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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.21 n.4 Brasília dez. 2001

 

ARTIGOS

 

A clínica no século XXI e suas implicações éticas

 

 

Adalberto Afonso Lima dos Santos*

Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Em psicologia, encontramos uma pluralidade de abordagens teóricas que dão origem a diferentes tipos de práticas clínicas. Nossa pergunta inicial é se haveria um conceito ou noção em psicologia que nos permitisse discorrer a cerca da prática clínica independente do referencial teórico adotado, já que cada teoria extrai suas técnicas e sua ética do pressuposto filosófico no qual se assenta. Como não poderia deixar de ocorrer, esbarramos na questão da ética, tendo sua pretensão de universalidade contrastada com a clínica do “um-a-um” vivenciada na experiência cotidiana.

Palavras-chave: Clínica, Ética e sujeito.


ABSTRACT

In psychology we found a plurality of theoretical approaches that originated different types of clinical practices. Our initial question was if there would be a concept or notion in psychology that allowed to discourse about the independent clinical practice of the adopted theoretical reference, since, each theory extracts its techniques and ethics from philosophical presumption on which it is set. Though we encounter the question of the ethics, once its universal intent contrasts with the daily “one-to-one” clinic experience.

Keywords: Clinic, Ethics and subject.


 

 

Há pouco mais de um século, a clínica psicológica vem se consolidando no cenário mundial. É comum em psicologia uma pluralidade de abordagens teóricas que definem seu objeto de estudo de maneira distinta, partindo de diferentes pressupostos filosóficos. Quase todas elas nasceram da experiência clínica e, mesmo as que não se originaram diretamente da mesma, como é o caso, por exemplo, do behavorismo de Skinner, tentam de alguma forma construir uma teoria que funcione como um suporte eficaz para sua prática entre outras coisas1. Contudo, o que se pode notar, é que parece não haver um estudo mais sistematizado sobre o que seria a prática clínica em psicologia. Pode essa experiência ser reduzida ao simples encontro entre psicólogo e paciente? Nossa proposta é fazer uma reflexão sobre esse tema, mas nos restringindo ao campo da psicologia. Como já foi dito, em psicologia, as teorias e sistemas estão sempre a proliferar de modo que não é possível reduzir uma reflexão dessas sob o ponto de vista de um único referencial teórico. Por outro lado, nos parece uma tarefa por demais ambiciosa, procurar um ponto que seja externo a todas as teorias e práticas e que sirva de balizamento para todas, como uma espécie de tribunal da razão. Assim, se por um lado uma tentativa de sistematização não pode se reduzir a um único referencial, por outro lado acreditamos que, inicialmente, ela deve passar por algum, para que a partir daí se abra um campo de diálogo. Optamos então pela teoria com a qual possuímos maior afinidade, qual seja, a psicanálise, fazendo uma ressalva, de que essa reflexão não pretende se impor às demais teorias, mas sim abrir um espaço para troca de idéias sobre esse domínio tão presente que é a clínica.

Em um primeiro momento estaremos enfocando as relações entre clínica e patologia, bem como as origens daquela e, em um segundo momento, tentaremos fazer uma diferenciação entre clínica e a atividade terapêutica; sempre enfatizando as dimensões éticas que isto comporta.

 

A Clínica

O termo clínica é usado para designar, de maneira geral, tanto a prática médica propriamente dita, como a clientela dos médicos, ou mesmo um estabelecimento de tratamento de saúde. No Dicionário Médico de Rodolfo Pacionik(1978) encontramos:

“Clínica (do grego Klíne – Leito) 1. Instrução médica dada ao lado do leito do doente. 2. Exercício ou prática da medicina. 3. Instituição médica, oficial ou particular, na qual se ensina a arte médica junto ao leito dos doentes; por extensão: estabelecimento ou local onde os pacientes são examinados por médicos ou fazem tratamentos. 4. Conjunto de pessoas que formam a clientela do médico” (Pacionik, 1978).

Portanto, a clínica médica se organiza como um complexo onde se reúnem a experiência, um método de análise e sobretudo, deste ponto de vista, um ensino.

 

Clínica e Patologia

Observa-se que a atividade clínica e a produção de conhecimento, atividade teórica, se complementam sem no entanto se confundirem. Canguilhem(1943) procura fazer uma distinção entre a atividade clínica e terapêutica e a produção de conhecimento propriamente dita. Assim ele nos diz que a clínica “...é uma técnica ou uma arte situada na confluência de várias ciências, mais do que uma ciência propriamente dita.”(p.16). Interessante definição, pois podemos notar que o domínio da clínica é de fato perpassado por diversas ciências. Um dado indivíduo que procura a clínica em psicologia pode apresentar fenômenos corporais que se encontram na interface entre psicologia e medicina. É preciso então, fazer uma distinção entre o que pode ser tratado pela via do simbólico e o que pertence propriamente ao domínio médico. Ou mesmo, torna-se necessário levar em conta nos atendimentos a um dado indivíduo dados sociológicos como grau de escolaridade, faixa etária, entre outros e até mesmo dados antropológicos relativos à cultura de onde vem o cliente em questão. Muitos psicólogos brasileiros se dispõe a ir até outros países para receberem atendimento psicológico, certamente os profissionais de lá tem de levar em conta as diferenças culturais. Assim fica mais fácil entender que a clínica se encontra num ponto onde se entrecruzam diversos ramos do conhecimento, mas que, no entanto, não é uma ciência propriamente dita. Quanto a isso podemos mais uma vez recorrer a Canguilhem(1943):

“O ser vivo não vive entre leis mas entre seres e acontecimentos que diversificam essas leis. O que sustenta o pássaro é o galho da árvore e não às leis da elasticidade. Se reduzirmos o galho às leis da elasticidade também não devemos falar em pássaro e sim em soluções coloidais”(p. 159).

Ou ainda:

“Achamos ao contrário, que, para um ser vivo, o fato de reagir por uma doença a uma lesão, à uma infestação, à uma anarquia funcional, traduz um fato fundamental: é que a vida não é indiferente às condições nas quais ela é possível, que a vida é polaridade e por isso mesmo, posição inconsciente de valor, em resumo, que a vida é, de fato, uma atividade normativa” (p. 96).

O que se pode tirar disso é que a experiência clínica, apesar de ser amparada por uma teoria, não pode ser reduzida à mesma. Como nos fala Canguilhem (1943), a atividade clínica se sustenta não pela necessidade humana de dar uma explicação às coisas, mas sim porque existem pessoas que apresentam uma queixa a um médico ou a um psicólogo. Do mesmo modo que um pássaro não pode ser reduzido à soluções coloidais, um dado indivíduo que procura a clínica não pode ser reduzido à soma de vivências passadas que culminam na aquisição de um repertório comportamental, ou mesmo, a um conflito entre instâncias psíquicas. Apesar de ambas as teorias servirem inegavelmente de suporte à prática clínica do psicanalista e do psicólogo comportamental, o profissional da clínica deve estar sempre aberto ao imprevisível, ao fato de que diante dele se encontra um sujeito concreto com suas singularidades e não uma entidade abstrata. Isto era o que acontecia na medicina classificatória do séc. XVIII, que seguia um modelo botânico. Ali o doente era tido como um detalhe incômodo, que aparecia com suas particularidades (idade, modo de vida etc.) e, para chegar à verdade da doença, o médico devia abstrair o doente. Médico e doente eram tolerados como um mal necessário, mas deviam manter-se à distância para que a doença se configurasse de acordo com a natureza que lhe era própria (Foucault, 1977).

Canguilhem(1943) defende uma posição vitalista, na qual a vida não é um conceito descritivo, mas sim polaridade, luta entre opostos, como ele próprio diz “...a vida não é indiferente às condições nas quais ela é possível” (p.96). A polaridade dinâmica da vida é traduzida em sua atividade normativa pois, podemos constatar a existência de uma patologia biológica ou psíquica, mas não existe uma patologia química ou física (Canguilhem, 1943). Quando uma dada doença acomete o organismo, os processos que ela desencadeia com certeza estão de pleno acordo com as leis da física e da química, mas não de acordo com a normatividade biológica ou psíquica do organismo.

Para Canguilhem(1943), o que funda a atividade clínica é a existência de uma patologia. Isto não é, de modo algum, ponto pacífico. Isto por que muitos defendem que em psicologia, atendo-nos ao nosso caso, não há distinção entre normal e patológico. Por exemplo, na psicanálise, a neurose é vista não como uma patologia e sim uma forma de estruturação subjetiva. Mas não se deve perder de vista que um dado indivíduo procura a clínica porque atribui um valor negativo a seu sofrimento. No entanto, acreditamos que se encontra aqui uma sutileza referente a clínica psicológica. Provavelmente um dado sujeito não se sentiria constrangido em recusar um pedaço de doce alegando que tem diabetes, por outro lado é fácil constatar a dificuldade que o mesmo sujeito encontraria em admitir a seus amigos que é acometido por estranhos pensamentos obsessivos. É que, do ponto de vista social, o sofrimento mental comporta um valor negativo, de modo que não é fácil para um indivíduo admitir, mesmo para si, comportamentos e pensamentos que lhe causam sofrimento mental. Ou mesmo no caso da psicose, quando o indivíduo dificilmente irá se reconhecer como alguém com idéias delirantes, e assim sucessivamente. Essa é uma sutileza que precisa ser trabalhada, mas optamos por apenas apontá-la, pois não se encontra no escopo de nosso trabalho.

Para Canguilhem(1943), a clínica médica existe por que indivíduos se queixam de não serem mais como eram no passado e querem retornar a uma etapa de sua vida onde viviam no silêncio de seus órgãos.2 Acreditamos que aí se encontra um outro ponto que talvez não possa ser transposto para clínica psicológica. O que se pode notar é que a grande maioria das pessoas que demandam atendimento psicológico, vem se queixar justamente que sofrem desta ou daquela maneira nos dias de hoje, por causa de um passado infeliz que tiveram, que os pais ou eram muito duros ou muitos complacentes, que amaram demais ou de menos, que um trauma lhes ocorreu quando eram crianças e assim sucessivamente.3

A doença é, para Canguilhem(1943), a perda da capacidade de ser normativo. Ela é também uma norma, mas uma norma que não tolera variações. O indivíduo saudável é aquele que vive em uma determinada norma mas que, se as condições em que vive são mudadas, é capaz de exercer sua capacidade normativa e forjar uma nova norma. Freud(1895), em seu Projeto de uma Psicologia Científica, concebe o aparelho psíquico como uma rede de caminhos, facilitações, que vão sendo forjados à partir da experiência de cada indivíduo desde a infância e que depois a quantidade de energia circulante no aparelho anímico tende a percorrer essas vias já facilitadas. Mais a frente, em 1915, no seu texto Sobre o Narcisismo, uma Introdução, ele compara o eu a uma ameba que lança seus pseudopodos sobre a realidade e então absorve fragmentos da mesma integrando-os a si. Poderíamos dizer que um dado indivíduo procura a clínica ou qualquer outra espécie de ajuda porque se encontra aprisionado em um circuito pulsional, ele não consegue forjar novos caminhos a partir do contato com o mundo externo, está impossibilitado de exercer sua atividade normativa e portanto admite uma única norma. Em nossas vidas somos constantemente confrontados com situações adversas às quais podemos absorver e nos tornarmos pessoas melhores, ou então, não conseguimos forjar novas normas. O indivíduo saudável não é aquele que nunca adoece, mas aquele que passa por situações adversas e consegue superá-las; a saúde é um luxo (Canguilhem, 1943). Não se deve tirar disso que ser normativo é o mesmo que se adequar a um padrão social preestabelecido, adaptar-se à sociedade. A psicanálise nos alerta sobre os embaraços de um tratamento que se restrinja a atuar exclusivamente no campo do eu. Pelo contrário, o indivíduo saudável é aquele capaz de criar novas normas pois, a saúde perfeita não passa de um conceito normativo e :

“...raciocinando com todo rigor, uma norma não existe, apenas desempenha seu papel que é desvalorizar a existência para permitir a correção dessa mesma existência. Dizer que saúde perfeita não existe é apenas dizer que o conceito de saúde não é o de uma existência, mas sim de uma norma cuja função e cujo valor é relacionar esta norma com a existência a fim de provocar a modificação desta. Isto não significa que saúde seja um conceito vazio.” (Canguilhem, 1943, p. 54)

Muitas vezes o conceito de normal é associado a idéia de média. A partir de uma média estabelecida estatisticamente, um indivíduo é considerado normal ou anormal, na medida em que se aproxima ou se afasta dela. Mas a média é um conceito estatístico de caráter descritivo e, ao se elevá-la como um padrão considerado ideal, estamos atribuindo-lhe um valor (Canguilhem, 1943). Essa transformação de uma referência numérica em um julgamento de valor acaba por tornar-se mais obscuro do que esclarecedor e produz uma ilusão de cientificidade e de verdade:

“Se definirmos o anormal ou patológico pelo que ele tem de insólito – como habitualmente o fisiologista o faz- de um ponto puramente objetivo, temos que admitir que as condições de exame em laboratório colocam o ser vivo em uma situação patológica da qual se pretende, paradoxalmente, tirar conclusões com força de norma”(Canguilhem, 1943, p.115).

Ou ainda:

“A fronteira entre o normal e o patológico é imprecisa para diversos indivíduos considerados simultaneamente, mas é perfeitamente precisa para um único e mesmo indivíduo considerado sucessivamente” (Canguilhem, 1943, p. 145).

Como se pode notar, a norma é sobretudo individual, sendo que o indivíduo só pode ser considerado normal ou anormal quando comparado a si mesmo. Esta idéia deve ser guardada pois nos será de extrema utilidade quando falarmos das implicações éticas da prática clínica onde procuraremos acrescentar a ela a idéia de uma ruptura entre natureza e cultura.

 

O Nascimento da Clínica

Foucault (1977) localiza o nascimento da clínica na passagem do século XVIII para o século XIX. É claro que a clínica médica existia antes mesmo do século XVIII, o que Foucault parece enfocar é que nessa passagem de séculos a clínica, no caso a clínica médica, pôde ser envolvida por um discurso de estrutura científica. Logo no prefácio de seu livro, O Nascimento da Clínica (1977), ele nos mostra duas descrições diferentes para um mesmo fenômeno, a primeira vigente no século XVIII onde teríamos uma linguagem carregada de aspectos fantásticos e a linguagem do séc. XIX que guiaria nosso olhar para um mundo visível, vejamos :

“Em meados do século XVIII, Pomme tratou e curou uma histérica fazendo-a tomar banhos de 10 a 12 horas por dia, durante dez meses. Ao término desta cura contra o ressecamento do sistema nervoso e o calor que o conservava, Pomme viu porções membranosas semelhantes a pedaços de pergaminho molhado... se desprenderem com pequenas dores e diariamente saírem na urina, o ureter do lado direito se despojar por sua vez e sair por inteiro pela mesma via. O mesmo ocorreu [com os intestinos que, em outro momento, se despojaram de sua túnica interna, que vimos sair pelo reto. O esôfago, traquéia-artéria e a língua também se despojaram e a doente lançara vários pedaços por meio de vômito ou de expectoração. [..] eis como, menos de 100 anos depois, um médico percebe uma lesão anatômica do encéfalo e seus invólucros; trata-se das falsas membranas que freqüentemente se encontram nos indivíduos atingidos por meningite crônica. Sua superfície externa aplicada a lâmina aracnóide dura-máter adere a esta lâmina, ora de modo muito frouxo, e então se pode separá-las facilmente, ora de modo firme e íntimo, e neste caso é às vezes difícil desprendê-las. Sua superfície interna é apenas contígua à aracnóide, com quem não contrai união... as falsas membranas são freqüentemente transparentes, sobretudo quando muito delgadas; mas habitualmente apresentam uma cor esbranquiçada, acinzentada, avermelhada, e mais raramente, amarelada, acastanhada e enegrecida. Esta matéria oferece quase sempre matizes diferentes segundo as partes da mesma membrana. A espessura das produções acidentais varia muito; são, às vezes, tão tênues que poderiam ser comparadas a uma teia de aranha... A organização das falsas membranas apresenta igualmente muitas diferenças: as delgadas são cobertas por uma crosta, semelhante às películas albuminosas dos ovos e sem estrutura própria distinga. As outras, muitas vezes, apresentam, em uma de suas faces, vestígios de vasos sangüíneos entrecruzados em vários sentidos e injetados. São constantemente redutíveis a lâminas superpostas entre as quais são, com muita freqüência, interpostas coágulos de um sangue mais ou menos descolorido ”(p. VIII a IX).

Ele ainda prossegue nos dizendo que:

“entre o texto de Pomme que conduzia os velhos mitos da patologia nervosa à sua última forma e do de Bayle que descrevia, para uma época que ainda é a nossa, as lesões encefálicas da paralisia geral, a diferença é ínfima e total. Total para nós, na medida em que cada palavra de Bayle (...) guia nosso olhar para um mundo de constante visibilidade, enquanto que o texto precedente nos fala a linguagem, sem suporte perceptivo, das fantasias (...) quem pode nos assegurar que o médico do XVIII não via o que via, mas que bastaram algumas dezenas de anos para que as figuras fantásticas se dissipassem e que o espaço liberto permitisse chegar aos olhos o contorno nítido das coisas?” (p. XI).

Essa visibilidade que propicia uma abordagem de estrutura científica não é conquistada simplesmente porque, de uma ora para a outra, a medicina decide restringir seu campo de atuação à “modéstia eficaz do percebido”(Foucault, 1977, p. X). O que ocorreu de fato foi uma mudança na estrutura do discurso que fez aparecer sobre o olhar e na linguagem o que até então se mostrava oculto.

No século XVIII, alguns tentaram extrair da precisão da balança um método racional para melhor se entender o funcionamento do corpo. No entanto, tudo isto foi abandonado para dar lugar a uma atividade artesanal : “a agilidade artesanal do quebra crânio substituiu a precisão científica da balança e, entretanto, é naquela que nossa ciência, a partir de Bichat, se reconhece”(Foucault, 1977, p. XI). É dessa mudança na estrutura dos discursos que surge a possibilidade de uma experiência clínica, quando se pode falar do sujeito por intermédio de um discurso que possui uma estrutura científica. A pergunta típica do século XVIII: O que você tem? se transforma em: Onde lhe dói? E assim, as relações entre significante e significado se reorganizam propiciando o nascimento da clínica (Foucault, 1977).

A idéia de que o desenvolvimento da ciência se dá principalmente á partir da experiência clínica, no leito do doente, não é exclusiva dessa passagem de séculos, pelo contrário esteve presente em todas as revoluções médicas. Mas, uma mudança na rede discursiva que é específica desse tempo criava toda uma rede de coordenadas que orientava o olhar médico.

No século XIX, não se trata de um encontro entre um conhecimento adquirido e uma ignorância a se formar, o olhar instrui de maneira idêntica o médico experiente, assim como o aprendiz (Foucault, 1977). As regras do discurso são agora novas, agora o olhar descobre e não mais constata, isto é claro, na medida em que se acreditava no ideal positivo de que o fenômeno da doença fala por si mesmo. Assim, a clínica passa a ser então o tema principal da reorganização da medicina do século XIX. É a linguagem da clínica que determinará a construção de todo um corpo de conhecimentos.

É claro que toda essa mudança se dá sobre a rubrica de um ideal positivista de ciência que repousa sobre a máxima de que o mundo é análogo à linguagem. Aqui, os sintomas significam, sem resíduos, a doença. De um conjunto de sintomas se originam frases, assim como as palavras se agrupam em frases, de modo que se expressa o sentido da doença (Foucault, 1977). É claro que hoje, a partir de todas as transformações pelas quais passaram a física e outras ciências, fica cada vez mais difícil defender um programa de ciência em moldes rigorosamente positivistas. Mas, não há de se negar que em um determinado contexto este sistema de pensamento teve um papel crucial para o avanço da ciência.

 

A Clínica e suas Implicações Éticas na Sociedade Contemporânea:

Há uma tendência a se tomarem os termos clínica e terapêutica como sinônimos. Esses termos fazem fronteira, mas não se confundem. A terapêutica é um dos aspectos da clínica, é o conjunto de recursos disponíveis ao médico que proporcionam o controle, combate ou a cura do doente. Portanto, deduz-se que a terapêutica só se dá a partir de um conhecimento prévio e da aplicação dos recursos e ferramentas, que só foram possíveis através do contato prévio com o objeto, ou seja, através da clínica.

Vamos retomar a tese de Canguilhem(1943) de que o que funda a atividade clínica é a existência de uma patologia, ou melhor dizendo, que a experiência clínica só se faz possível a partir do momento onde um dado sujeito apresenta uma queixa a um médico ou a um psicólogo. Qual postura deve tomar então o profissional da clínica diante disso? Em psicologia vigora um código de ética que nos fala mais de procedimentos gerais do que de prescrições para prática clínica. Qual conduta ética deve adotar o clínico diante do indivíduo que chega a ele com uma queixa se, como já dito acima, não existe uma norma padrão sequer em fisiologia? Será que o psicólogo deve exercer um papel de pedagogo diante de seu cliente?

 

Natureza e Cultura; Haveria uma Ética na Natureza?

Façamos uma pequena digressão. A questão: O que é o homem? Foi o marco divisor de águas entre os socráticos e os pré-socráticos. Foi esta pergunta que também mudou, em parte, os interesses da filosofia, da cosmologia para antropologia. Por isso, Cassirer (1972) considera Sócrates o pai da Antropologia Filosófica. Para Sócrates essa pergunta só poderia ser respondida por intermédio da razão. O conhecimento fidedigno seria o conhecimento inteligível e não o conhecimento sensível. Assim, nota-se um certo descolamento em relação a natureza, o homem adquire uma independência moral em relação a esta.

Na era moderna, entra em cena o método científico que busca, partindo de observações empíricas e princípios lógicos, uma teoria geral do homem. Com o advento do heliocentrismo, temos uma mudança da visão cosmológica, o homem não ocupa mais o posto mais elevado na ordem hierárquica do mundo. Neste tempo, a razão matemática aparece como um vínculo entre o homem e o universo: “...é a chave para um verdadeira compreensão das ordens cósmica e moral”(Cassirer, 1972, p. 33).

A partir do século XIX, o pensamento biológico toma precedência sobre o pensamento matemático. Neste tempo acreditava-se que a pergunta: O que é o Homem? poderia ser respondida a partir de evidências empíricas da teoria geral da evolução. acreditava-se, pois, que esta havia eliminado os limites entre as diferentes formas de vida orgânica. Surgia então a idéia de uma continuidade entre as diferentes espécies. Mas será que isto também se aplica ao homem? A tarefa dos filósofos que se filiaram a essa linha de pensamento era provar que o universo da cultura poderia ser reduzido às mesmas leis gerais dos fenômenos físicos. Mas será que “...podemos considerar o homem como um animal de espécie superior que produz filosofias e poemas do mesmo modo como que o bicho-da-seda produz seus casulos ou as abelhas constróem suas celas?” (Cassirer, 1972, p. 39).

Muitos pesquisadores tentaram encontrar vestígios de processos simbólicos em animais. Pode-se até encontrar em animais gestos capazes de expressar emoções, mas é uma linguagem que não pode ser elevada a princípios universais. Nos seres humanos encontramos sentenças com uma estrutura sintática e lógica (Cassirer, 1972).

Uma outra diferença a ser feita é entre sinais e símbolos. No mundo animal podemos encontrar sistemas bastante complexos de sinais e signos. Os animais domésticos são um belo exemplo de como os animais são suscetíveis a sinais. Mas, os símbolos de forma alguma podem ser reduzidos a meros sinais: “...um sinal faz parte do mundo físico do ser; um símbolo é parte do mundo humano do significado (...) os sinais, mesmo quando entendidos e usados como tais, têm mesmo assim uma espécie de ser físico ou substancial; os símbolos têm apenas um valor funcional” (Cassirer, 1972, p. 58).

A passagem do uso de sinais para o universo simbólico tem que levar em conta que, a função simbólica não está restrita a casos particulares, mas que é um princípio de aplicabilidade universal e “...com esse princípio, até o mundo de uma criança cega, surda e muda pode tornar-se incomparavelmente mais rico que o mundo animal mais altamente desenvolvido” (Cassirer, 1972, p. 64).

Um sinal está ligado de forma fixa à coisa a qual se refere, como no caso do condicionamento pavloviano onde um cão só se dirige a alimentos, por exemplo, após receber um sinal especial. O simbolismo humano está em oposição a isto, pois este é caracterizado por sua versatilidade. Podemos usar símbolos diferentes para expressar os mesmos pensamentos.

Em seus estudos acerca da linguagem, Saussure chega à noção de arbitrariedade do signo. Ele entende o signo lingüístico como uma união entre significante e significado. Mas, o signo lingüístico une não uma palavra a uma coisa, mas um conceito a uma imagem acústica. Ou seja, há uma ruptura entre o significante e aquilo ao qual ele se refere. Não há uma relação natural e, portanto, necessária entre um significante e aquilo que ele designa, isto é, por assim dizer, uma convenção humana. A palavra céu não está ligada necessariamente à coisa a qual designa, por isso em línguas diferentes temos significantes diferentes para designar uma mesma coisa. Uma outra coisa que há de se levar em conta é que o significado de um significante não é dado de antemão, mas só a partir do momento em que se opõe um conjunto de significantes. A relação só é arbitraria se considerarmos uma língua em relação a outra ou mesmo do signo em relação ao seu referente. Mas no interior de uma comunidade falante, uma relação necessária entre significante e significado é condição de possibilidade da comunicação.4

Kant faz uma distinção entre a realidade das coisas e nossa possibilidade de conhecê-las. O conhecimento humano não remete então ao mundo tal como é, mas é, sobretudo, um conhecimento simbólico (Cassirer, 1972). Um símbolo não possui existência real no mundo físico mas possuiu um sentido e pode conferir sentido a esse mundo. É como se pudéssemos dizer que o mundo em si é mudo, e é preciso que se empreste alguma linguagem a ele para que ele nos diga alguma coisa. Entre o homem e o mundo se interpõe o universo simbólico. Muitos acontecimentos que mudaram o curso da ciência e determinaram seu progresso foram fatos hipotéticos, antes de se tornarem fatos observáveis. A partir de um dado sistema simbólico, pode-se fazer várias perguntas e tirar várias conclusões sobre a realidade, mas não se deve esquecer que, em grande medida, as respostas já estão contidas nas perguntas e são conseqüências do arcabouço simbólico do qual elas partem.

 

O Sujeito na Clínica, Clínica x Terapêutica

Após essa digressão podemos tocar agora no ponto que mais nos interessa, qual seja, a questão da ética. Se, a partir dessa reflexão, nos deparamos com um homem desgarrado da natureza, que entre ele e o mundo se interpõe o muro da linguagem, o que se pode dizer sobre a questão da ética? Que tipo de ética deve servir de parâmetro para regular a prática clínica? Esta é uma pergunta delicadíssima, já que toca na eterna tensão da filosofia, entre os partidários de uma ética de alcance universal e os que defendem que os parâmetros éticos são fruto do consenso de um dado momento histórico e de uma cultura específica. Será que a clínica pode chegar a uma ética que sirva como um termo regulador para sua prática independentemente, do referencial teórico adotado por um dado profissional? Atualmente nos deparamos com cada teoria em psicologia extraindo sua ética dos pressupostos filosóficos que dão sustentação a ela. Com certeza, o ideal seria que tivéssemos uma teoria ética que pudesse ser aceita sem restrições por todas. Mas não é o que verificamos na prática. Partir em busca de uma ética que funcione como que uma espécie de tribunal da razão, parece ir para além dos limites de nossa proposta e também para além de nossas possibilidades. Isto é tarefa, se é que ela é possível, para um grande teórico.

Mas, uma questão que perpassa o tempo em que vivemos não pode deixar de ser levada em conta: é a questão do sujeito. Para Cassirer:

“A grande missão da utopia é abrir passagem para o possível, no sentido oposto a uma aquiescência passiva do estado presente real de coisas. É o pensamento simbólico que supera a inércia natural do homem e lhe confere uma nova capacidade, a capacidade de reformular constantemente seu universo humano ”(Cassirer, 1972, p.104).

Sem dúvida, a utopia impulsionou durante séculos os seres humanos a reformular os padrões vigentes na tentativa de construir um mundo melhor. E se as mudanças não corresponderam literalmente aos ideais, pelos menos alguns progressos foram alcançados. Mas não podemos recuar diante do fato de que vivemos em um momento de crise. No tempo em que vivemos temos de nos deparar com a ausência de um projeto unificado capaz de conferir sentido à vida das pessoas. Citemos então Lúcia Afonso:

“O projeto como uma construção racional é, hoje, uma grande ferida que nos faz desconfiar de nossos sonhos, temer sonhar conjuntamente e fabricar algo mais terrível que a realidade (...).nossos sonhos não dizem mais do futuro, como os antigos oráculos, ou as utopias dos séculos anteriores, mas nos decifram interminavelmente o passado. O passado de uma razão triste, cuja crise pode ser vista e sentida nessa outra crise que é a da imaginação” (Afonso, 1986, p. 17).

Ora, o que isso tem haver com a questão do sujeito? Uma das novidades que Freud traz para seu tempo, e para o nosso, é que o eu não é senhor em sua própria casa e que falar sobre o sofrimento; trazer a tona idéias inconscientes tão pouco faz de nós senhores de nossas casas. Acompanhemos a história da histeria e do nascimento da psicanálise. Freud e Breuer se valiam do método catártico para tratar da histeria, antes deles Charcot se valia da sugestão, e provavelmente, muitos outros métodos foram tentados. Mas a psicanálise só nasceu de fato quando Freud colocou as histéricas para falar. Assim ele deixou de aplicar sobre elas métodos terapêuticos e fez delas sujeito.

Ora, se nos parece razoável a distinção que fizemos mais acima entre natureza e cultura, sobre a arbitrariedade do simbólico, o que poderíamos fazer com um sujeito que nos procura na clínica com uma queixa e pede uma mudança tal e qual? Se as construções da cultura são arbitrárias, se não têm nenhum suporte transcendente, o que um psicólogo deve fazer diante disso? Não há como ele dizer ao sujeito para agir desta ou daquela maneira, pois se de fato devemos levar a sério a arbitrariedade do simbólico, não há um padrão ideal ao qual os indivíduos devem ser ajustados. E quem quer que seja que procure um atendimento psicológico tem de se haver com isso. É somente na medida em que é dado ao sujeito falar sobre seu sofrimento é que ele pode encontrar, ou não, seus próprios caminhos. O psicólogo não pode ser um pedagogo, pois diante dele, se apresenta um sujeito. Ele não pode se embrenhar simplesmente ao adaptar o sujeito à sociedade e coisas desse tipo. Os psicólogos não são e, no nosso modo de entender, nem devem ser parâmetro de saúde mental para ninguém. seria uma exigência pesada demais a qual poucos ou nenhum se enquadraria.

Falamos dessa questão do sujeito a partir da psicanálise, mas acreditamos que ela se apresenta em qualquer tipo de atendimento clínico. Essa é a questão que se coloca para o tempo em que vivemos e cada teoria deve procurar dar sua própria resposta a ela.

É a partir dessa questão que podemos dizer que a atividade clínica não pode ser reduzida a uma terapêutica. Pois, se restringimos nossa atividade à aplicação de técnicas que visem minimizar o sofrimento de quem nos procura, estamos nos iludindo e iludindo a quem nos procura de que há um meio externo ao sujeito de tratar o sofrimento, de que há um conjunto ideal de técnicas capaz de dar conta do sofrimento de todos. Seja qual for a teoria, usando técnicas terapêuticas ou não, ela tem de levar em conta a questão do sujeito. A técnica está presente mas a clínica é também uma arte e, sobretudo, quando falamos de profissionais de saúde pública, comporta dimensões éticas que não podem deixar de ser levadas em conta.

 

Referências bibliográficas

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Teixeira, A. (1999) A Miragem da Compreensão, in Psicanálise e Universidade, Temas Conexos, Belo Horizonte: A. S. Passos.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Adalberto Afonso Lima dos Santos
Rua São Mateus 401/301 - B. Sag. Família
31035 330 Belo Horizonte - MG
E-mail: adalbertoals@bol.com.br

Recebido 22/03/01
Aprovado 18/05/01

 

 

* Estudante do 10º período do curso de psicologia da UFMG.
1 É claro que a função da teoria não pode ser reduzida simplesmente a um suporte para prática clínica, mas sem dúvida essa é uma de suas principais funções.
2 Frase de R. Leriche : A saúde é a vida no silêncio dos órgãos, citada por Canguilhem em O Normal e o Patológico, pg. 67.
3 É claro que não podemos também deixar de dizer que a psicanálise em certa medida vai de encontro a tese de Canguilhem, na medida em que nos fala que todos os indivíduos procuram reviver uma experiência primordial, A Vivência de Satisfação, que teria lhes proporcionado uma fugaz sensação de plenitude.
4 As idéias contidas neste parágrafos foram tiradas de minhas anotações das reuniões do Grupo de Estudos de Metapsicologia ministrado por Guilherme Massara,Prof. da UFMG, e Gilson Ianini, Membro da EBP, entre 97 e 99.