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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.22 no.1 Brasília Mar. 2002

 

ARTIGOS

 

Drogas e trabalho: uma proposta de intervenção nas organizações

 

 

Clarice Sampaio Roberto; Marta Conte; Rose Teresinha da Rocha Mayer; Sandra Djambolakdjian Torossian; Tatiane Reis Vianna

Grupo Vindicas

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, trazemos à discussão uma proposta de abordagem ao uso de drogas (legais e ilegais) no local de trabalho. O relato da intervenção e das respectivas considerações partiu de uma assessoria prestada a uma empresa pública, de grande porte, que demandava um projeto terapêutico e preventivo para tratar do problema. Como resposta, foi desenvolvida uma política institucional específica, alicerçada no seguinte tripé: a implantação de uma rotina norteadora para a abordagem dos funcionários quanto ao uso de drogas no trabalho; o credenciamento de locais para tratamento e a criação de comitês, liderados por funcionários, que passaram a ser responsáveis pela condução do programa após o término do trabalho da assessoria. Ressaltamos a importância da participação do maior número possível de funcionários, principalmente daqueles com poder decisório para a sustentação e implementação de um Programa, bem como a necessidade de criar uma política que intervenha no instituído e que considere os âmbitos administrativo, operacional e de saúde. Assim, marca-se uma diferença em relação à forma como, até há poucos anos, vinha sendo tratado o problema, oscilando entre o descaso e a punição.

Palavras-chave: Drogas, Trabalho, Política institucional.


ABSTRACT

In this article we present the proposal of legal and illegal drugs use approach, at workplace. The intervention report and the respective appreciation start from an assistance work that took in a great public enterprise, which wished a therapeutic and preventive project for the problem approach. As an answer, a specific institutional policy was developed, based on the following tripod: the establishment of a guiding routine for the employees approach, concerning drug use at workplace; the inscription of treatment places and the creation of committees leaded by employees in charge of the program conduction, after the end of the assistance work. We emphasize the importance of a great number of workers in the program, specially those with power of decision, in order to maintain and implement a Program, as well as the need of creating a policy that intervenes in what is already established and that considers the administrative, the operational and the health spheres. So, a difference is established on the way the problem had been treated in the last years, oscillating between negligence and punishment.

Keywords: Drugs, Workplace, Institutional policy.


 

 

Algum tempo se passou desde quando as empresas subestimavam os efeitos das ocorrências ligadas ao uso de drogas no local de trabalho, negando-os ou minimizando-os. Atualmente, observa-se que as empresas públicas e privadas têm se preocupado com o aumento da incidência dessas situações.

A maior investigação feita em torno do uso de álcool e de drogas no local de trabalho foi a pesquisa realizada pelo SESI (Fridman e Pellegrini, 1995) em 23 empresas gaúchas, públicas e privadas, envolvendo 51600 funcionários. Essa pesquisa concluiu que a prevenção é fundamental, tendo em vista que 35% do total dos funcionários apresentavam problemas decorrentes do uso de álcool, segundo o teste CAGE e, ainda, que 54,7% dos trabalhadores das empresas tinham menos de 34 anos, o que justifica o investimento na prevenção de novos casos de dependência. De acordo com os autores antes citados, os índices de recuperação mostraram-se animadores, girando em torno de 80%.

O número de empresas que desenvolvem qualquer atividade relacionada à prevenção e ao tratamento ao uso abusivo de drogas ainda é pequeno, e a maioria delas conta com atividades isoladas, por iniciativa e interesse de poucos técnicos. Essas iniciativas começaram a surgir nas empresas em meados da década de 80. Entretanto, concebemos que esses são entraves que precisam ser ultrapassados para que não se trabalhe como bombeiros em ação, “apagando incêndios”. Assim, pensamos que programas de prevenção, para serem consistentes e se manterem, dependem de uma oficialização (recursos destinados, envolvimento das chefias imediatas e da direção), da estruturação organizada das ações e da efetiva formação coletiva para trabalhar em conjunto, estabelecendo sua formalização na empresa (introjeção de idéias através da sistematização das ações de prevenção na vida cotidiana da empresa). Além disso, consideramos fundamental intervir na cultura institucional a fim de promover mudanças significativas, levando em conta os aspectos que predispõem ao uso/abuso de drogas, advindos das relações de trabalho e também como uma opção pessoal.

Partindo dessas idéias e respondendo ao pedido feito por uma empresa em particular, o Vindicas – Grupo de Trabalho e Estudos das Manifestações Sociais Contemporâneas – propôs um trabalho que compreendeu dezoito meses de intervenção. Nos primeiros doze meses, ocupamo-nos da implementação do programa e, nos seis meses subseqüentes, encarregamo-nos de assessorar os funcionários responsáveis pela condução do trabalho.

A realidade da empresa na qual se desenvolveu a assessoria caracterizava-se por um elevado número de acidentes de trabalho, sobrecarga dos serviços médicos, faltas, atrasos, excessivas solicitações de licenças-saúde, perda de técnicos habilitados, inúmeros conflitos interpessoais e, por fim, um clima de sobressaltos, causado pelas situações de urgência, envolvendo o uso de drogas, que mobilizavam todo o setor de trabalho e paralisavam parcialmente as atividades da empresa. Todos esses indicadores guardavam uma relação direta com o consumo de drogas e com a diminuição da qualidade de vida do trabalhador, confirmando as postulações de Campana (1997).

Assim, a intervenção realizada pela assessoria desenvolveu-se no sentido de alterar a cultura da empresa no que dizia respeito à concepção e à abordagem do problema do uso de drogas no local de trabalho, através de uma política institucional.

 

As etapas

A proposta de intervenção constituiu-se de cinco etapas, envolvendo três momentos: leitura diagnóstica, implantação do programa e assessoria para sua continuidade.

1ª Etapa

Nesta etapa, buscou-se conhecer as demandas relativas ao problema do uso de drogas no local de trabalho, através do levantamento de necessidades realizado em diferentes locais e segmentos da organização. Esse levantamento permitiu a escuta ampla da demanda, o mapeamento das principais questões envolvidas no problema e a análise da cultura da empresa. Esquematicamente, a etapa inicial compreendeu:

• o diagnóstico institucional (levantamento dos dados e análise dos aspectos institucionais presentes na determinação do problema);

• o mapeamento dos funcionários, nos diferentes setores, com disponibilidade e motivação à participação no programa.

2ª Etapa

A partir da análise da cultura institucional foi possível realizar a reformulação do projeto inicial, permitindo a devolução da leitura diagnóstica juntamente com a apresentação da nossa proposta de trabalho. Esse processo constituiu-se numa estratégia de engajamento dos funcionários da empresa no programa.

Através do levantamento de dados foram encontrados indicativos do uso e abuso de drogas nos locais de trabalho. Por outro lado, inúmeros funcionários mostravam disponibilidade de adesão ao programa.

Constatou-se, então:

• uma cultura adaptada a situações nas quais as drogas eram utilizadas durante o horário de trabalho, em razão de padrões de comportamento historicamente construídos na empresa, tais como: forma de sentir-se aceito no grupo; para enfrentar os riscos do trabalho; em função dos conflitos existentes nas relações de trabalho e de poder; em função da baixa valorização do trabalhador e da atividade exercida; em razão da chefia não se autorizar na função ocupada e, dessa forma, permitir o uso de drogas no horário de trabalho e pelo envolvimento dos próprios chefes com o uso ou abuso de drogas no ambiente de trabalho e em comemorações festivas.

• a existência de maior número de funcionários com problemas de uso de drogas no setor operacional, onde o trabalho era mais pesado, de maior risco e com menor salário;

• a falta de alternativas de lazer para os intervalos das jornadas de trabalho e para os dias de chuva (um número expressivo de funcionários trabalham na rua e em plantões);

• a presença de situações de tráfico no ambiente de trabalho e a complexidade dessa situação, dificultando a adoção de medidas para coibir ocorrências desse tipo;

• a ausência de procedimentos comuns que cumprissem uma função de limite em relação à repetição de episódios de uso e abuso de drogas no ambiente de trabalho, além das dificuldades na aplicação dos já existentes;

• a preocupação com a melhoria das condições de trabalho por parte das diferentes instâncias hierárquicas, bem como um interesse geral em relação ao programa.

A partir da formação de diversos grupos de trabalho, e com base nas constatações acima, implementou-se um programa destinado à definição de estratégias voltadas para:

• a criação da política institucional da organização;

• o estabelecimento de intervenções preventivas e terapêuticas, considerando e incrementando as já existentes;

• o envolvimento de diferentes níveis hierárquicos, responsabilizando cada um a partir de sua função.

3ª Etapa

A 3ª etapa compreendeu:

• a criação coletiva de propostas preventivas e terapêuticas;

• a reorganização do banco de dados do serviço médico da empresa;

• o apoio e o suporte institucional para uma política relativa ao uso de drogas;

• a estruturação dos grupos preventivos e terapêuticos;

• a acolhida de funcionários a serem encaminhados aos locais credenciados para tratamento em função de uso/abuso de drogas;

• a capacitação das chefias de diferentes níveis hierárquicos.

4ª Etapa

Essa etapa caracterizou-se pela formalização do programa terapêutico e de prevenção, através de um seminário e da criação de uma estrutura institucional, visando não somente à continuidade como também à ampliação do referido programa. Essa estrutura era formada por um comitê coordenador e por comitês setoriais de trabalho.

5ª Etapa

A 5ª etapa foi constituída por:

• assessoria ao comitê coordenador;

• planejamento estratégico realizado com a participação de todos os integrantes do programa, visando à avaliação das ações inicialmente empreendidas pelos comitês por setor, bem como a dos objetivos alcançados, e a proposição de novas metas a serem desenvolvidas.

 

Esclarecendo Pressupostos que Justificam Nossa Proposta de Trabalho

A intervenção da assessoria é pautada pelos fatores inter-relacionados na determinação do uso/abuso de drogas, quais sejam: o funcionário, com sua história singular e dinâmica familiar; o contexto cultural da organização, inserindo-se aí a história da instituição, associada à disponibilidade do produto, isto é, a presença da droga no local de trabalho.

Pela influência desses três fatores, observa-se que as organizações, ao longo de sua história, estruturam-se a partir de padrões de relacionamento nos quais o uso de drogas vai arraigando-se e cristalizando-se de tal forma que pode adquirir a significação de congregar, proteger, liberar e fortalecer.

Considera-se que a função de assessoria em uma organização é a de possibilitar mudanças na sua cultura, ampliando significados em torno de determinados comportamentos ligados ao problema, através de questionamentos e de ações sistemáticas de capacitação dos funcionários no que se refere à compreensão e à abordagem dessa problemática no ambiente de trabalho.

Cabe ressaltar que a referência à psicanálise orientou a escuta no desenvolvimento das técnicas de intervenção escolhidas. A concepção de sintoma social1 permeou nossa intervenção, desde a compreensão dos aspectos institucionais e sociais que contribuem para a determinação do uso de drogas no trabalho até a forma de abordagem, buscando uma implicação subjetiva dos funcionários em geral. Assim, também do ponto de vista terapêutico, é de interesse a construção de alternativas singulares para o enfrentamento da situação e não apenas uma adaptação comportamental visando somente à produtividade.

Dessa maneira, no trabalho desenvolvido, a intervenção feita pela assessoria apostou, de forma ampla, no engajamento dos diferentes níveis hierárquicos da organização por entender que é na medida em que alguém participa e decide que reconhecerá os rumos traçados, empenhando-se em fazê-los valer. Para isso, foi proposta uma ação conjunta entre a assessoria e os funcionários participantes, com vistas a que o programa em questão se tornasse consistente e que cada integrante tivesse sua parcela de responsabilidade. Ainda, a superação da problemática precisou abranger as dimensões administrativa, operacional e de saúde, pois só uma intervenção marcada pela pluralidade de estratégias poderia frutificar.

 

Escolhendo Estratégias

Buscou-se, nos grupos de trabalho, uma escuta que permitisse intervir adequadamente, viabilizando a comunicação entre os participantes e produzindo, a partir de dúvidas e sugestões, uma construção coletiva, orientada por conhecimentos técnicos.

De maneira geral, foram utilizadas as seguintes técnicas:

• grupos terapêuticos;

• entrevistas preliminares;

• oficinas;

• grupos operativos;

• planejamento estratégico;

• dinâmica de grupo.

Levando-se em consideração os dados obtidos no levantamento de necessidades, as técnicas antes citadas foram utilizadas nas seguintes atividades:

Reuniões

Os encontros ocorreram ao longo do desenvolvimento do programa, de forma sistemática (mensal ou bimestral), com a participação de funcionários de níveis hierárquicos superiores e/ou de importância central, levando-se em conta as características do trabalho de cada setor. O objetivo das reuniões era o de fazer circular a comunicação entre os diversos integrantes dos grupos, buscando o apoio político, a troca de idéias e a reatualização de combinações para alcançar o êxito das ações propostas.

Banco de Dados

Esse procedimento de coletar e registrar informações foi criado com o intuito de qualificar o serviço médico, permitindo um diagnóstico mais efetivo da realidade e, em conseqüência, favorecendo uma intervenção mais eficaz.

O banco de dados resultou da junção de outros três já existentes na organização: diagnóstico médico, segurança do trabalho e licenças de saúde. O cruzamento das informações existentes sobre problemas relacionados ao uso de drogas mostrou situações de saúde correlacionadas, tais como: acidentes, violências, traumatismos, lesões, queimaduras, transtornos do fígado, pâncreas, hemorragias gastro-intestinais, afecções mal definidas, repetições de prescrições, entre outros.

Desde que sistematicamente atualizado, o banco de dados é uma fonte de referência para avaliar, de forma quantitativa (número de casos e de encaminhamentos feitos), as possíveis intervenções decorrentes da execução do programa preventivo e terapêutico implantado.

Grupos de Ação

De caráter preventivo, os grupos, divididos para discussão de temas específicos (lazer e cultura, material informativo e valorização do trabalho), eram constituídos por funcionários interessados na busca de capacitação e na estruturação de ações preventivas, sinalizando uma direção para a política institucional.

Grupo de Apoio

Representantes com poder decisório e também composto por técnicos vinculados à área de recursos humanos (saúde, administrativa, entre outros) compunham esse grupo que funcionava como grupo operativo. Sua meta era a de apoiar ações e sedimentar definições rumo à consecução da política institucional. A maior parte dos integrantes da área de recursos humanos desse grupo veio a compor, no segundo momento da implantação do programa, o comitê coordenador.

Grupo de Estudos

Também com sistemática de grupo operativo, atuava em encontros, antecipando assuntos mediante a preparação de textos, centrando a reflexão sobre a temática do uso de drogas, isto é, discutindo concepções e conceitos que transitavam do senso comum a posicionamentos fundamentados em informações científicas. Visavam a instrumentalizar e promover o debate entre os participantes dos grupos de ação, subsidiando-os na construção de suas propostas preventivas.

Grupo de Orientação

Com funcionamento de grupo terapêutico, esse grupo foi reunido fora da empresa, com intuito de resguardar os funcionários em busca de tratamento. Era formado por pessoas com problemas de uso de drogas, que compareciam aos encontros encaminhados pelas chefias, colegas e/ou por iniciativa própria.

O grupo propunha-se a acolher e fortalecer demandas de tratamento, acompanhar o ingresso ao tratamento e, quando fosse o caso, a reinserção no trabalho.

Plantão

Esse espaço cumpriu duas funções: uma terapêutica e outra de assessoria. Na via terapêutica, o funcionamento foi de entrevistas preliminares, voltadas à formulação e ao reforço da demanda para o encaminhamento efetivo ao tratamento. Na via de assessoramento a chefias, consistiu na supervisão e reflexão quanto à forma mais eficaz de intervir junto a subordinados que apresentassem dificuldades vinculadas ao uso de drogas.

Seminário

Evento pontual, reunindo pessoal de vários níveis hierárquicos dentro da empresa, com o objetivo de oficializar e divulgar a rotina de abordagem dos funcionários quanto ao problema do uso/abuso de drogas, discutindo as ações preventivas específicas.

Palestras

Atividade voltada para grandes grupos (aproximadamente 50 pessoas). Exposição, associada a recursos audiovisuais, com vistas a sensibilizar e a informar o maior número de funcionários sobre o programa, bem como a apresentar e discutir conceitos acerca das drogas. Destaca-se a importância desses eventos, já que ofereciam espaço para a colocação de dúvidas e posicionamentos.

Capacitação

Além dos encontros dos grupos mencionados, não menos importantes foram as “oficinas”, realizadas sistematicamente; eram voltadas às chefias, de caráter informativo, reflexivo e compreensivo, para auxiliar na aplicação da rotina de abordagem do funcionário quanto ao problema do uso de drogas.

Avaliação

Construiu-se um sistema de monitoramento e de avaliação que acompanhou todo o desenvolvimento do programa. O objetivo foi verificar a qualidade do serviço prestado, considerando aspectos quantitativos e qualitativos. Os instrumentos utilizados foram questionários específicos para as atividades de palestras, seminários, oficinas. Para as demais ações, optou-se pelo registro de palavras-síntese.

 

Propondo Eixos Estruturantes em Torno dos Quais uma Política de Prevenção Pode se Articular

Considerando que a implantação de uma política institucional para a abordagem do uso e abuso de drogas precisa estar articulada à história e ao contexto da organização, envolvendo um número significativo de funcionários para lhe dar sustentação e continuidade, a política desdobrou-se em três eixos fundamentais:

• a criação e a implantação da “Rotina para a abordagem dos funcionários usuários de drogas”. Essa sistemática teve caráter preventivo. Nasceu da necessidade de unificar os procedimentos em relação ao uso de drogas no local de trabalho. Constituída por cinco estágios, previa diferentes situações do uso de drogas, incluindo reincidências, para as quais eram propostas formas de intervenção e medidas administrativas, reforçando, sempre, o encaminhamento para tratamento;

• a criação de uma estrutura de comitês, na qual se incluiu um comitê coordenador e um comitê em cada setor de trabalho com a responsabilidade de dar continuidade ao programa. Essa estrutura foi proposta a fim de atender à necessidade de proceder uma modificação da cultura da organização quanto ao uso de drogas no ambiente de trabalho e quanto à unificação de procedimentos, intensificando estratégias preventivas;

• o credenciamento de clínicas para tratamentos ambulatoriais e internações. Esse processo iniciou-se antes da contratação da assessoria e efetivou-se durante o período de desenvolvimento do trabalho, facilitando o acesso dos funcionários ao tratamento.

 

Definindo Indicadores para Avaliar a Implementação e o Desenvolvimento do Programa

O processo de avaliação do Programa envolveu duas metodologias: uma quantitativa e outra qualitativa. Procedeu-se também à avaliação de cada atividade desenvolvida através da criação de instrumento específico.

Indicadores Quantitativos: A análise dos resultados ancorou-se em indicadores quantitativos, quais sejam: número de funcionários informados sobre o programa e aqueles envolvidos diretamente nele (número de funcionários que participaram das palestras; número de funcionários capacitados; número de funcionários que procuraram assessoria; número de funcionários que procuraram auxílio em função de seu uso/abuso); número de ações propostas e número de ações realizadas relativas a ações preventivas.

Esses indicadores explicitam a participação dos funcionários, o que revela os efeitos, em termos de circulação de idéias, a respeito da temática no cotidiano da organização, como está demonstrado nos tópicos abaixo descritos.

Participação dos Funcionários: Para a criação e a implantação da política institucional antes mencionada, o programa contou com a participação dos funcionários da seguinte forma: 32 funcionários reuniram-se em diferentes grupos de trabalho ligados à criação de estratégias preventivas; 18, construindo a viabilidade institucional e a política do programa; 153 chefias foram capacitadas através de oficinas; 63 buscaram auxílio para a resolução de problemas emergentes no trabalho e 36 funcionários procuraram recursos terapêuticos com a assessoria (ampliação de estratégias terapêuticas); 1818 funcionários (79,5%) participaram das palestras; e 50 chefes estiveram presentes nos Seminários. Assim ocorreu o engajamento de aproximadamente 2021 funcionários no programa, sendo que alguns participaram de mais de uma das atividades.

 

Criação de Estratégias Preventivas (Ações Propostas e Desenvolvidas)

As estratégias preventivas desenvolvidas incluíram:

• a elaboração de materiais informativos sobre o programa e sobre o uso de drogas (duas campanhas mais amplas foram planejadas e realizadas através de material informativo - cartazes distribuídos em todos os setores e no contracheque). Para isso, algumas diretrizes foram elaboradas pelos participantes a fim de apresentar um material com o qual as pessoas pudessem se identificar e refletir sobre aspectos de suas vidas, calcadas em informações sem cunho moral;

• a criação de medidas de valorização tanto do trabalho quanto do trabalhador, através da realização de reuniões nos setores de trabalho que permitissem a comunicação entre funcionários e chefias. Foram realizadas reuniões para tratar de temas específicos de cada setor e para trabalhar o instrumento denominado Rotina para abordagem, na maior parte dos setores de um dos principais segmentos da empresa. Essas reuniões foram coordenadas pelos funcionários que participavam diretamente do Programa.

• a criação de espaços de lazer e cultura, destacando-se a mostra de filmes escolhidos pelos funcionários na maior parte dos setores da empresa; e o levantamento de recursos para atividades recreativas nos horários de intervalo.

 

Indicadores Qualitativos

Os indicadores qualitativos foram referentes à mudança na compreensão do problema. Isso se verificou a partir de funcionários melhor informados e com maior implicação na proposição de alternativas, cujo horizonte era a organização e não apenas os funcionários que apresentavam problemas. Nesse sentido, a mudança na compreensão do problema foi satisfatória, especialmente quando consideramos a oficialização do Programa, sua implementação e continuidade na organização, as propostas preventivas que cada grupo de ação formulou e a efetiva participação e envolvimento dos funcionários; tais avanços são relatados a seguir.

 

O Processo

Durante o transcorrer do programa, ocorreu uma oscilação entre momentos de resistência e de valorização em relação ao que era empreendido. A assessoria interveio na coordenação do trabalho e na mediação dos conflitos, potencializando o engajamento dos participantes nas ações planejadas. Verificou-se também, como efeito da intervenção proposta, o envolvimento da direção no Programa e um maior engajamento da equipe médica.

Após o término da primeira fase de assessoria, evidenciou-se a responsabilização dos funcionários que compunham os diversos espaços do Programa. Esse resultado ficou evidenciado pela continuidade dos grupos de ação e pela estruturação do comitê coordenador, responsável pelo gerenciamento do programa, quando da saída da assessoria dessa função. Além disso, concomitante à saída da assessoria, outro aspecto favorável ao engajamento pôde ser observado com a criação dos comitês de setor (no mínimo um em cada local de trabalho), encarregados da aplicação da rotina, da discussão de casos emergentes, da elaboração e da execução de ações preventivas.

O comitê coordenador, nessa nova fase do Programa, elaborou um planejamento para oano, incluindo o respectivo orçamento e a continuidade da capacitação das chefias.

Apesar da resistência, comum a qualquer processo de implementação de novos programas, conseguiu-se dar andamento às ações previstas e avançar nos objetivos traçados inicialmente para o trabalho.

Desse modo, o Programa realizou seu intento, fazendo circular um entendimento que superou uma perspectiva estritamente moral e contribuindo na qualificação das relações de trabalho, objetivada numa política produzida coletivamente e adotada pela organização.

 

Tecendo as Considerações Finais

No trabalho desenvolvido, propomos uma dupla vertente para a leitura do problema do uso de drogas no local de trabalho: de um lado, como algo particular, na medida em que cada sujeito tem uma história pessoal que o predispõe a escolhas singulares, e, de outro, identificando o que, na organização, favorece e incrementa o uso de drogas, considerando o contexto social como um dos elementos determinantes na constituição do problema.

Assim, quando o uso de drogas aparece no local de trabalho (que geralmente é o reduto mais preservado entre os que vivem essa situação) deve-se estar atento e escutar o que ele denuncia. Ainda que não seja possível reduzir as causas de seu aparecimento unicamente às questões internas de uma organização, torna-se imprescindível que se analise suas origens e as formas mais adequadas de intervenção.

Levando em conta as considerações feitas até aqui, é importante identificar o que favorece esse sintoma2 . Na empresa em questão observou-se que, durante muito tempo, o uso de drogas no local de trabalho foi aceito, cumprindo uma função a partir da qual se funda o que convencionamos chamar de uma “cultura do uso/abuso de drogas no trabalho”.

A proposição do termo “cultura do uso/abuso de drogas no trabalho” refere-se a um padrão de comportamento historicamente constituído em que o uso ou o abuso é aceito, arraigando-se e cristalizando-se de tal forma, que pode adquirir a significação de congregar, liberar e fortalecer, e também como forma de se proteger frente às dificuldades encontradas no trabalho ou nas relações interpessoais. Os argumentos que nos permitiram a leitura a partir desse conceito, na instituição aqui mencionada, são ilustrados com os seguintes recortes, retirados das falas dos funcionários sobre o assunto: a “dureza” do trabalho (riscos, dificuldades na execução e condições de trabalho, baixa valorização da atividade desenvolvida e da função que desempenha); e o que poderíamos qualificar como “companheirismo” (confraternizar, sentir-se aceito pelo grupo, não entregar o colega por estar fazendo algo proibido).

Para haver modificações na cultura estabelecida (deixar de conceber o uso de drogas como algo natural no ambiente de trabalho), as intervenções devem ser dirigidas à organização como um todo, o que pode ocorrer através de um programa sistemático decorrente de uma política institucional, integrando intervenções de saúde e medidas administrativas, reconhecidas formalmente pela organização.

Partimos do pressuposto de que o impacto de um programa de saúde depende, fundamentalmente, da sistematicidade de suas ações e do engajamento de um considerável número de funcionários de diferentes níveis hierárquicos, representantes de distintos segmentos da empresa onde estão inseridos. Dessa forma, a política criada na organização em estudo, baseada no tripé formado pelos eixos Rotina - Comitês - Credenciamentos, resultou na estruturação de um Programa incorporado à rotina da empresa, formalizado através de dispositivo oficial, assegurando a continuidade do mesmo por intermédio dos comitês e dos grupos de ação. Nessa perspectiva, a formulação de uma rotina de abordagem do funcionário, a partir das características da empresa, foi necessária para orientar tanto chefias quanto funcionários em relação às possibilidades de intervenção, ou seja, o que fazer em cada etapa da manifestação do problema, favorecendo uma referência mínima e uma direção quanto ao encaminhamento das situações.

Para sustentar a implementação e a permanência do Programa, escolheu-se uma metodologia baseada numa construção conjunta que visava ao comprometimento de cada um dos funcionários, permitindo a apropriação do Programa pelos que o integraram, responsabilizando-os e possibilitando que se encarregassem de sua continuidade. Trabalhar o uso de drogas em uma organização através dessa via busca propiciar alguma autonomia, em que o “saber fazer” não fica restrito ao conhecimento médico, psicológico e social. O acento é colocado na perspectiva de que cada um tem sua função, podendo contribuir para o encaminhamento das situações cotidianas.

Sublinhamos, então, a importância da capacitação dos funcionários em seu papel de multiplicadores do processo. Em conseqüência, passam a ter condições de se encarregar da busca de soluções, de servir de referência a outras pessoas dentro da organização, assim como de terem autonomia decisória frente a situações, estabelecendo novas alternativas de intervenção. Sem dúvida, a eficácia do trabalho depende do fluxo interno da organização, compreendendo: o funcionário ou o grupo que apresenta o problema; a pessoa que percebe a situação; aquele que intervém e como o faz; o encaminhamento dado ao problema e o acompanhamento do funcionário na trajetória de recuperação até sua reinserção no trabalho.

Além da interação interna, observou-se a necessidade de articulação e discussão de alguns aspectos da política criada com segmentos fora da empresa. Sabemos que, atualmente, o diálogo com vários setores da sociedade sobre o uso/abuso de drogas vem aumentando, a partir do debate quanto às diferentes interpretações que se faz do problema, o que permite o avanço na discussão.

Um ponto que consideramos nevrálgico à implantação e à continuidade de uma política mais ampla é relativo à vontade política da instituição. Podemos sensibilizar e capacitar um grande número de funcionários, mas veremos esse trabalho dificultado, ou até impossibilitado, se não houver disponibilidade para viabilizá-lo por parte de quem tem poder decisório. Em se tratando de empresas com rotatividade nos cargos de direção, corre-se o risco de, ao assumirem as novas chefias, o que se desenvolvia não seja mais tomado como prioridade, ou mesmo que os novos chefes queiram fazer de outra forma, desconsiderando a trajetória e as “sementes” lançadas anteriormente.

É importante estar atento quanto a esse ponto. Não há como impedir que se desconsidere a proposta de trabalho, embora o esforço para que ocorra a sensibilização, o acolhimento e a inserção no trabalho possa ser melhor recompensado quanto maior for a apropriação por parte da rede institucional. Entretanto, é inegável que esse limite pode se apresentar. Talvez, então, seja preciso “reinventar a roda”, explicitar impasses, avaliar o processo com os envolvidos e intervir na direção de ultrapassar o “narcisismo das pequenas diferenças”.

Além do aspecto institucional, consideramos que qualquer programa relacionado a essa questão, seja preventivo e/ou terapêutico, necessita levar em conta também que o uso de drogas é uma prática cultural e que não podemos formular uma intervenção nos moldes de uma campanha no sentido de tornar as pessoas livres das drogas. Nesse sentido, a contribuição da psicanálise sobre a toxicomania e as formulações sobre sintoma social são cruciais, pois ao mesmo tempo em que nos levam a entender que nem todos estabelecem a mesma relação com a droga, permitem-nos fazer uma escuta dos determinantes socais e institucionais, compreendendo também que os ideais de consumo são transformados em imperativos às expensas dos prejuízos subjetivos, orgânicos, profissionais e sociais.

Encontramos confirmada nesta experiência específica nossa interpretação de que o uso de drogas se presta a confusões que podem configurar dois extremos a serem trabalhados: a idéia de que o uso de drogas é uma liberdade individual e, portanto, não permitiria qualquer intervenção. O outro extremo estaria representado pelo imperativo de livrar as pessoas do “mal” de qualquer forma. A superação desta confusão de posições extremadas está na possibilidade de exercer uma mediação.

Ressaltamos a necessidade de manter distância do cunho moral, onde se diz o que é melhor para todos. Do mesmo modo, é necessário o direcionamento a uma profunda reflexão sobre quais as escolhas do indivíduo e que conseqüências terão em sua vida. É certo que uma posição que se ancore nesse princípio tem suas dificuldades, pois trata-se de flexibilizar posições e de reafirmar que, no trabalho, o uso de drogas não é possível. Há necessidade de que os limites sejam recolocados e de que o indivíduo possa escolher o que fazer.

Consideramos fundamental ainda que as intervenções aliem sempre medidas administrativas a intervenções de saúde (oferta de tratamento através do credenciamento de serviços diversificados), abrindo perspectivas à resolução de situações de conflito, oriundas tanto de aspectos subjetivos como relativas a questões de trabalho, implicando a reavaliação das relações institucionais.

Esses programas, com ênfase na promoção da saúde, devem estar voltados para a totalidade dos funcionários com vistas a que cada um possa refletir sobre seus hábitos de vida, entre eles sua relação com o uso de drogas. Acreditamos que embora não seja possível evitar que uma pessoa use drogas, se assim está decidida, podemos fazê-la pensar por que o faz, a que isso responde, lançando maior flexibilidade quanto a suas escolhas.

Enfatizamos, também, que um programa de prevenção ao uso de drogas no ambiente de trabalho deve, com o tempo, estar inserido em uma política mais ampla de saúde, tendo como alvo a qualidade de vida do trabalhador e da organização, bem como estar referenciado a uma política de saúde pública ou governamental. Afinal, podemos fazer mais do que “apagar incêndios “!

 

Referências bibliográficas

Campana, A. A. M. (1997). Álcool e Empresas. In: Ramos, Sérgio de Paula & Bertole, José Manoel org. Alcoolismo Hoje. Porto Alegre: Artes Médicas.        [ Links ]

Fridman, Ida S., Pellegrini, Inês L (1995). Trabalho & Drogas – Uso de substâncias psicoativas no trabalho. Porto Alegre: UNDCP/SESI/FIERGS/EDIPUCRS.        [ Links ]

Melman, C. (1992). Alcoolismo, delinqüência e toxicomania – uma outra forma de gozar. São Paulo: Escuta.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Vindicas - Grupo de trabalho e estudo
das manifestações sociais contemporâneas
Rua Miguel Tostes, 456/302
90430-060 Porto Alegre - RS
E-mail: vindicas @ terra.com.br
Site: www.vindicas.com.br

Recebido em 17/04/01
Aprovado em 20/10/01

 

 

1 De acordo com Melman (1992), sintoma social é o que responde ao que está nas entrelinhas do discurso dominante, não se tratando apenas do que se manifesta em grande número de indivíduos. O discurso dominante na sociedade capitalista propõe a primazia da satisfação de cada um numa lógica individualista, colocando como imperativo o ideal de consumo. No caso do uso abusivo de drogas, o ideal de consumo se transforma em um imperativo a ser respondido a qualquer custo, implicando prejuízos subjetivos, orgânicos, profissionais e sociais.
2 De acordo com o trabalho desenvolvido, utilizamos o termo sintoma como manifestação relativa a uma verdade subjetiva que se expressa no laço social, de forma patológica.