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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.21 n.4 Brasília dez. 2001

 

ARTIGOS

 

Psicologia clínica, um novo espetáculo: dimensões éticas e políticas

 

 

Édio Raniere da Silva*

Universidade Regional de Blumenau

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A Psicologia Clínica é encenada num palco despido de suas tendências patologizantes. Os atores, ao invés de serem meros reprodutores passivos de um roteiro, são criadores do seu próprio espetáculo. Esta monografia propõe refletir sobre possíveis revoluções moleculares através de micropolíticas, de um novo ethos, de olhares desnaturalizantes sobre os sujeitos e da própria maneira de escrevê-la. A definição dos lugares de atuação, a ética, a política e o corpo da psicologia clínica constituem os eixos deste trabalho.

Palavras-chave: Ethos do cuidado, Corpo clínico, Espetáculo.


ABSTRACT

The Clinic Psychology is showed in a stage striped of sick tendencys. The actors, instead of been simple inactive reproducers of a itinerary, are creators of their own spectacle. This monografhy propose a reflection about possibles molecular revolutions through micropolitics, from a new ethos, from a desnaturalise perspective about the subjects and from the own form of write it. The definition of the atuation areas, the ethics, the politic and the body of the clinic psychology compose the axle of this academician work.

Keywords: Ethos of care, Clinic body, Spectacle.


 

 

Abrem-se as cortinas. No palco, quatro paredes brancas fechadas em torno de si mesmas, dentro delas sabe-se que há duas pessoas: uma que sofre e outra que lhe suportando o sofrimento promete curá-la. Após uma hora aquela que sofre sai da sala e torna-se espectador. Outro ator que antes era espectador sobe ao palco adentrando a sala e ficando ali por mais uma hora, e assim continuamente.

Aos poucos a platéia se cansa. Surgem vaias e contestações: “Quero o meu dinheiro de volta!”; “Que palhaçada é esta?”; “Cadê o espetáculo prometido?”

Enquanto isto acontece, sobem ao palco alguns atores. Estes, inconformados com a situação, conversam entre si:

Comecemos, logo no primeiro ato, buscando por uma melhor definição para o espaço da psicologia clínica. Sim! Vamos descobrir onde habita a identidade desta linda princesa de olhos azuis das práticas psi. Neste ato nossa questão será: O que define a psicologia clínica como psicologia clínica?

Mas para respondermos à esta questão vamos precisar, é claro, refletir sobre confusões típicas que se fazem a respeito desta definição. Como as que reduzem psicologia clínica ao espaço físico onde alguns psicólogos trabalham – consultórios. Confusões como as que entendem psicologia clínica por atendimento particular; quanto ao regime de trabalho do profissional. E ainda outras confusões como a de classificar psicologia clínica e as demais práticas psicológicas, opondo uma em relação às outras.

Após demonstrarmos a fragilidade destes rótulos sobre a psicologia clínica, lançaremos a ética como proposta de definição e faremos uma breve exposição para que se entenda ética como relação.

Fecharemos as cortinas deste ato e abriremo-las para o segundo. No palco haverá uma cena congelada que lentamente criará movimentos, dando continuidade ao espetáculo. Pois se o lugar da clínica define-se por sua relação com o outro, e existem várias maneiras do psicólogo se relacionar com este, precisamos escolher uma que sustente sua prática. Sustentaremos que o ethos do cuidado é nossa melhor escolha: se fazer clínica não é estar entre quatro paredes brancas promovendo a cura, entendemos que a função desta seria, justamente, cuidar de pessoas, cuidar de problemas. Enquanto argumentamos tal escolha, lentamente fecharemos as cortinas.

No terceiro ato, antes mesmo de tocarmos nas cortinas, já estaremos cientes de que a ética é o que determina as atuações do psicólogo e que toda ação é uma atitude político-social. Nossa questão será pensar a possibilidade de uma política de intervenção a partir deste ethos do cuidado.

Para o quarto e último ato não fecharemos as cortinas. Nosso corpo cênico se movimentará pelo palco arrastando uma grande faixa anunciando que, além deste ato promover uma reflexão sobre as micropolíticas do cuidado, também nele revelaremo-nos a todos: afinal, quem somos nós – corpo clínico – que ao mesmo tempo somos corpo na clínica e o corpo da clínica? Ou seja, quem é o corpo deste espetáculo?

Nossa intenção com esta peça será pensar uma psicologia clínica comprometida ética e politicamente.

Tenham todos um bom espetáculo...

 

Primeiro Ato: Lugares

Pensar o espaço da psicologia clínica em meio a tantos outros – psicologia do trabalho ou organizacional, psicologia educacional e/ou escolar, psicologia experimental, psicologia do desenvolvimento, psicologia social etc. – não se resume em tarefa das mais fáceis. Fazer clínica é um fazer extremamente amplo, com interfaces que acabam sempre por se mesclar a outras praxis e saberes.

Neste ato, com base no texto de Luís Cláudio M. Figueiredo – Quem é o Psicólogo Clínico? – vamos sobrevoar algumas paisagens em busca de algo que defina a psicologia clínica enquanto tal. Queremos saber o que a destingue, onde estaria sua suposta identidade, e por que a confundimos tanto com formas outras de se relacionar com os saberes de nossa ciência.

Começaremos com as confusões mais comuns, as que dizem respeito: ao lugar onde os sujeitos são atendidos pelo psicólogo clínico; aos próprios sujeitos em atendimento – afinal quem são eles? ; e ao profissional que os atende.

A primeira confusão diz respeito ao lugar (o clínico é o que atende em consultório particular); a esta confusão está associada uma outra que diz respeito à clientela (o clínico é o que atende clientes particulares sejam indivíduos um a um ou em grupo, sejam famílias); finalmente, caberia assinalar a confusão que diz respeito ao regime de trabalho (o clínico seria um profissional liberal). (Figueiredo, 1995: 35-36)

Confusões como estas podem ser facilmente desmontadas se simplesmente observarmos programas como o PSF (Programa de Saúde da Família), serviços de atenção protegida e de atenção à população de rua, o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), programas de redução de danos, entre inúmeros outros que diariamente ganham espaço em rede nacional. Neles faz-se clínica. Seu espaço é a rua, a casa do usuário ou qualquer outro lugar propício que a comunidade disponha, ou seja, não são mais quatro paredes brancas fechadas em si mesmas. As pessoas são assistidas pelo SUS (Sistema Único de Saúde), pela prefeitura através de secretarias como de assistência social e/ou da saúde, o que nos mostra uma clínica como um serviço não particular; e o psicólogo aí é um funcionário público.

Outras confusões se fazem quando buscamos, através da oposição de uma prática em relação às outras, classificar os lugares destas praxis. Figueiredo (1995) faz uma distribuição didática destas tentativas de definição, dividindo-as em três organizações opositivas:

a) Oposição entre teoria e prática – Psicologia básica X psicologia clínica.

b) Oposição entre cura e prevenção – Psicologia clínica X psicologia organizacional, educacional e escolar.

c) Oposição entre territórios de saberes – Psicologia social, experimental etc. X psicologia clínica.

A primeira organização, que opõe teoria e prática, vamos desmanchar recordando o início da psicanálise. Sabemos que Freud não acessou uma teoria pronta que lhe permitisse estruturar uma prática. Ele construiu um novo espaço clínico enquanto edificava sua teoria. Além do que a “(...) psicanálise, para ficarmos só com este exemplo, jamais foi aplicação de conhecimentos, mesmo quando um corpo teórico psicanalítico já estava elaborado”. (Figueiredo, 1995: 36).

Para a segunda organização, que opõe cura e prevenção, resumidamente poderíamos dizer que não é a prática que determina a ação. Prevenir e/ou curar não são privilégios delegados a nenhum espaço psi em especial. Basta lembrarmos que existe tanto uma prática – ou pelo menos uma intenção – ortopédica/curativa na psicologia escolar, organizacional, clínica etc., como uma preventiva.

E por fim, para a terceira, que opõe os territórios de conhecimentos psi, basta refletirmos sobre a impossibilidade de se pensar um psicólogo clínico que não seja social, pois toda e qualquer ação deste profissional, mesmo que seja executada sobre um único ator, será uma intervenção social. Isto porque este ator é constituído histórico-socialmente, ele existe em suas relações e por suas relações. Todas as máscaras que ele utiliza para representar a si mesmo são inventadas dentro de uma processualidade do vir a ser como possibilidades para sua atuação. Ou seja, mesmo num monólogo, mesmo quando nós espectadores assistimos apenas um único ator no palco, atuam com ele um escritor, um diretor, um iluminador, um figurinista, um sonoplasta etc. Se interferirmos, portanto, na atuação deste ator, não estaremos modificando o seu espetáculo, mas um trabalho de várias multiplicidades. Daí que “(...) não se pode conhecer qualquer comportamento humano isolando-o ou fragmentando-o, como se este existisse em si e por si.” (Lane, 1994: 19)

O evidente fracasso destas tentativas de delimitações deve-se a propostas estanques de enquadramento. Nelas busca-se o lugar da psicologia clínica em classificações extremamente simplistas. Estes rótulos acabam atentando para um explícito reducionismo sobre uma das práticas mais amplas da psicologia.

É verdade que a clínica implica numa intervenção, mas é um equívoco pensá-la como mera aplicação de conhecimentos básicos; é verdade que o sentido da intervenção clínica se diferencia em alguns aspectos dos sentidos da intervenção educacional e organizacional, mas é um equívoco tratar a clínica como uma mera área de atuação, ou defini-la pela sua intenção curativa; é verdade que há um tipo de conhecimento que é produzido na clínica e só nela, mas é um equívoco tratar a clínica como mera área de conhecimento separada de outras áreas a partir de seus temas; creio, finalmente, que é extremamente verdadeiro pensar a oposição entre a clínica e a psicologia experimental como questão de método – há sem dúvida um método clínico de pesquisa – mas seria equivocado reduzir a clínica a um método de pesquisa. (Figueiredo, 1995: 37 e 38)

A clínica, portanto, é o espaço privilegiado destes cruzamentos. Espaço no qual torna-se impossível recortar as práticas psi, ou lhes possibilitar localizações definitivas. Porém, não podemos cair no erro de um relativismo genérico onde tudo é e não é ao mesmo tempo. Isso seria aceitar o reducionismo e colocá-lo de cabeça para baixo. Todavia, se todos esses recortes já não nos servem mais, precisamos inventar olhares possíveis. Precisamos construir um ‘óculos’ com lentes suficientemente fortes para definirmos um ponto perspectivo neste imenso espaço. Nossa proposta é de que esse óculos seja a ética.

A palavra grega éthos, que mais tardiamente passou a significar caráter, denota originalmente: assento, morada. Quando falo, pois, no éthos psicoterapêutico quero designar aquela abertura psicoterapêutica na qual toda a constelação humana trazida pelo paciente pode encontrar assento, morada. A partir daí, quero apontar como princípio básico da psicoterapia essa função ética, caracterizada pelo acolhimento (...) (Naffah Neto, 1994:86)

Ética? Sim! Ética. Podemos finalmente nos alegrar e sorrindo dizer que encontramos uma identidade saudável à psicologia clínica. Pois “(...) o que define a clínica psicológica como clínica é sua ética: ela está comprometida com a escuta do interditado e com a sustentação das tensões e dos conflitos.” (Figueiredo, 1995: 40). Mas para este encontro ser afirmado e novamente retornar é preciso agora nos ater a novo desafio: afinal, o que é ética? Ética, como afirma Guareschi (1997), é um modo de se relacionar, uma maneira de se lidar com o outro. Ou seja, a própria relação. Uma vez que ninguém pode se relacionar sozinho, não se pode ser ético sozinho. Fazer psicologia clínica é portanto uma relação. E é justamente nesta relação, neste encontro, neste acontecimento, nesta praxis, que se pode ser, ou não, ético.

Dizer que Ética é relação, ou dizer que Ética só se pode aplicar às ‘relações’, é afirmar que ninguém pode se arvorar o predicativo de ‘ético’ a partir de si mesmo, como quer exatamente, o liberalismo. O pensamento liberal, ao partir da definição de ser humano como ‘indivíduo’, centraliza tudo no ‘eu’, no sujeito da proposição. (Guareschi , 1998: 16).

Ética é, antes de mais nada, uma ação, uma atitude, uma forma de encontrar-se com o mundo. Porém não existe ‘a forma’, existem múltiplas possibilidades de encontro. E dentre estas multiplicidades vamos escolher uma que aproxime a psicologia clínica aos fazeres de uma obra de arte, que leve em consideração o prazer do outro e que contribua para a construção de uma sociedade mais solidária e democrática. Vamos escolher o ethos do cuidado.

 

Segundo Ato: Uma Paisagem Ética da Psicologia Clínica – o Cuidado

Depois de Nietzsche (1844/1900), as verdades universais – aquelas que eram eternas e imutáveis – ficaram bastante regionalizadas, efêmeras e até frágeis. A própria razão científica, que outrora acobertou inclusive a falta de Deus, não possui mais a Glória destas datas. Como somos sujeitos de uma época, com a psicologia clínica não poderia ser diferente. Não se trata mais apenas de receber o paciente entre quatro paredes brancas tendo a cura como promessa, “(...) tratando apenas da realidade interna; remetendo todo e qualquer sentimento de mal-estar existencial para o território da falta, e reduzindo o inconsciente à sua dimensão familiarista-edipiana.” (Rodrigues, 1998: 68). Não procura-se mais descobrir a doença, a patologia que o sujeito possui, pois mesmo a boas doses de panacéia as pessoas continuam sofrendo e assim precisando de cuidado. Estamos, sim, em busca de uma psicologia clínica que, levando em conta os saberes dos quais dispomos, efetue intervenções nas vidas, nas relações, nas subjetividades das pessoas, sem cair em notória contradição ou ser rechaçada pelas próprias críticas de quem a pratica. Uma clínica que invente praxis éticas e politicamente comprometidas.

Assim, atravessados por nossas próprias lanças, buscamos por algo que cure nossas chagas. Este algo é uma modalidade de relação, uma forma de se relacionar com o outro e com o mundo, uma ética. Passamos por momentos críticos, momentos esses que precisamos clinicar com cuidado.

Em momentos críticos como os que vivemos, revisitamos a sabedoria ancestral dos povos e nos colocamos na escola de uns e de outros. Todos nos fazemos aprendizes e aprendentes. Importa construir um novo ethos que permita uma nova convivência entre os humanos com os demais seres da comunidade biótica, planetária e cósmica; que propicie um novo encantamento face à majestade do universo e à complexidade das relações que sustentam todos e cada um dos seres. (BOFF, 1999: 27)

Não há mais receita mágica possível, faz-se necessário destituir o poder reacionário da clínica burguesa e romper com as práticas naturalizantes da psicologia clínica, colocando em seu lugar uma nova paisagem: O ethos do cuidado. A clínica tradicional pratica o descaso, o que leva-nos a pensar no ‘desleixo’ como sua ética. Suas atitudes negligenciam a grande maioria de nossa sociedade, promovendo a exclusão social, a expropriação da subjetividade e o fortalecimento de subjetividades dominantes.

Portanto, se não vamos mais atuar desta forma ‘desleixada’, necessitamos de novos atores mas também de um novo palco: “O que se opõe ao descuido e ao descaso é o cuidado. Cuidar é mais que um ato; é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção, de zelo e de desvelo. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro.” (Boff, 1999: 33)

Propomos o ethos do cuidado não como opção paliativa à clínica tradicional, mas como uma perspectiva para um novo modelo clínico: a idéia de cura assume, ou melhor, resgata outra imagem. “Em sua forma mais antiga, cura em latim se escrevia coera e era usada num contexto de amor e de amizade. Expressava a atitude de cuidado, de desvelo, de preocupação e de inquietação pela pessoa amada ou por um objeto de estimação.” (Boff, 1999: 90-91). Cuidar é responsabilizar-se pela beleza e sofrimento clinicados. Cuidar é inventar ações desnaturalizantes para a nossa psicologia: ciência e profissão. Mas, sobretudo, cuidar é acolher o sujeito que busca neste habitat do psicólogo – a clínica – uma transformação à sua existência. Aproximando-se de Naffah Neto (1994), pode-se propor que o cuidado é o que há de mais importante no processo psicoterapêutico, pois é este que vai garantir assento, morada, espaço de vida e transformação ao sujeito acolhido.

O ethos do cuidado seria assim – usando um conceito de Guattari (1986) – uma revolução molecular. Uma maneira poética de promover agenciamentos micropolíticos na polis, pois questionar o sistema capitalista não se restringe mais a lutas políticas e sociais em grande escala. Microrevoluções ou revoluções moleculares, assim como a ética do cuidado, são intervenções políticas extremamente amplas que podem nos encaminhar a um “estar alerta para todos os fato-res de culpabilização; estar alerta para tudo o que bloqueia os processos de transformação no campo subjetivo.” (Guattari, 1986: 135).

 

Terceiro Ato: As Micropolíticas do Cuidado

Já demonstramos, em algumas cenas anteriores, que não existe apenas uma ética, e sim várias. Ao colocarmos, entre tantas outras possibilidades de nosso camarim, este óculos denominado ethos do cuidado, além de selecionarmos uma modalidade de relação para a psicologia clínica, também lhe possibilitamos uma paisagem política. É a ética que determina a política, e é a política que da vida à ética. Mas é evidente que, da mesma forma, não haja apenas uma política, e sim “(...) em um mesmo instante, várias políticas, ou ao menos várias ‘propostas políticas’ na sociedade.” (Maar, 1985: 13)

A política a que aqui nos referimos é tomada como o fato de existir na polis. Entendemos política como ato de intervenção na cultura, como atividade de relação com o poder, com o estado, com a psicologia etc.

Neste sentido, a psicologia clínica tradicional, ancorada ao modelo médico, desenvolve mecanismos políticos extremamente fortes para sobreviver. Rodrigues (1998) aponta-nos um ótimo exemplo lembrando de como a psicologia Brasileira, durante a ditadura, aliou-se a esta para esvaziar as categorias políticas e transformá-las em categorias psicológicas. Ou seja, o que se faz e o como se faz foram estrategicamente deixados de lado para entrar em cena o como se sente. Uma psicologização absurda que produziria subjetividades dominantes fortalecidas no “(...) modelo de família que compra, investe, viaja e ascende socialmente, enfatizando-se a responsabilidade individual de cada membro.” (Rodrigues, 1998: 67)

Devemos, deste modo, substituir uma concepção de política partidária ampliando-a para abranger vários aspetos da nossa cultura.

Uma visão panorâmica do conjunto deverá não perder de vista aquelas particularidades que tornam a política real e atual nas circunstâncias cotidianas. Assim ela está presente no seu relacionamento com o Estado, com o poder, com a representatividade e participação, com as ideologias, com a violência, seja nos sindicatos, no jogo de futebol, na escola ou no divã, na relação afetiva, no tribunal ou na igreja, na sala de jantar ou na reunião partidária. (Maar, 1985: 08).

Justamente pela política ser esta intercessão na sociedade é que ela nos interessa. Ora, se uma determinada política pode fortalecer subjetividades dominantes, uma micropolítica, de outra forma, pode “(...) tentar agenciar os processos de singularidade no próprio nível de onde eles emergem.” (Guattari, 1986: 130). Esta seria uma modalidade que poderíamos aproximar de algo como micropolíticas do cuidado, preocupadas em cuidar da formação das subjetividades.

Uma revolução que levaria a psicologia clínica à um caráter definitivamente preventivo, onde até mesmo a idéia de cura, como já assistimos em outra cena, assumiria este lugar. Cura como atitude de zelo, como ocupação prévia e responsabilidade sobre o cliente; cura como cuidado:

como coera. Ou seja, cura como atividade política de inquietação sobre o fortalecimento das subjetividades dominantes e sobre os agenciamentos das singularidades. Deste modo, ao mesmo tempo em que acionamos o que há de mais atual para nossa prática – o ethos do cuidado – estaremos praticando o que aprendemos com Boff (1999) sobre revisitar, em momentos difíceis, a sabedoria ancestral: por mais irônico que pareça, etimologicamente o termo clínico significa justamente aquele que cuida. Segundo estudiosos de etimologia, como Mauricea Filho (1961) e Magne (1961), o clínico é aquele que se debruça, que se inclina sobre a criatura que sofre. E o personagem que lhe possibilita a atuação, o cliente – cliens – é aquele que encontra amparo, aquele que se apóia.

A uma ação política ou micropolítica do cuidado caberia, portanto, debruçar-se sobre o corpo do seu cliente: O Corpo Clínico. Um corpo que é lugar, que é ethos, que é uma política de cuidado das subjetividades. Um corpo-teatro, espetáculo, um corpo polis: Um Corpo Clínico.

 

Quarto Ato: Uma política de cuidado para o Corpo Clínico

Sim! Façamos a clínica. Mas que corpo vamos clinicar: um corpo em que estamos, um corpo que somos ou talvez o corpo que estamos?

Pensarmo-nos dentro disto! Pensarmo-nos como essência imutável, eterna e divina! Pois sim, já não podemos mais. Já não temos inocência bastante para tal, já mordemos a maçã proibida, esta fruta do conhecimento e da ciência. Ela nos mostrou tudo que havia por detrás desta negação do trágico e, tudo que fora e que é realizado em seu nome: xenofobias, anti-semitismo, inferioridade de alguns em detrimento à superioridade de outros, destruição, flagelo, martírio e toda uma filosofia de sofrimentos do corpo para que com isso se purifique esta essência que a falta de nossa inocência já não suporta mais.

Há muitas maneiras de lidar com o trágico no vasto terreno da produção cultural. Numa das pontas, percebemos uma negação significativa do trágico. É quando se acredita que dentro é um espaço cujo equilíbrio poderá ser encontrado, bastando para isso alguns truques; e, no dia em que se conseguir essa proeza, ter-se-á a felicidade de ficar bovinamente instalado nesse dentro para sempre. (Rolnik, 1997: 31 e 32)

Pensarmo-nos sendo! Pensarmo-nos como corpo, mas como corpo que somos. Pois bem, ainda discutimos sobre tal. Porém começamos a perceber, e este começar não é de hoje, que esta forma de ler o corpo é ainda uma forma essencialista, que vai buscar na metafísica sua ‘estrutura’ de ser humano. Parmênides(500ac) , em contraposição a Heráclito (500ac), nos fala deste corpo quando propaga que ‘alguma coisa é ou não é’. Portanto, ser um corpo é ser algo fixo, sem movimento. Novamente, desta maneira, somos obrigados a cair no que já ultrapassamos, dando ao corpo um lugar estático, negando-lhe a invenção, a escolha e o devir. Ser um corpo faz parte da imutabilidade que há pouco depreciamos junto à idéia de estar num corpo, ambas aniquilam o vir a ser, ambas solidificam um lugar específico ao Ser e detêm dentro de seus paradigmas a forma correta de se estabelecer como corpo e de viver...

Pensarmo-nos isto! Pensarmo-nos como movimento, como criador e criação, como eterno vir a ser. Aqui lançamos nosso grande sim! Este corpo é mudança constante, é arte, é música, é teatro. É como o ator que se desprende de sua existência e vive um outro algo, por vezes tão concreto quanto. É como a música que cria uma realidade enquanto toca, e que a extingue, ou não, quando cessa.

Porém sem negar o real. Pois se assim o fizéssemos seria preciso negar também sua transformação. Pensarmo-nos como um corpo em movimento é pensarmo-nos como agente de mudança deste real. Pois se nossa consciência só pode ser consciência de alguma coisa e esta mesma coisa somente existe enquanto objeto desta consciência, nossa relação com o outro e com o mundo é a única forma de constituir esta consciência.

Entretanto, é necessário salientar que aqui o ideal não existe enquanto possibilidade a ser alcançado. Não se trata de uma busca pela verdade nem pela certeza do como viver. É justamente o oposto e, nisso mais uma vez nos distanciamos da metafísica.

Sim! E nesta ‘metamorfose ambulante’ podemos sonhar uma possível transformação social, uma revolução molecular que partiria das relações entre os sujeitos e não da tomada do poder estatal, do controle, do dominar o outro. Uma possível quebra de valores, uma possível reavaliação da existência, do real, do mundo, da história, do conhecimento, da arte e de tudo que até então pensou-se ser a vida.

(...) aliar-se com as forças da processualidade: identificar os pontos de desestabilização das formas instituídas, anunciadores de sua finitude e do engendramento de outras formas. Essa aliança depende – mais do que de qualquer outro tipo de aprendizado – de estar à escuta do mal-estar mobilizado pela desestabilização em nós mesmos, da capacidade de suportá-lo e de improvisar formas que dêem sentido e valor àquilo que essa incômoda sensação nos sopra. (Rolnik,1997: 32 e 33).

Descobrir olhares e intervenções sobre este mal-estar, aprender a suportá-lo e improvisar boas formas com ele: para este cotidiano tencionamento sobre o corpo clínico é que nos levam as micropolíticas do cuidado. Mas este criar exige uma certa leveza, um pleno respirar, um tato mais apurado que alguns dedos grosseiros terão dificuldades de manusear. Inventar ações de cuidado para o sofrimento nesta cena, por exemplo, seria antes de mais nada perguntarmo-nos sobre estas tais boas formas que iremos improvisar. Afinal, o que é bom? “ [...] bonus seria o homem da disputa (duo), o guerreiro: eis o que constitui a bondade de um homem da Roma antiga” (Nietzsche, 1985: 07). Todavia, a mesma bondade que nossa moderna civilização ocidental transformou em sempre aceitar, concordar, conformar-se, em sempre atuar como uma vaquinha de presépio. Não é a toa que a ‘depressão’ seja nossa maior chaga. Mas tudo bem! Tudo bem! Ninguém precisa se exaltar. Façamos aqui uma breve intervenção clínica pela saúde social, receitaremos à todos lindas bolotas mágicas, drogas lícitas bem coloridas que com certeza vão lhes currar. A que absurda negação do corpo chegamos. Nem ao menos podemos usá-las para a vida, para o prazer, para festejarmos o riso. Devemos usá-las sempre para a morte, para a enfermidade, para corrigir e tornar o desviante novamente algo mediano e sem sabor.

O que é bom? Tudo que eleve no homem o sentimento de potência, a vontade de potência, a própria potência.

O que é ruim? Tudo que advém da fraqueza.

O que é felicidade? O sentimento de que a potência cresce, de que uma barreira é superada. ( Nietzsche, 1996, p.27-28).

Bom para o homem é ser o criador da escolha de sua própria existência e sentir em plenitude o vento que dela emana. Viver é ter vontade de vida, vontade de criação, vontade de prazer. Sim! É escolher maneiras de sentir, e assim, de obter uma grande saúde.

É o desejo de vida, a vontade de potência e o eterno retorno de criar e recriar a vida, inventando valores e reinventando-os a todo momento que nos possibilita um respirar pleno.

Precisamos, portanto, construir para uma psicologia clínica nova também um novo psicólogo. Um inventor, um artista, um grande maestro que em suas composições arranje escalas de intervenções clínicas dentro de uma dimensão ética e política. Um corpo em devir. Sim um corpo, pois assim como os lugares, o ethos, a política e a intervenção sobre o cliente, o psicólogo também é corpo clínico. E é este corpo que se quer em movimento, que se quer inquieto, que se quer comprometido com a transformação social e capaz de estranhar a naturalização de si mesmo e do mundo.

Um psicólogo em movimento. Essa deve ser a nossa meta. Um psicólogo aliado da transformação social, do movimento da sociedade e dos interesses da maioria da população. Um psicólogo inquieto, conspirador, que saiba estranhar aquilo que na realidade se torna tão familiar que chega a ser pensado como natural. Um psicólogo permeável às inovações que aceite o desafio de, coletivamente, produzir alternativas à Psicologia tradicional (Bock, 1997:41).

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência
Édio Raniere da Silva
Rua Porto Alegre 32 - Bom Retiro
89010-680 Blumenau – SC
Tel.: +55-47 326-0010
E-mail: zaratustraedio@mixmail.com

Recebido 26/03/01
Aprovado 18/05/01

 

 

* Acadêmico do curso de Psicologia da Universidade Regional de Blumenau (FURB). Membro do Núcleo Blumenauense do Movimento da Luta Antimanicomial. Membro do grupo de Teatro Espontâneo Trupessatrup e bolsista do programa de Incentivo a Pesquisa da FURB (PIPe).