostituta, o travesti, o suicida, o aidético, o blasfêmio, o insensato, o espírito transtornado etc...) que, face aos conceitos de normal e patológico situa-se numa condição de desviante, ou ainda, que situa-se, face ao saber-poder, numa condição de portador de um discurso ininteligível e desqualificável. Sendo assim, iremos enfatizar o sujeito, ou ainda, acompanhando Foucault (1972, p.79) “este curioso objeto que é o homem”.

Para Foucault, como fica claro nas publicações da História da Loucura (1961), da Arqueologia do Saber (anos sessenta) e da Genealogia do Poder (anos setenta), o saber médico (ao lado de outras modalidades de saber) constituiu um vigiar e punir sobre a loucura e demais figuras Outro. Tal se concretizou e se concretiza tanto em práticas institucionais como também no tecido do corpo social e nas suas modalidades de subjetivação.

Na Idade clássica o lugar do “louco” se transporta da nau (Renascimento) para o hospital. A loucura e seus sintomas são confinados e vistos como ininteligíveis ou sem sentido. O saber médico compreende a loucura como desrazão e estabelece o germe da dicotomia entre o normal e o patológico. Esta dicotomia caracterizar-se como pilar “legitimador” das ações voltadas à “eliminação” da dita “insanidade” (Foucault, 1961, p.165-176; 1992, p.113-128).

Já na Idade Moderna a loucura, antes destituída de qualquer valor inteligível, “ganha” sentidos múltiplos e um locus próprio de medicalização: o hospital psiquiátrico. A loucura deixa de ser vista como desrazão e passa a ser compreendida definitivamente como doença mental. Assim, abrem-se as portas para a sua escuta, sobretudo, quando no século XIX efetivam-se os entrecruzamentos entre Psiquiatria e Psicanálise. É nessa etapa histórica que se dá sua normalização (no sentido mais abrangente, condizente às afirmativas da Genealogia do Poder): não se trata mais de somente produzir saber(es) sobre a loucura, fronteiras entre o normal e patológico, mas também de produzi-la enquanto tal, de incluí-la positivamente no terreno do exercício do poder. A confissão, o jogo de verdade, que reconhece o humano como homem de desejo, são para Foucault (1992, p.113-128 e p.209-227) o pilar do novo olhar do poder sobre o sujeito.

Assim, o olho do poder institui uma nova Casa dos Loucos não mais limitada à concretude dos muros e das ações dos hospitais da Idade Clássica. Esta nova Casa dos Loucos, embora também concretize-se no hospital (psiquiátrico), alastra-se nos interstícios do tecido do corpo social, nos seus hábitos, discursos e nas suas modalidades de subjetivação. Configura-se, de tal modo, uma nova “geografia da verdade” acerca da loucura, ou ainda, novas formas de exercício de poder sobre a mesma (Foucault, 1992, p.113-128). Esta ampliação do olhar do poder produz “verdades”, ou ainda, uma autêntica normalização disciplinar que se agrega e ao mesmo tempo supera a mera dicotomia entre o normal e o patológico (Foucault, 1979, p.46-54). Trata-se, como diz Foucault (1977, v.1), de um “poder positivo” que não somente reprime, mas que sobretudo constitui, “gerencia” (aspas minhas) e manipula de forma mais sutil, eficaz e econômica a vida ou mais especificamente, a vida psíquica, a vida sexual, as identidades e os conflitos. Sendo assim, o olho do poder instaura, na Idade Moderna, um poder que exerce-se por “transparências” um “sistema ótico” de visibilidade organizada que pratica, nas palavras de Foucault (1992, p.217) uma “dominação por iluminação”.

 

Foucault e a Psicanálise: Questões Epistemológicas e Institucionais

Para Foucault (1977, v.1), a confissão e a Psicanálise são peças fundamentais sobre a geografia da verdade acerca da loucura. Ao tecer suas inúmeras críticas à Psicanálise, Foucault questiona incessantemente, explícita ou implicitamente, a concepção edipiana do sujeito. Tal se dá de forma explícita em algumas entrevistas (vide Ewald, p.74-81, 1984; Foucault, Ditos e Escritos, 1984 . In: Motta, p.300-312, 1999), assim como na seguinte passagem de “O Uso dos Prazeres” : “através de que jogos de verdade o ser humano se reconheceu como homem de desejo?” (Foucault, 1984, p.12)

A passagem da Idade Clássica para a Idade Moderna também é abordada por Castel (1978, p.249-274). Trata-se, segundo este autor, de uma passagem da “idade de ouro do alienismo” para o que ele denomina como “aggiornamento”. Para Castel, o poder se infla e se esconde por detrás de sua visibilidade normalizadora. Castel comunga com Foucault em torno da idéia da produção de corpos dóceis politicamente e úteis economicamente, quer seja no lidar com a loucura, quer seja no lidar com a “normalidade”. Sua crítica dirige-se sobretudo às instituições psiquiátricas do “aggiornamento”. Analogamente, sua crítica à Psicanálise dirige-se mais ao “psicanalismo” (leia-se Psicanálise como instituição) do que à Psicanálise enquanto corpo teórico (vide Chaves, 1986, p.10).

As críticas de Foucault e de Castel à Psicanálise não se limitam, porém, aos aspectos institucionais da mesma. Para ambos a Psicanálise sofre de uma famialismo exacerbado, uma edipinização excessiva do sujeito, uma equivalência apressada entre verdade sexual e verdade subjetiva etc... A confissão, presente na possibilidade de escuta do psíquico, das fantasias, da sexualidade e da loucura transforma-se, para ambos, em dispositivo de poder característico de uma sociedade normalizadora ou disciplinar (Castel, 1973 cit. Chaves, 1986, p.121-126; Foucault, 1977, p.73-123).

Independentemente do julgamento ou apreciação a respeito de tais críticas é notório o fato de que, de forma mais ou menos integrada e/ou repudiada, a Psicanálise adentra os campos do saber (leia-se discursos) e do fazer (leia-se práticas institucionais) relativos à loucura na era do “aggiornamento”.

Nas práticas institucionais inovadoras na Itália (Emilia Romana, Trieste, Parma, Gorizia, Colorno etc) com Mario Tomasini e Franco Basaglia, a Psicanálise é mais veementemente repudiada, assim como todos os saberes psi (Basaglia, 1993).

Já nas práticas institucionais na França, como em La Borde (Clínica La Borde, 200km de Paris, centro-sul) com Oureau e Felix Guatarri, a Psicanálise é criticada, mas não exatamente ignorada. As propostas de esquizoanálise e as postulações sobre o anti-édipo de Guattari e Deleuze, presentes no nascedouro da Clínica de La Borde, criticam a análise de acento neurótico-edipiano de Freud sobre a paranóia, assim como suas lacunas e preconceitos em relação à esquizofrenia. Tais críticas, no entanto, tomam sempre a Psicanálise como contraponto às suas próprias afirmativas (Deleuze, 1992, p.209-226).

No Brasil, em São Paulo (CAPS - Associação Franco Basaglia), com Jairo Goldberg e em Santos (Prefeitura Municipal) com David Capistrano, Telma de Souza, Antonio Lancetti e Aldaiza Sposati, estruturaram-se práticas institucionais também inovadoras que, se por um lado superaram o conhecimento psicanalítico, por outro lado não deixaram de integrar seus traços transgressivos às novas propostas de atendimento à loucura (Goldberg, 1994).

Assim, cabe a seguinte indagação: afinal, uma escuta efetiva à loucura seria somente um dispositivo disciplinar? Não haveria na Psicanálise um ideal (semelhante ao de Foucault) de se “conseguir pensar algo que não seja o que se pensava antes”, ou ainda, de se “pensar diferentemente do que se pensa e perceber diferentemente do que se vê”? (cit. Muchail, 1992, 12-13).

Ou ainda: o princípio psicanalítico e freudiano de crítica sobre a moral sexual e sobre os infortúnios da sociedade “civilizada” não subsistem como forças transgressivas, independentemente de suas deturpações disciplinares inerentes ao Psicanalismo ?

Para responder a tais indagações vale mencionar que, no pensamento de Foucault, a Psicanálise é objeto de crítica mas também interlocutor permanente, “em surdina” ou em “viva voz” (Birman, 1992, p.10). Ademais, Foucault passeia do elogio à crítica em seu “diálogo” com a Psicanálise (Chaves, 1986, p.V). Esta é, em alguns momentos, vista como passível de se conciliar ao seu projeto de desconstrução do sujeito cartesiano. Tal vislumbramento de Foucault em relação a uma interssecção entre seu pensamento e a Psicanálise expressou-se sobretudo em As Palavras e as Coisas (Birman, 2000, p.54). Foucault (1981, Ditos e Escritos, p.298-299. In: Motta, 1999) também chega a aproximar-se da Psicanálise e a elogiar Lacan, apontando para as possibilidades que este reveste ao saber psicanalítico ao apontar a linguagem como “uma forma de exterioridade” do sujeito (e, portanto, não mera expressão das instâncias psíquicas do sujeito do desejo). A linguagem, como exterioridade do sujeito, já havia sido considerada por Foucault no Prefácio de História da Loucura (Foucault, 1961, p.VII-VIII). Por outro lado, Foucault também chega a visualizar Lacan como um herdeiro de Freud e de suas proposições supostamente similares ao da tradição e da filosofia do sujeito (Birman, 2000, p.93). De qualquer modo, não resta dúvida que, ao longo da obra foucaultiana, a crítica sempre se apresentou mais explícita do que os elogios ou convergências, estes mais pontuais e tímidos.

A Psicanálise na Arqueologia do Saber (História da Loucura, 1961; Nascimento da Clínica, 1963) e na Genealogia do Poder (História da Sexualidade - a vontade de saber, 1977) foi duramente criticada. Foucault questionou o totalitarismo do saber acerca da loucura no primeiro caso e o reducionismo do sexual (o sexualismo familiar-edípico e a hipótese repressiva) no segundo. Para Foucault (1977, p.9-18), não há repressão sexual, mas sim incitação a se falar sobre o sexo, a criar saberes sobre o mesmo, de tal forma a intensificar a normalização e disciplinarização dos corpos e subjetividades.

Vale também mencionar uma crítica irônica ao Édipo presente em As Verdades e as Formas Jurídicas. Para Foucault (1974, p.103-112), se fosse o caso de tratar-se de um drama familiar, por que Sófocles teria intitulado sua peça Édipo Rei e não Édipo Pai ? Segundo o autor, trata-se de um drama político, de uma disputa de poder e não exatamente de desejos incestuosos inconscientes de caráter sumamente familiar...

Para Birman (2000, p.96-100), no entanto, seria apressado opor cabalmente a Psicanálise ao pensamento de Foucault. Segundo este autor, o pensamento de Foucault, sobretudo em sua Genealogia da Ética, é um convite a uma reformulação da Psicanálise, assim como um desafio para que esta e suas ações estejam a serviço de um cuidado de si (em oposição ao saber de si); de uma estilística da existência (em oposição a um saber científico sobre a subjetividade - que sufoca toda e qualquer singularidade); ou ainda, de uma crítica social (em oposição à sua mera reprodução).

Portanto, somente o engessamento concomitante da Psicanálise e do pensamento de Foucault é que ofuscaria as possibilidades - vivas e hoje ainda tão mais necessárias quanto intensas - de uma interlocução fecunda da primeira com o “projeto filosófico entreaberto por Foucault” (Birman, 2000, p.98). Ademais, nem mesmo as críticas de Castel (O Psicanalismo) e de Deleuze e Guattari (O Anti-édipo) à Psicanálise ofuscam tais possibilidades. O que parece ser necessário, ou ainda, condição sine qua non para tal empreitada é a abertura à compreensão do sujeito ético tal qual formulado por Foucault (Dreyfus, 1995, Apêndice, p.279-291), assim como a superação dos reducionismos do sujeito do desejo (presentes em Freud e hipostasiados no psicanalismo).

Assim, compete à Psicanálise transgredir o campo da normalização e efetivar o que é um de seus maiores méritos, senão vocação, a saber: reformular discursos, de tal modo que se viabilize um “conseguir pensar algo que não seja o que se pensava antes”. É somente de tal modo que será viável se pensar sobre um inconsciente que não é restrito às dimensões dos complexos e relações familiares, mas que engloba o social, o “pensamento do fora” e, last but not least, práticas de contra-poder. Aquelas reformulações e estas práticas, vale ressaltar, podem se construir em prol da ética e em detrimento da norma, ou ainda, acompanhando Birman (2000, p.97), em prol do “cuidado de si” e em detrimento do “saber de si”. Projeto este viável (desde que realmente desejado) pois Foucault, embora tenha nos “inundado” com suas afirmativas acerca das disciplinas, poder, vigilância, normalização não nos deixou órfãos de desejos mais radicais (propriamente históricos, políticos, não edípicos) tal como inevitavelmente atestam os termos “sujeito ético”, “contra-poder” e “poros do poder”.

 

Conclusões:

A possibilidade de um diálogo entre a Psicanálise e Foucault que resulte em formas renovadas de práticas clínicas de caráter ético e político só será possível se nos afastarmos do confronto político e científico entre estes dois campos do saber em prol de uma observação mais afinada aos seus pontos de convergência e cumplicidade. Dito de outra forma, é necessário retirar o debate entre Psicanálise e Michel Foucault da luta que caracteriza o “campo científico”. Conforme nos assinala Bourdieu (1983, p.136), o campo científico é o espaço de jogo de uma luta “inseparavelmente política e científica”, onde os elementos inseridos neste espaço disputam a obtenção de capital científico e/ou simbólico, legitimidade e/ou prestígio. Para Bourdieu, os elementos da disputa são concorrentes e clientes, adversários e cúmplices.

Assim, partindo conjuntamente das propostas de Foucault presentes em sua Genealogia da Ética ou Estética da Existência - tal como denominam, respectivamente, Muchail e Birman - assim como das conceitualizações psicanalíticas sobre o narcisismo, poderíamos afirmar que o necessário diálogo entre Psicanálise e Foucault só será possível quando, de forma amadurecida, nos afastarmos das adversidades entre os dois campos do saber, ou seja, quando nos colocarmos em prol de suas possibilidades de cumplicidade em detrimento de seus “narcisismos de pequena diferença” (Costa, 1991, p.109-136).

Ortega (1999, p.11-20) nos assinala com clareza que a proposta ética de Michel Foucault acentua a importância da amizade enquanto reinvenção das formas de relacionamento social. Aos propósitos que aqui se delineiam tal mensagem abrange duas vertentes: por um lado o relacionamento social entre dois campos do saber, que se abrirem mão de suas divergências em prol de suas preocupações éticas e humanas compartilhadas poderão potencializar seus ideais de transformação social; por outro, tal mensagem coaduna-se à proposta de tomar a loucura ou psicose não como objeto de saber, mas sim como realidade psíquica merecedora de cuidado e de investimento relacional por parte dos profissionais que com ela se deparam. Propostas como as de acompanhante terapêutico, que absorvem a noção de “amigo qualificado”, conformam-se a tais preocupações, de forma que o atendimento à psicose se desloca, em tais experiências, de uma relação entre o suposto saber e seu objeto de análise para uma relação humana, baseada sobretudo numa ética da amizade (ainda que não despojada de compreensões analíticas que podem servir como mecanismo intensificador de uma boa qualidade relacional).

Se para Freud e muitos psicanalistas o pacto edípico é o ponto de partida para a estruturação psíquica e constituição da subjetividade, não é nunca demasiado relembrar que, para os psicanalistas preocupados com a questão social e admiradores de Foucault – como Jurandir Freire Costa, Joel Briman e Helio Pellegrino – o pacto edípico não basta para que haja uma viabilidade de um lugar social para a singularidade psicótica e demais figuras Outro supracitadas. Como nos disse sabiamente Pellegrino (1983), o pacto edípico só se consubstancializa quando em um contexto de pacto social. Sem a sociedade e seus saberes reverem suas conceitualizações, valores e atitudes, não haverá pacto social possível. O diálogo profundo e amigo entre Psicanálise e Foucault, em prol de renovadas práticas clínicas, depende deste pacto social há muito tempo evocado por Pellegrino.

O diálogo entre Psicanálise e Foucault também não deve esquecer-se das contribuições de Mezan. Este autor faz uma interessante análise entre as discussões, encontros e desencontros entre estes dois campos do saber. Mezan (1985, p.96) enfatiza a necessidade do psicanalista de tomar a sério as postulações de Foucault, encarando a “angústia do debate”, ao invés de ceder a um “impulso defensivo”, fechando-se em copas fazendo “de conta que não ouviu”. Não obstante, em outra passagem enfatiza alguns equívocos de Foucault em suas severas críticas aos “reducionismos psicanalíticos”. Mezan questiona não exatamente o argumento foucaultiano, mas sim a extensão por vezes demasiada dos mesmos. Segundo o autor, é lícito a crítica em relação ao famialismo edípico e à sexualidade enquanto dispositivo de poder. No entanto, argumenta que dar possibilidade de fala ao inconsciente e às suas formulações aparentemente ininteligíveis não se trata de mera “sexoterapia verbal”, “murmúrio de div㔠ou exercício de confissão totalmente indiferenciado das práticas de poder médicas e pastorais dos séculos passados (Mezan, 1985, p.114-123). Assim, considera que a arqueologia da Psicanálise de Foucault é algo inacabado e que necessita ser sempre reconsiderado. Para Mezan (1985, p.123), ainda resta responder o que permite a Psicanálise ser, concomitantemente, uma formação da cultura e uma crítica desta e das imagens por ela forjadas acerca de si própria.

Concluindo, é necessário nos atentarmos às propostas de Birman (2000), de tal modo que a Psicanálise, a partir de Foucault, constitua-se progressivamente como um cuidado de si – leia-se ética – em detrimento de um saber de si – leia-se exercício do poder. Tal proposta é também feita por Mezan (1985), ainda que em outros termos. Para este, a Psicanálise, a partir de Foucault, deveria cada vez mais posicionar-se como “abertura de si a si” através da >“abertura de si ao outro e do outro a si próprio”

O desafio está lançado. Aos que almejam absorvê-lo, em prol de questões éticas e políticas baseadas em um ideal de pacto e de transformação social, trata-se - parafraseando Birman (2000, p.100) - de “pegar ou largar, nesta nova aposta que nos é oferecida pela roleta do destino”...

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência
Eduardo Pinto e Silva
Rua Abílio Vilela Junqueira, 540
13085-040 Campinas - SP
Tel.: +55-19 3287-7625
E-mail : dups@ig.com.br

Recebido 14/03/01
Aprovado 18/05/01

 

 

* Psicólogo pela PUC-SP com cursos de especialização pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e de extensão universitária pela Faculdade de Medicina da USP. Mestre em Educação, Sociedade e Cultura, pela Faculdade de Educação da UNICAMP e doutorando na linha de pesquisa de Gestão e Saúde Mental.