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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.22 no.1 Brasília Mar. 2002

 

ARTIGOS

 

Identidade, alteridade e globalização: uma reflexão a partir do testemunho de Rigoberta Menchú

 

 

Maria Madalena Magnabosco*

Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo busca refletir - através do testemunho narrativo de Rigoberta Menchú como uma das expressões da alteridade latino-americana - as questões relativas a uma justaposição dos conceitos de identificação e identidade no contexto da globalização. Essa justaposição ofusca o discurso político da alteridade pela construção de uma racionalidade homogênea de desenvolvimento econômico, político e cultural, que, ao trabalhar com a verossimilhança de significados, interdita a enunciação de vozes locais, a partir de seus contextos posicionais.

Palavras-chave: Identidade, Identificação, Alteridade, Fetiche da diferença.


ABSTRACT

The article tries to reflect - through the narrative certification of Rigoberta Menchú as one of the expressions of the Latin American alterity - the questions relative to a juxtaposition of the identification and identity concepts in the context of globalization. This juxtaposition dims the political speech of alterity for the construction of a homogeneous rationality of economic , cultural and politic development and, when working with the similarity of meanings cuts of the articulation of local voices from its positional contexts.

Keywords: Identity, Identification, Alterity, Fetish of the difference.


 

 

Muito se tem escrito sobre o testemunho narrativo de Rigoberta Menchú1 , principalmente pela fetichização2 , a partir das ciências política, literária, psicológica, antropológica, do “nativo” e do “espontâneo e feminino” como expressão maior da América Latina nesses tempos de globalização. Tal fetichização realiza-se por teorias interpretativas fundamentadas em uma lógica binária e excludente dos contrários (regida pela álgebra de Boole que comporta apenas os valores verdadeiro e falso sem a inclusão da dúvida). tal lógica objetiva a manutenção do status quo do pensamento iluminista moderno, que, ao totalizar concepções do que vem a ser o homem, acaba por reduzi-lo a determinadas categorias de gênero, classe, raça e etnia, e a restringi-lo aos pólos conceituais e lingüísticos de uma determinada época histórica e social.

Diante desse panorama histórico iluminista que busca compreender as diversas formações culturais e sociais a partir de parâmetros como desenvolvido X atrasado, civilizado X selvagem, racional X emocional, colonizador X subalterno, o testemunho de Rigoberta Menchú tem perdido o contorno de seu corpus lingüístico, dado o enorme desejo de intelectuais contemporâneos em desvendar os segredos de um povo. Desvelar o que está encoberto por outras gramatologias, até então não compreendidas pelo pensamento iluminista moderno, é o que possibilita à razão objetivada apropriar-se do corpo e espírito dessa gramatologia outra para traduzi-la para um esquema de regras e condições apropriadas a uma cultura elevada. Conhecer o outro para salvá-lo, para compreendê-lo, para orientá-lo, para ensinar-lhe a verdadeira linguagem que traduz o que é um mundo real. Essa antropofagia do verbo alheio para torná-lo, não um Outro, mas uma extensão do próprio é o que vem ocorrendo com o testemunho narrativo de Rigoberta Menchú, principalmente quando de sua apropriação por uma mídia que busca as imagens paradisíacas do retorno ao natural e espontâneo como forma de contrapor-se ao ideal desenvolvimentista que ocorreu intensamente a partir dos anos 70 na América Latina3 . Em outras palavras, a lógica binária, própria do raciocínio ocidental, continua sendo o movimento das mãos que escrevem e criam signos culturais para uma reescritura da história da humanidade, ou seja, contrapor-se ao ideal desenvolvimentista é colocar em relevo e expressar, desvelar os segredos da métafora do “natural” e “espontâneo”, o indígena (em uma categoria particular) e a América Latina (em uma categoria regional).

Pode vir a ser em nome desse binarismo (mente X corpo) que os essencialistas têm utilizado o testemunho narrativo como expressão maior da importância do corpo-terra, corpo-homem. No entanto, o significado do corpo-terra para a cultura quiché não é o de reverter posições de poder, mas antes, é o de significar a genealogia cosmogônica e sagrada de seu povo, seus costumes, seus deuses, seus rituais e seus ancestrais. Esse deslocamento dos significados contextuais um dos mecanismos utilizados pela mídia global para a constituição de um poder que traveste uma realidade histórico-social-cultural em uma verossimilhança4 dessa realidade. Enunciando em outras palavras, o humano, constitutivamente um ser-de-falta e, portanto limitado, não possui a capacidade onisciente de uma percepção completa da realidade, o que faz seus processos de consciência e conhecimento serem elaborados gradativamente por recortes de significados.

No entanto, recortar para apreender outras escrituras é diferente de fragmentar para se apropriar dos significados pelo verossímil. A apropriação verossímil de uma realidade, ou seja, a transformação das semelhanças e diferenças em igualdade, é uma deformação paranóica da consciência que se serve das astúcias da razão5 para confirmar certezas e crenças a respeito da realidade. Ao ter por objetivo apenas a confirmação de certezas que dêem continuidade a um certo número de interpretações a partir de crenças pessoais e grupais, não se faz necessária a mudança de concepções sobre o outro e as diferenças. Em outras palavras, continua-se dizendo sobre o outro, mas não a partir dele, continua-se afirmando ou negando características e “verdades” sem a permissão para as dúvidas e para a percepção de contraditórios.6 A eliminação da dúvida e da contradição - elementos essenciais à produção de outros conhecimentos - é o aspecto central da Paranóia, uma psicopatologia vinculada ao poder pela constante busca de certezas que confirmem razões, sem que haja a necessidade de transformar posições pessoais e de alterar concepções e afetos em relação àquele que não faz parte do mesmo.

Pode-se dizer que essa deformação paranóica da realidade, onde a verossimilhança é colocada como verdade absoluta7 , é uma das conseqüências invasoras e expropriativas do discurso dominante sobre a América Latina, onde o corpo latino-americano perde os contornos pela borradura ou sombreamento produzidos pelo reflexo invertido desse “dizer sobre” sem a anterioridade da pergunta8 . Nesse discursar sobre - anterior ao discursar “a partir de” - o Outro não é considerado e reconhecido como sujeito ativo, criador e transformador, mas como um objeto passivo na cena da escritura.

Com essa colocação, se torna possível afirmar que um dos erros constantes na invasão do corpo latino-americano é a confusão feita por quem discursa sobre alguém, entre os conceitos de Identificação e Identidade9 . Para falar e escrever a partir de, necessariamente há que perguntar e pensar em identificações: o que leva um povo a lutar pela terra, a guardar segredos, a organizar-se politicamente? O que afeta esse povo? Quais são seus motivos?

É a partir de um conhecimento e compreensão dos motivos que sustentam valores e formas de sentir que o humano se identifica e tem determinadas ações diante de diferentes contextos. A identificação relaciona-se com o processo de aprendizagem dos afetos, ou seja, de certas formas de sentir, apreender e falar de uma realidade, o que implicará em ações específicas e diferenciadas entre povos, grupos e pessoas. Nesse contexto posicional, isto é, de determinadas ações-afetos, é que surgem as identidades situadas. Digo situadas por não serem permanentes e totais, mas por existirem em função da preservação de objetivos específicos em dados momentos histórico-sociais e culturais de um grupo.

A justaposição entre o processo de identificação e de identidade é um dos aspectos que induz à fetichização do Outro e à paralisia própria das imagens que buscam cristalizar momentos rompendo com os movimentos transformativos e plurais do homem.

As críticas anteriores sobre as formas redutivas e fragmentárias10 de leitura do testemunho narrativo de Rigoberta Menchú não objetivam invalidar e emudecer os discursos até então produzidos, pois cada qual teve seu tempo histórico, lingüístico e perceptivo possíveis. Contrariamente a invalidar é necessário questionar e buscar uma recolocação de determinados problemas sob outros fundamentos conceituais.

Se os homens definem situações como reais, elas são reais em suas conseqüências. Os homens respondem não apenas aos aspectos físicos de uma situação, mas também e, por vezes, primariamente, ao sentido que essa situação tem para eles. Uma vez que atribuem algum sentido à situação, o seu comportamento subseqüente e algumas das conseqüências desse comportamento são determinados por esse sentido anteriormente atribuído.

A nossa linguagem conceptual tende a fixar as nossas percepções e, derivativamente, nosso pensamento e comportamento... A resposta não é dada à situação física, mas à situação conceptualizada.11

A presente reflexão utilizará, para uma recolocação do problema da América Latina como metáfora do feminino subalterno (diante uma racionalidade global), uma análise do testemunho narrativo de Rigoberta Menchú, conceitos interdisciplinares da Literatura, da Antropologia, da Sociologia, da Filosofia e da Psicologia Social.

Reconhecendo a amplitude desses campos de conhecimento, bem como a diversidade de respostas dadas às situações conceituadas a partir de cada um desses campos epistemólogicos, a reflexão se estruturará tendo por instrumentos os conceitos básicos de: consciência, tempo e memória cultural, história e narrativa. Tais conceitos são os suportes da linha de pesquisa Literatura, História e Memória Cultural.

Iniciando pelo campo epistemológico da Psicologia cabe perguntar quais os motivos da escolha pela Psicologia Social, enquanto ciência humana que engloba conceitos básicos da Antropologia, da Sociologia e da Filosofia?

Para melhor situar o ponto de partida dessa motivação, será necessário um retorno à história da Psicologia Social.

Na década de 50, inicia-se uma sistematização da Psicologia Social dentro de duas tendências: uma, na tradição pragmática dos Estados Unidos12 , com objetivos de alterar e transformar atitudes para harmonizar relações de grupo e garantir melhor produtividade por parte dos elementos do grupo; outra, que segue a tradição filosófica européia, com raízes na fenomenologia, buscando modelos científicos totalizantes, como Kurt Lewin13 e sua teoria de campo.

Na década de 60, esse ramo científico tem sua eficácia questionada, já que não conseguia intervir, explicar e prever comportamentos sociais. Com essa crítica ocorre um retorno às análises fatoriais14 , as quais tratam de relações existentes sem prender-se ao “como” e “por quê”. Após 1968, a tradição psicanalítica é retomada e sob sua perspectiva é feita uma crítica à Psicologia Social norte-americana15 , concebida como ciência ideológica e partidária de certos interesses e determinados grupos dominantes. Dessa forma, o conhecimento produzido era produto de condições históricas específicas, o que invalidava a transposição desse conhecimento para outros países em outras condições histórico-sociais.

Na América Latina, a Psicologia Social oscila entre o pragmatismo norte-americano e a visão abrangente do homem, que só podia ser compreendida filosófica ou sociologicamente. Em 1976, a Associação Venezuelana de Psicologia Social junto com a Associação Latino-Americana de Psicologia Social procuram novos rumos, de forma a atender à nossa realidade histórico-social. É quando surgem no Peru, em 1979, propostas concretas de uma Psicologia Social em bases materialista-históricas16 ; bases essas que superam a crise da Psicologia pela recolocação do problema do indivíduo como um ser histórico e não como um ser reduzido ao biológico, em homeostase com o meio e com processos obscuros que ocorriam “dentro” dele.

Assim, a partir de 1979 surge na América Latina uma Psicologia Social que recupera o indivíduo na intersecção de sua história com a história da sociedade - apenas esse conhecimento nos permitiria compreender o homem como produtor da história.

O ser humano traz consigo uma dimensão que não pode ser descartada, que é sua condição social e histórica, sob o risco de termos uma visão distorcida (ideológica) de seu comportamento.17

Com essa recolocação teórico-conceitual da Psicologia Social, o homem passa a ser visto como produto e produtor de sua história pessoal e da história de sua sociedade. Ele deixa de ser um binômio da objetividade positivista X subjetivismo para reposicionar-se como um ser concreto, manifestação de uma totalidade histórico-social. É através do processo de consciência pela apropriação da linguagem e pela ação no mundo que o homem se concretiza por e nas suas produções como um ser de metamorfoses18 .

Assim, pensar em consciência é necessariamente pensar e apreender os processos de aprendizagem da linguagem, da escritura e das ações de um grupo social como sendo as formas de realizações e transformações das realidades históricas no tempo-espaço de cada contexto produzido pela (re)criação e (re)escritura de novos signos sócio-culturais, cuja função principal é a comunicação - mediação interpessoal sob novas posicionalidades.

La realidad de la conciencia es la realidad del signo. Y el signo es social. El lenguaje no surge, en la historia de la humanidad, ni es adquirido por el niño, ni se desarrolla, fuera de la sociedad humana. El lenguaje es un producto de la actividad humana y es una práctica social. La conciencia, por lo tanto, sólo puede formarse en sociedad.19

Em relação ao corpus do testemunho narrativo de Rigoberta Menchú, a consciência é um dos elementos básicos para a (re)construção e (re)escritura da história maia-quiché em contraposição à construção e escritura de racionalidade global. Foi pela possibilidade de releitura dos signos culturais de seu povo, através das lutas com os ladinos20 , da tentativa de preservação dos valores da comunidade via o segredo, da criação de movimentos que denunciassem as violências com os índios, que Rigoberta pôde construir uma consciência outra, uma história outra que resultou nas lutas políticas e preservadoras das memórias e identificações dos maia-quichés. Identificações essas que no contexto histórico-social-cultural de suas lutas puderam gerar identidades.

Para diferenciar esses dois conceitos, será realizada uma recorrência ao trabalho de Novaes, (1993:26)21 :

“A identidade (...) permite a criação de um nós coletivo, que leva a uma ação política eficaz, embora momentânea. É um fenômeno que implica a constituição de uma mesmice, forjada através da manipulação de sinais culturais diacríticos que, embora procedentes do contexto original de um destes grupos, não têm, enquanto sinal, o mesmo sentido que possuíam no seu nascedouro. A identidade emerge quando sujeitos políticos se constituem e, neste sentido, a possibilidade de criação de um nós coletivo feminino, um “nós mulheres”, “nós índios”, “nós homossexuais” implica, necessariamente, a desconsideração das diferenças que marcam a distância entre vários grupos unidos num único sujeito político.”

Pode-se verificar que, diferentemente da identificação22 - que é um processo de internalização da linguagem e de seus significados a partir dos elementos afetivo-valorativos de uma cultura -, a identidade é um processo momentâneo com fins a denunciar e dotar de poder expressivo um determinado posicionamento histórico de determinados grupos sociais que se assemelham nas opressões e violências sofridas, dadas suas diferenças com um modo de pensar dominante. Assim, a identidade produz a relevância de determinados signos culturais, mas esses signos não esgotam o sujeito político e suas identificações, pelo contrário, reforçam-nas pelas possibilidades de reavaliá-las por um retorno a seus significados de origem através de suas respectivas memórias culturais e dos conseqüentes testemunhos narrativos.

A necessidade de rever essa justaposição entre identidade e identificação também tem sido considerada por novos pensadores da América Latina, os quais têm repensado a própria História a partir de suas vivências e reflexões, bem como da crítica a determinados textos produzidos sobre a América Latina. Isso ocorre, por exemplo, com Mendieta (1997:533), que reescreve um texto produzido por Santiago Castro-Gómez a partir de uma crítica sobre a não-diferenciação entre identidade e identificação:

De todas maneras, estoy en desacuerdo en al menos los siguientes cuatro puntos: Primero, me parece que Castro-Gómez no ha diferenciado entre identidad e identificación, o para ser más claro, entre la lógica de individuación por medio de la subjetivación que caracteriza a la modernidad, y la lógica de individuación por medio de la agencia ( agency: o subjetividad socialmente potenciada) que caracteriza a los contextos posmodernos, poscoloniales y globales. Mientras que en el primer caso, y Castro-Gómez nota esto correctamente, la identidad asume una unidad homogénea construida retroactivamente, generalmente una unidad ficticia. En el otro caso, el de la identificación es una reclamación, toma, anunciación y denuncia del poder social, control social; es una desfetichización y desenmascaramiento de quien o que tiene la legitimidad para dar y licenciar reconocimiento o para permitirlo. En la identificación está el meollo de una topografia diferencial y social: ¿Quién tiene el poder y la autoridad para permitir que ciertas voces hablen o sean silenciadas? De hecho, discursos acerca de la identificación tematizan nuestra propia representación (darstellen), y deconstruyen aquellos que clandestinamente quieren abogar (vertreten) por otros y hablar por ellos.23

nessa e a partir dessa justaposição conceitual o testemunho de Rigoberta Menchú foi, muitas vezes, reduzido a uma etnografia, transformado em justificativas de necessidades ecológicas e usado para reafirmar a necessidade de “civilizar” a América Latina em sua razão infantil.

Falar por alguém é transformá-lo em subalterno, em ser passivo e, é já se colocar como superior a esse alguém. É uma forma de protecionismo tirano que enfraquece e cria marginalidades por uma interdição da pessoa em ocupar o seu lugar na fala e na escritura. Essa é uma astúcia da razão paranóica (uma das características da racionalidade da globalização), onde a diferença é percebida como confronto hostil, sendo a suposta proteção uma hostilidade deslocada àquele que passou a ser dito como inferior. Para justificar esta inferioridade, serão escolhidos signos culturais que, ao invés de serem concebidos como sinais diacríticos de uma cultura, passam a ser comparados e qualificados como sinais de atraso e infantilidade, ou seja, passam a ser destituídos de suas origens, contextos e histórias e são - pela verossimilhança - fetichizados como objetos projetivos de um mal. Tal destituição vem a ser uma forma sutil de exercer poder sobre algo e alguém. Aqui, os signos perdem a orientação valorativa, de sentido e significado, tal como bem explicita Bajtín24 em suas concepções sobre os signos como produtos sociais e elementos imprescindíveis da e para a consciência.

Mediante um discurso que fetichiza pelo deslocamento de significados, conforme interesses específicos, é possível compreender a insistência de Rigoberta em resguardar os segredos de seu povo25 . Pelo segredo se torna possível a preservação da gênese significativa de sua cultura, a qual traz a identificação dos maia-quichés, além dos cenários rituais e das teorias interpretativas sobre eles.

Nesse sentido, um dos aspectos que chama atenção são as epígrafes do livro, principalmente aquelas onde são utilizadas falas do Popol Vuh26 . No contexto de preservação para uma não-expropriação de seus valores, as epígrafes podem assumir o caráter de segredos do povo quiché. Sendo as mesmas um dos modos de transcender significados literais da cultura, pode-se pensar que os segredos são as metáforas da língua quiché para dizer pela cosmogonia o que não pode ser dito pelo idioma oficial, o qual, ao conceber gramaticalidades únicas, lê o simbólico como literalidade de formas, lê as diferenças como subalternidade, o dialeto como grunhido da língua.

Apesar de ter aprendido a língua oficial, para melhor se situar entre os ladinos e com eles se comunicar, o dialeto maia-quiché é o que diz dos significados que ultrapassam os fatos históricos, sociais, literários, psicológicos, daqueles significados que criam vínculos afetivos e que não admitem traduções - apesar de elas (traduções) serem realizadas. Um aspecto da tradução é a competência lingüística que permite rastreios do que é formalizado e institucionalizado como concepções de uma realidade que permite um acesso aproximado ao mundo de significados do Outro. Um segundo aspecto, não da tradução, mas do texto da vida, é o aprendizado da língua vernacular, daquela que, apesar de suas formalizações gramaticais, possui nuances e matizes que apenas os que por ela foram afetados podem dizer. Diante disto, é feita a pergunta: até que ponto a subalternidade pelo discurso “sobre” não é uma forma de ruptura dos valores-afetos e sentimentos de base de um grupo, de tal forma que, ao descaracterizar a língua vernacular, na verdade se desvinculam afetos e sentimentos de pertencência do grupo? Desvinculação essa que gera uma alienação social que vulnerabiliza a alteridade e a torna presa das dúvidas da razão binária (certo X errado, bem X mal, normal X ridículo, etc.)?

Assim, é oportuno levantar algumas questões:

Não estaria a globalização com seus movimentos político-econômicos utilizando objetivações, isto é, recortes intencionais de figura-fundo para criar um novo panorama de desenvolvimento que continua produzindo homogeneidades lingüísticas e simbólicas sobre a alteridade e suas identidades posicionais?

O posicionamento resistente de Rigoberta Menchù em relação às questões políticas locais e mundiais sobre a alteridade indígena não viria a ser um modo de criticar as verossimilhanças criadas pela globalização no tocante à necessidade de desenvolvimento de todos os povos?

Seu silêncio em relação aos segredos de sua tribo não seria uma maneira de recusar algumas formas de articulação com os significantes culturais produzidos pelo mercado cultural global?

Não estaria Rigoberta, através de seu testemunho, se opondo a uma retórica da diferença criada pelos movimentos globais, os quais, ao dizerem estar dissolvendo o binômio Centro - Periferia, estão destruindo os significados de uma política da diferença?

A globalização, no tocante às alteridades situadas em racionalidades que divergem da razão desenvolvimentista econômica, não estaria convertendo a diferença em um fetiche que é constantemente reafirmado pelo discurso da identidade e da lógica simbólico-institucional dos que detêm o monopólio dos sentidos?

Mediante tais questões as quais permanecerão por longo tempo na pauta da literatura, da história, da política e das memórias culturais imagino poder enunciar que, através do testemunho de Rigoberta Menchú, as noções de identidade, alteridade e globalização necessitarão constantes revisões e críticas. Em outras palavras, esses conceitos deverão passar por desconstruções onde o sujeito testemunhal deixe de ser visto apenas como um objeto estético de reflexão disciplinar para ser concebido como um sujeito mundano e politizado que produz narrativa e culturalmente seus discursos, seus símbolos, seus desejos, suas estratégias políticas, econômicas e culturais. Assim, não necessariamente para se constituir sujeito ele deverá se adequar a todas as estratégias de desenvolvimento e linguagem criadas pela globalização. Afinal, identidades e alteridades não são globais, ou seja, elas existem em contextos situacionais onde, pela apropriação da enunciação, buscam momentos (e não totalidades) de resistência e filiação nos modos de expressão de seus projetos culturais, políticos, literários, econômicos, com outras racionalidades.

Por essa via de articulações momentâneas e diferenciadas a alteridade, enquanto um outro que afeta e altera a partir de seus próprios discursos, pode continuar a produzir seus bens simbólicos e públicos, e a oferecer a uma racionalidade que homogeneíza sentidos a uma constante possibilidade de repensar a si mesma.

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência
Maria Madalena Magnabosco
Rua Cabo Verde, 45 / 201 - Cruzeiro
30310-260 Belo Horizonte-MG
Tel.: +55-31-3221-8174 / +55-31-3221-8890
E-mail: magnamam@hotmail.com

Recebido 07/12/00
Aprovado 20/10/01

 

 

* Psicóloga clínica. Mestre em Estudos Literários na Interdisciplinaridade Psicologia-Literatura. Doutoranda da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais.
1 BURGOS, Elizabeth. Me llamo Rigoberta Menchú y así me nació la conciencia. México: Ed. Siglo Veintiuno, 3ª ed., 1987.Obs: A partir de agora todas as referências à obra aparecerão com o sobrenome da autora e o número da página correspondente.
2 O termo Fetiche e Fetichização advêm da Psicanálise. Foi formulado por Sigmund Freud na obra Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, através do estudo dos modos de corporificação dos deuses já mortos nas culturas primitivas. O conceito diz da substituição da totalidade de um objeto por uma parte do mesmo; parte essa que passa a representar o objeto total, chegando mesmo a adquirir um caráter autônomo de existência, como se fosse o objeto. O termo foi afiliado nas teorias literárias pelos estudos sobre sujeitos subalternos e identidade. Ver: BHABHA, In: HOLLANDA, Heloísa, 1991. p. 177.ZAVALA, 1995. p. 13.
3 RICHARD, 1996. p.736-737
4 O conceito de verossímil aqui utilizado significa a apreensão da imagem primeira de gestos, comportamentos, fatos, etc, sem a consideração do contexto espaço-temporal da apreensão. Pode-se dizer que é uma comparação sem propriedade, já que originária da primeira impressão, mas sem a apropriação dos fundamentos sócio-histórico-culturais de um dado fato. O verossímil assemelha-se a, mas não é, dado que a semelhança contém a igualdade, sem entretanto, reduzir-se a ela.
5 O conceito de razão aqui utilizado significa uma forma de exercício cognitivo que aproxima-se das lógicas aristotélicas e das demais que a sucederam, como por exemplo, a lógica matemática, a lógica das proposições, dentre outras. A astúcia da razão vem a ser uma forma literal de ler e pensar os gestos, os comportamentos, os hábitos de um determinado grupo, onde não se considera os contextos que atribuem significados a esses. Por apreender os gestos em si, seu ritual apenas emoldura a expressão do valor, mas não o cria.
6 Ver: BHABHA, 1991. p.178.
7 FERNANDEZ, 1979.
8 RICHARD, 1997. p.357-358.
9 MENDIETA, 1997. p.533. ZAVALA, 1995. p.13
10 Tais críticas às formas redutivas de leitura do testemunho podem ser encontradas nos estudos de RICHARD, Nelly, 1996. p.737. Nesses estudos ela enuncia como os essencialistas e algumas linhas de investigação feminista têm fixado o feminino e suas formas de expressões nas imagens do corpo-natureza da América Latina.
11 MERTON, 1993. p.53
12 WATZLAWICK / HELMICK BEAVIN / JACKSON, 1967.
13 MARX / HILLIX, 1973. p.431. A Teoria de Campo definese como o desenvolvimento do sistema de Psicologia motivacional ou vetorial onde a ênfase para o conhecimento incide mais sobre os fatores psicológicos do sujeito do que sobre os fatores ambientais que o circundam. É a percepção dos atributos físicos que determina como o indivíduo reagirá.
14 Ibidem, 1973. p.490. A análise fatorial confere uma atenção especial à coerência do comportamento do indivíduo, sendo esse comportamento passível de ser isolado e descrito por certas propriedades ou fatores, como em uma técnica estatística.
15 Ibidem, 1973. p.511.
16 LANE, 1992. p.78. Ver: Pichon Rivière, Fernandes Calderón, De Govia.
17 LANE, 1984. p.12-13.
18 CIAMPA, 1993. p.144-145.
19 SILVESTRINI / BLANCK, 1993. p.32. Tradução: A realidade da consciência é a realidade do signo. E o signo é social. A linguagem não surge, na história da humanidade, nem é adquirida pela criança, nem e se desenvolve fora da sociedade humana. A linguagem é um produto da atividade humana e é uma prática social. A consciência, portanto, somente pode formar-se na sociedade.
20 ladinos: Atualmente é o guatemalteco - independente de sua situação econômica - que recusa os valores indígenas de sua origem Maia. O termo também significa mestiço.
21 NOVAES, 1993. p.26.
22 MEAD, 1972.
23 MENDIETA, 1997. p. 533. Tradução: De toda maneira, estou em desacordo, pelo menos, com os seguintes quatro pontos: Primeiro, parece-me que Castro-Gómez não diferenciou entre identidade e identificação, ou para ser mais claro, entre a lógica da individualização por meio da subjetivação que caracteriza a modernidade, e a lógica da individualização por meio da agencia ( agency: ou subjetividade socialmente potenciada) que caracteriza os contextos pós-modernos, pós-coloniais e globais. Enquanto no primeiro caso, e Castro-Gómez nota isso corretamente, a identidade assume uma unidade homogênea construída retroativamente, geralmente uma unidade fictícia. No outro caso, o da identificação é uma reclamação, tomada, anunciação e denúncia do poder social, controle social; é uma desfetichização e desmascaramento de quem ou que tem a legitimidade para dar e licenciar reconhecimento ou para permiti-lo. Na identificação está o miolo de uma topografia diferencial e social: Quem tem o poder e a autoridade para permitir que certas vozes falem ou sejam silenciadas? De fato, discursos acerca da identificação tematizam nossa própria representação (darstellen) e desconstroem aqueles que clandestinamente querem advogar (vertreten) por outros e falar por eles.
24 SILVESTRINI / BLANCK, 1993. p. 30-31-32.
25 Mediante o contexto sócio-político de repressão e violência em relação ao índio na Guatemala, Rigoberta explicita em seu primeiro testemunho sobre a necessidade de preservação de sua cultura ancestral através da manutenção de alguns segredos.
26 O Popol Vuh é considerado um livro sagrado dos povos maia, o qual conta como se deu a criação do mundo a partir da ação dos deuses que compõem sua religiosidade. Tem valor semelhante ao da Bíblia para os cristãos, sendo um livro que instrui sobre a sacralidade da natureza e diz como devem ser tratados e respeitados cada um de seus elementos.